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Vida corrida- a última corrida - parte 4

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Interlagos, 1972: Ferrari e Porsche passam a centímetros da gente. Esse com calça boca sino é o Irineu

Quarto episódio da série Vida Corrida. Se você perdeu os três primeiros, clique AQUI, AQUI e AQUI.

Uma mancha amarela pela reta

As competições foram a melhor escola da vida que eu poderia ter. No kart aprendi que para ser competitivo no meio de cobras é preciso ser serpente criada. Nos dois anos como piloto sempre estive entre os primeiros, mas muito tempo depois descobri que os vencedores geralmente burlavam o regulamento. Foi minha única frustração como piloto, porque sabia que era tão bom quanto todos eles, mas não tinha a mesma malícia (para não dizer desonestidade).

Também me diverti muito, mas muito mesmo. Nenhuma corrida é igual a outra e todas renderam histórias hilariantes que dariam uma divina comédia. A mais curiosa de todas foi em Interlagos, em 1998. Naquele ano as corridas da minha categoria eram disputadas em duas baterias de 10 voltas. Quando fui tirar a moto do cavalete para largar na segunda bateria vi que o pneu traseiro estava furado. Pânico geral! Nós teríamos de desmontar a roda, trocar o pneu, montar e sair do box em apenas três minutos!!! Impossível! Sim, impossível se não fossem os amigos... sempre eles.

O inspetor técnico da Federação, Renato Gaeta pegou o rádio e mandou um aviso para o diretor de prova, Carlão Coachman, que por sua vez transmitiu para o diretor de largada, Gualtiero Tognochi:

- ATRASA A LARGADA!!!

Começaria uma das mais emocionantes e engraçadas passagens como piloto.

Do outro lado do rádio Gualtiero perguntou "por quê?". E o Gaeta simplesmente respondeu:

- Porque a moto do Tite está com pneu furado. Falou isso como o ar mais sério do mundo. E, numa demonstração de conjunção astral, cósmica, sei lá, o Gualtiero mandou o recado para o bandeirinha da largada:
- Segura todo mundo, deu um problema no box...

Os pilotos já estavam alinhados no grid de largada e eu lá no box olhando todos os amigos e mecânicos desesperados para tirar uma roda da moto do meu companheiro de equipe (que quebrou o motor e não iria correr) e colocar na minha. Um sol de rachar côco e nada de a placa de 5 minutos abaixar. Foram os 5 minutos mais longos da história do motociclismo mundial.

De vez em quando alguém chamava no rádio:
- E aí, o problema do box já foi resolvido?

- Negativo, falta colocar a roda traseira!

 

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Primeira moto a gente nunca esquece: Suzuki A 50II entrou na minha vida em 1972 

Com cerca de 10 minutos, os pilotos já desconfiados que algo de errado não estava certo, o fiscal de largada já não aguentava mais segurar a placa levantada, quando finalmente a moto ficou pronta. O Gaeta avisou o Carlão, que avisou o Gualtiero, que liberou o fiscal para continuar o procedimento. A placa de 5 minutos foi abaixada e eu saí do box que nem um foguete. Não daria mais para fazer a volta de instalação e eu teria de largar da saída dos boxes, o que em Interlagos nem é tão ruim assim. Quando o fiscal liberou saí atrás do último colocado e na primeira curva descobri porque é tão importante aquecer os pneus... apesar do sol forte parecia que estava chovendo só na minha moto! A moto derrapou de traseira a primeira volta inteira e só voltou ao normal na segunda volta, quando todo mundo estava uma eternidade na minha frente.

A partir dessa data, criamos dois novos cargos para os meus amigos-mecânicos: o Irineu foi nomeado Inspetor Visual e Táctil Pneumático Externo Sênior, que deveria verificar se os pneus continuavam pretos e redondos; e o Fred Lasalvia foi nomeado Inspetor Pneumático Métrico e Bárico Interno Máster, que deveria checar a pressão dos pneus.

Sabe aquele papo de dormir bem antes das corridas? Pois é, no sábado à noite, véspera da decisão do Brasileiro de 1999 não teve jeito. Fiquei rolando na cama até madrugada. Coloquei em prática uns exercícios de meditação aprendidos com o Zé Rubens e finalmente consegui umas quatro horas de sono.

