A sociedade clama pela redução de acidentes de trânsito, mas não se mexe!
Vivemos um dos maiores conflitos da era moderna: como equacionar a necessidade de mobilidade urbana com a redução de acidentes de trânsito? A situação é crítica, já atingiu contorno de epidemia, provoca um prejuízo astronômico para a Economia do País, mas não se vê nenhuma possibilidade de reversão desse quadro. Quer ver?
De um lado temos a densidade demográfica cada vez mais acentuada nas grandes cidades, que é onde se criam empregos e oportunidades. Cidade que não cresce não atrai moradores, pelo contrário, expulsa. Nas cidades já densamente povoadas o incremento da população traz como consequência a necessidade de mobilidade, seja por meio de transporte coletivo ou individual. São nessas cidades que o perfil comportamental mais se alterou em função do crescimento acelerado e desordenado.
Já do outro lado existe a necessidade de se mover nessas áreas densamente habitadas. Como a administração pública não investiu na mesma proporção em crescimento da malha viária e de transporte público, a velocidade média dos deslocamentos caiu para todo mundo, não só para quem usa veículo próprio. Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro o tempo de deslocamento para o percurso casa-trabalho-casa é tão alto que sacrifica quem trabalha assim como quem emprega.
Para o trabalhador a consequência é a perda da qualidade de vida, dedicando tanto tempo para deslocamento que falta para lazer, saúde ou estudo. Para o empregador porque os acidentes de trânsito de percurso são inseridos como acidente de trabalho e um funcionário afastado compromete toda a linha de produção. Imagine uma dezena deles!
É aqui que a iniciativa privada precisa começar a olhar. É uma tremenda ingenuidade acreditar que o Denatran irá solucionar o papel ridículo feito nas moto-escolas. A formação dos novos motociclistas é tão ridiculamente falha que seria melhor que cada um aprendesse com um amigo do que se matricular num CFC. Funciona quase como entregar uma partitura para uma pessoa e esperar que ela aprenda a tocar um instrumento musical.
A União não vai melhorar a formação, a menos que um grande milagre aconteça ou uma influência cósmica interfira nos ares de Brasília. Não será de um dia para outro que os CFCs se transformarão em verdadeiros formadores de motociclistas. Portanto a saída é cada um cuidar de si e procurar uma formação adequada. Seja individualmente, como pessoa física, ou em grupo pela pessoa jurídica.
Recentemente visitei uma empresa e ouvi da médica do trabalho um honesto depoimento: "nós damos prioridade a quem não anda de moto e não adianta mentir, porque no exame clínico aparecem as cicatrizes das cirurgias ortopédicas". Também já ouvi profissionais de recursos humanos afirmando que boicota a contratação de funcionários motociclistas. Quando a médica acabou o discurso, comentei que se ela evitar a contratação de motociclistas, em pouco tempo a empresa ficará sem mão de obra.
São duas pessoas com formação superior, aparentemente inteligentes, que provavelmente defendem que o futuro do Brasil passa por uma reforma na Educação, mas que na vida pessoal e profissional preferem demitir a ensinar. É esse tipo de deformação de caráter que faz um País andar para trás. Defende uma filosofia desde que ela fique apenas no plano teórico, mas não quer realizar nada que mude o país no plano concreto.
A redução de acidentes de trânsito passa por várias transformações, começando pela comportamental, porque o principal fator contribuinte para o acidente ainda é humano; pelo econômico, porque a maioria esmagadora dos profissionais de RH ainda enxerga o treinamento de motociclista e motorista como um CUSTO e não como investimento e termina na pressão política, porque como se sabe, aqui no Brasil do avesso o trânsito é uma competência política e não técnica.
Começando pelo fator humano. Ninguém se acidenta porque quer. Pode até parecer, mas não é. Ninguém acorda pela manhã esperando ver o próprio fêmur saindo pela coxa. Portanto é preciso enxergar a vítima como alguém que precisa primeiro de treinamento e depois de acompanhamento. Na maioria absoluta dos acidentes a falta de informação é o elemento contribuinte. O sujeito sai da moto-escola sem saber nem mesmo frear uma moto!
O fator econômico. Se a empresa tem prejuízos enormes com afastamento de trabalho por acidente de percurso é hora de enxergar o treinamento como uma forma de reduzir o custo lá na frente. Segundo um especialista em RH, para cada um real investido em treinamento são economizados quatro reais em indenização. Como não adianta esperar um milagre que transforme o CFC em um formador de motociclistas capacitados, o jeito é fazer o papel do Estado e proporcionar essa qualificação. Em suma, a empresa precisa abrir o cofre e ela tem esse dinheiro sim, porque é muito mais barato do que uma festa de fim de ano com um grupo de humoristas.
A pressão política. Pelo menos em três empresas que visitei as vias de acesso eram problemáticas a ponto de expor os motociclistas a riscos muito acima da média. Nesta hora uma grande empresa tem poder de lobby (no bom sentido da palavra) para pedir ao Município, Estado ou União que faça a parte deles e melhore os acessos, criem e construam ciclovias, passarelas etc.
A cada Fórum de trânsito que participo escuto a velha cantilena da necessidade de redução das vítimas de trânsito, mas ninguém (montadoras, empresas, órgãos públicos) querem botar a mão no bolso. As montadoras e empresas do setor de motopeças que vêem seus negócios seriamente ameaçados pelo crescente número de acidentes alegam falta de verba porque o mercado está em crise nesse momento. As empresas preferem demitir ou não contratar funcionário motociclista para economizar em indenizações trabalhistas. Por fim o Estado alega que acidente de trânsito é falta de fiscalização e aumenta a quantidade de multas na cabotina esperança de "educar" os motoristas.
Como se vê, a menos que aconteça um milagre semelhante à ressurreição de Cristo e que da noite para o dia mude a cabeça das pessoas, o tal pacto pela vida e pela redução dos acidentes de trânsito continuará sendo um slogan bonitinho para incluir nas publicidades de veículos. Estamos, então, à espera de um milagre.