O 43 é o Doca, eu sou o 14 e aquela mancha vermelha colada no meu cangote é o Leandro
Capítulo final da saga Vida Corrida. Se você não leu os episódios anteriores clique AQUI, AQUI, AQUI e AQUI.
Campeão Brasileiro por pouco
Desde sempre nunca dei muita importância para a platéia. Na verdade eu gostava mesmo é de ficar sozinho no box, no máximo com um ou dois amigos, mas nada de família, mãe, pai, filhos, ninguém. Essa neura era antiga, desde 1973 por causa de um grave acidente em uma corrida de carro no Rio Grande do Sul, no qual os dois pilotos morreram queimados. A reportagem do jornal ressaltou o fato de as famílias dos dois pilotos terem assistido tudo do muro dos boxes. Ou seja, viram o pai e marido morrendo queimados a poucos metros de distância. Esse relato nunca mais saiu da minha cabeça, porque a reportagem era ricamente ilustrada por fotos.
Mais tarde, quando comecei a correr de kart meu box parecia uma festa: mãe, irmão, amigos, namorada e o Irineu, que sempre estava por perto. Minha mãe italiana levava tanta comida que todos os mecânicos passavam no meu box pra fazer uma boquinha. Na corrida seguinte ela levava mais comida e ainda comentava:
- Ma santo Dio, essas crianças não tem mãe? referindo-se aos mecânicos de 1.90m de altura e 120 kg!
Uma vez meu pai decidiu assistir uma corrida sem me falar nada. Sentou na arquibancada e ficou lá. Mas exatamente nessa corrida eu levei uma das maiores porradas da minha vida. Nas primeiras voltas eu estava no pelotão da frente, colado no terceiro colocado quando bem na parte mais rápida da pista pulou o cachimbo da vela e o motor apagou. O piloto que vinha atrás nem conseguiu pensar: bateu com tanta força na minha traseira que o kart dele subiu nas minhas costas e o pára-choque riscou meu capacete. De quebra arrancou meu escapamento. Consegui chegar no box, arrumei e voltei pra corrida.
O momento exato que um piloto arrancava o escapamento do meu kart na curva da Balança.
Ainda terminei entre os 10 primeiros e já na área de inspeção dos karts vi um homem que pulava mais que siri na lata. Olhei de novo e reconheci meu pai, agarrado por vários fiscais. Sem entender o que tinha acontecido, meu pai achou que o piloto bateu em mim de propósito e estava a um passo de voar na jugular do coitado. Assim decidi que era melhor manter a família longe das pistas. Por isso minhas filhas nunca assistiram uma corrida minha. Hoje vi que foi uma bobagem, porque essa corrida de 1999 eu gostaria muito que elas estivessem lá. Afinal não é todo dia que se pode ver o pai liderando o campeonato brasileiro de motovelocidade.
Até eu cruzar a primeira volta ainda não estava acreditando que era líder! Olhei para trás na reta e vi um monte de moto atrás de mim, mas eu tinha de ficar de olho apenas em uma moto: a número 21 do Leandro Panadés. Eu só precisava chegar uma posição atrás dele pra ser campeão. Só que tinha um monte de gente no meio para atrapalhar e o regulamento não previa o play-off, ou seja, qualquer piloto que se colocasse entre nós dois poderia mudar o título de mão!
No grid de largada em último e recebendo cumprimentos dos amigos: de boné vermelho o Pandini, de costas com macacão Rio o Leandro Panadés, de capacete me abraçando o Marquinhos Lama, de bermuda o Decino e o afro-descendentão é o fotógrafo Idário Café.
Olhei rapidamente no muro dos boxes e vi um monte de cabeça e braços acenando pra mim. Todos que me ajudaram durante a semana estavam lá. O Cajuru (Adilson Magalhães) sinalizava que nem maluco pra eu acelerar tudo. Nunca vi tanta gente berrando no muro como nessa primeira volta.
Aquela era a última etapa do campeonato Brasileiro e a última vez que as Honda RS 125 de 1994 largariam em uma prova oficial. Elas seriam substituídas pelas mais novas, de 1997. Então todo mundo que tinha uma RS 125 1994 na garagem decidiu participar dessa prova. E eu só precisava controlar a posição do Leandro.
Briga de foice no escuro: Doca (43) em segundo, eu (14) em terceiro e na minha sombra o Leandro fungando no meu cangote, ui!
Na outra volta um dos pilotos "paraquedistas" me passou e foi embora. O box me sinalizou que eu estava em segundo e o Leandro em sexto a 10 segundos. A corrida teria 20 voltas, eu só precisava me manter naquela posição por mais 18 voltas.
Preocupado em não mandar o motor pro espaço mantive um ritmo conservador só de olho nas placas do box. E o Leandro foi chegando: quinto, quarto, terceiro e de repente olhei pra trás e lá estava a moto 21 no meu cangote. Entre nós dois o Alecsandre Brieba, o Doca, amigo e ex-companheiro de equipe. Nós três formamos um bolo isolado dos outros e numa troca de posição maluca. A gente se ultrapassava praticamente a cada curva. Não cabia uma mosca entre nossas motos e estávamos tão colados que em algumas fotos dá pra ver uma moto e três cabeças.