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 Segunda corrida de moto: com a Yamaha RD 350 totalmente original

Domingo a programação começou um treino de 15 minutos, chamado de warm-up. Serve como uma checagem geral pra ver se está tudo funcionando nos conformes. Normalmente a gente não força muito nesse treino porque se cair sobra pouco tempo para arrumar a moto. Aliás, costuma-se dizer nos boxes que "só idiotas caem no warm-up". Conheço um piloto que caiu no warm-up: eu! Mas tinha sido em 1998 e levei uma bronca tão grande do meu chefe de equipe que serviu de lição pro resto da vida.

O Milton Benite me entregou a moto com um ar meio gaiato e só falou que era pra eu acelerar com vontade, porque o motor era um rojão.

- Como você sabe? perguntei, afinal ele tinha trabalhado à noite e não havia meio de andar com a moto na escuridão.

- Eu testei no miolo velho, esse motor é forte!

Uma explicação. Interlagos era uma pista de quase nove quilômetros no projeto original. Uma reforma no final dos anos 80 reduziu para pouco mais e quatro quilômetros. Partes da pista antiga ainda estavam abertas, mas era um asfalto velho, cheio de terra e sujeira. Foi lá que ele testou o motor à noite, sem farol. Não me pergunte como!

Saí para o treino de aquecimento e logo na primeira passagem pelo box eu ria sozinho dentro do capacete, lembrando a cara do Pressão. O motor era um rojão!!! Nunca, em três anos, tive um motor tão forte. Dei duas voltas na casa de 1min54seg e entrei no box. Guardei a moto, coloquei os cobertores nos pneus e caí numa risada descontrolada. Quando o meu mecânico, Decino, perguntou o motivo da felicidade eu respondi:

- Dá pra ganhar, porra!!!

Por uma dessas conjunções cósmicas, não sei porque raios, mas a minha categoria sempre largou ao meio-dia. Precisamente ao meio-dia, com o sol a pino, que nem um maçarico nas nossas cabeças. Vesti o macacão todo molhado de suor, coisa nojenta mesmo. E o capacete, ecah!

Saí para alinhar muito cedo e parei na minha posição no grid de largada, lá para trás da quinta ou sexta fila, no último lugar. Os outros pilotos foram chegando e todo mundo que passava por mim fazia um aceno, um cumprimento, alguns desceram da moto e vieram falar comigo. De repente tinha um monte de gente em volta da minha moto, até meus adversários, todos desejando boa sorte. Cáspita, eu estava largando em último! Que sorte é essa?

O sistema de largada funciona assim:

Primeiro o diretor de prova levanta a placa de 5 minutos e todos os extras devem abandonar o grid de largada, deixando os pilotos sozinhos com as motos. É a hora que a gente olha pro lado, vê todo mundo indo embora e pensa "agora é comigo". O diretor libera as motos para a "volta de instalação". Alguns comentarista chamam de "volta de apresentação" ou "volta de aquecimento", mas na verdade o motor e os pneus já estão quentes. Quando realinhamos no grid de largada o diretor levanta a placa de 1 minuto. Então mostra a placa de 30 segundos e aceleramos os motores lá nas alturas. Aí acende a luz vermelha, depois entre 1 e 5 segundos o diretor de largada aperta um botão, acende a luz verde e todo mundo desaparece.

Só que eu estava muito nervoso, largando em último, com um monte de moto na minha frente. Por isso eu cheguei da volta de instalação e deixei a primeira marcha engatada. Senti que a embreagem estava "reclamando" e comecei a achar que precisava voltar para o ponto-morto. Só que para engatar o ponto-morto teria de deixar a rotação cair. Nessa hora bateu uma paranóia do tipo "e se essa desgraça de câmbio não engatar a primeira?", ou "e se o motor morrer?"... coisas do tipo.

Quando acendeu a luz vermelha senti que a embreagem não aguentaria mais nem um segundo e decidi queimar a largada. Mas era meu dia de sorte, porque eu mal relaxei os dedos para soltar a embreagem e acendeu a luz verde. Quando os outros ainda estavam pensando em largar eu saí que nem um míssil e melhor: sem queimar a largada!!!

Foi como se eu tivesse uma bola de cristal para saber exatamente quando a luz verde acenderia. Quando os pilotos começaram a se mexer eu já estava no meio do pelotão. Fui passando todo mundo por fora e quando saí do S do Senna estava em primeiro lugar. Olhei umas três vezes pra trás pra conferir se não estava sonhando. Estava em primeiro!

O Leandro Panadés, que largou na primeira fila, depois da corrida comentou:

- Olhei pro lado, vi uma mancha amarela passando por mim e pensei "onde vai esse louco"?

O louco era eu!

 (Continua...)


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