Foi um pega emocionante por 10 voltas, eu sempre fazendo conta pra saber o que aconteceria se eu chegasse na frente, atrás ou entre o Doca e o Leandro. Nas curvas eu pensava "frear, reduzir, soltar o freio, acelerar, respirar, controlar o batimento carddíaco". Nas retas eu pensava "o segundo lugar dá 20 pontos, com mais 3, mas se eu chegar em terceiro é menos 5, mas se o Doca chegar na frente é mais 2"... puuutz. E na reta seguinte o Doca me passava e tinha de refazer todas as contas. Na outra seguinte eu passava o Doca e o Leandro e tinha de fazer as contas tudo de novo.
Primeiro treino com a RS 125 em 1997: não sabia nem onde colocar os joelhos!
Eu já não enxergava bem de perto e tinha dificuldade para ver o conta-giros e o termômetro da água. Antes da corrida eu colei um pedaço de fita crepe no 9.000 RPM e outra no 10.000 RPM e só precisava manter a agulha do conta-giros entre as duas fitas. Quando eu olhava pra frente demorava um pouco pra focar os pontos de frenagem. Assim, na freada do S do Senna eu quase estampei na traseira do Doca e, para não bater, alarguei a entrada da curva e acabei fazendo o J do Senna. Perdi uma fração de segundo, suficiente para não conseguir mais pegar o vácuo dos dois na reta oposta. Meu campeonato estava indo pro vinagre.
Mais uma volta e minha esperança voltou. Colei no Doca e percebi que o som da moto dele estava diferente. O escapamento tinha rachado e eu passei facilmente. Estava em terceiro, com o Leandro em segundo e isso me dava o título de novo!
Perdi o contato visual com o Leandro mas o box me informava as posições. Até 3/4 da corrida eu ainda tinha chance, mas fui avisado que o Leandro tinha passado para primeiro. Ou seja, o campeonato tinha definitivamente ido pro vinagre porque o segundo colocado estava uns 10 segundos na minha frente. Recebi a bandeirada em terceiro na melhor corrida de moto que fiz na vida. O Leandro em primeiro levou o título merecidamente, porque tinha vencido quatro provas, era jovem e com um futuro muito promissor pela frente. Dois anos depois ele representou o Brasil na etapa do Mundial de Motovelocidade no Rio de Janeiro, provando que era realmente o campeão.
Último pódio: Leandro em primeiro e esse cara magrelo de cavanhaque à esquerda sou eu!
Eu tinha vencido uma corrida, já tinha decidido parar de correr no meio da temporada e aquele título não mudaria em nada a minha vida, como não mudou mesmo. Mesmo assim bateu uma tristeza justamente porque eu sabia que aquela seria a última chance.
A festa no pódio foi legal, porque não tinha como não comemorar o título de um amigo que eu praticamente vi nascer, filho do meu amigo Miguel Panadés. Confesso que chorei ao ver a quantidade de amigos no final da corrida, todos tentando me confortar e acabei desabando nos braços do Miguel, pai do Leandro que foi a primeira pessoa a me cumprimentar.
Vira e mexe alguém me pergunta se não tenho vontade de voltar à correr, de participar de uma prova longa, ou só de entrar num track-day. Na verdade até bate uma saudades, mas não vontade. Porque foram 22 anos muito divertidos, com um ou outro acidente grave, mas apenas meia dúzia de ossos quebrados. O que é quase nada.
Acho legal ver alguns coroas correndo de moto, em provas oficiais, mas não consigo me ver no meio daquela tensão tudo de novo. Os conta-giros hoje tem shift-light, não precisa mais fita-crepe. As motos estão mais fáceis de pilotar e os pneus melhoraram muito a ponto de alterar o paradigma de joelho no asfalto para cotovelo no asfalto. Na última vez que pilotei uma moto de 200 cavalos, com pneu slick, em Interlagos, fiquei impressionado com a velocidade que passei na Subida do Café em quarta marcha. Ainda tinha a quinta e a sexta! Mas o prazer mesmo já tinha ficado no passado e para ser um piloto realizado é preciso ter 100% de prazer no que faz.
É uma decisão difícil, mas às vezes parar pode ser a melhor coisa para preservar o que se viveu de bom. Quando o prazer de correr se torna menor do que as dores nos joelhos e nas costas é hora de olhar para trás e agradecer por tudo que viveu.
Se eu fui bom piloto? Não sei. Desde a primeira corrida de kart sempre tive a certeza, lá dentro de mim, que era capaz de pilotar qualquer veículo motorizado, em qualquer terreno, com relativa facilidade. Hoje isso não faz mais parte da minha preocupação. O que me interessa atualmente é saber se fui um bom filho, um bom pai, um bom marido, um bom profissional e um bom cidadão. Isso sim é o que realmente importa.
FIM!