Uma campanha incentiva a selvageria
Sim, existe gente que passa a vida pedindo mais respeito, mas só para ela, porque os outros que se danem. É assim que vejo a ridícula campanha iniciada nas redes sociais, nas quais os motociclistas defendem o uso de escapamentos barulhentos como forma de aumentar a segurança.
Segundo a campanha, "Escape esportivo pode salvar vidas! Se você não me vê, pode me ouvir!!!".
São tantas premissas erradas que nem sei por onde começar, mas vamos lá:
1) A campanha - Essa campanha começou nos Estados Unidos, com o slogan "loud pipes save lives". Algo como: "Escapes barulhentos salvam vidas". É preciso lembrar aos brasileiros que a moto nos Estados Unidos é usada de forma completamente diferente do que no Brasil. Lá as motos são essencialmente para lazer. Quase não se vê motos durante a semana circulando, mesmo na Califórnia! Além disso, a legislação lá também é diferente e muda conforme o Estado. Mesmo assim existe limite de emissões de decibéis e o motociclista pode sim ser multado.
Imagine se a cada minuto uma moto com escape livre subisse uma daquelas ladeiras de São Francisco, causando um tremendo estardalhaço. Eu mesmo vi várias motos circulando por lá e todas estavam com o escape original. Duvido que os decibéis sejam liberados por lá. Mas nos eventos de Harley é comum ver motos com escape direto, em áreas específicas e nos finais de semana.
E quem disse que os americanos são os mais educados do mundo? Na Alemanha, país com alto nível de sociabilidade, a lei anti-ruído é tão rígida que até as motos de corrida são obrigadas a ter silenciador no escapamento. E ai de quem sai na rua com escape livre!
Ao usar o escapamento livre, o motociclista produz ruído o tempo todo que estiver rodando. Portanto essa teoria do escape-salvador deixa de fazer sentido se ele estiver voltando pra casa, às três da manhã, sem ninguém mais na rua! Os dados estatísticos de trânsito mostram que os acidentes com motociclistas acontecem entre 7 e 8 horas e das 18 às 20 horas. Mas o escape faz barulho 24 horas por dia!
2) Corporativismo - Já escrevi dezenas de vezes que o motociclista é a categoria de pessoa que mais conspira contra si mesmo. É uma espécie de corporativismo acima de qualquer vestígio de sensatez. Eu me recuso a defender os motociclistas apenas pelo fato de usar moto, já temos péssimos exemplos de corporativismo na vida pública e não precisamos levar isso para nossa vida pessoal. A ideia de que a moto produzindo barulho irá "abrir caminho" entre os carros, como se fosse uma sirene, é ridícula e egoísta. Para começar quem disse que o motociclista TEM DIREITO àquele espaço entre os carros? Aquilo é uma CONCESSÃO que deveria merecer um agradecimento e ser bem aproveitada, porque um dia essa concessão será cassada.
Até a buzina insistente dos motoqueiros (e motociclistas, que é a MESMA COISA) é uma prova de mau-caratismo e só serve para jogar ainda mais no ralo a imagem dos motociclistas. Durante décadas atravessei diariamente a cidade de São Paulo de norte a sul e vice-versa e muito raramente encostei na buzina. Mesmo assim não levo fechadas porque aprendi a observar os outros elementos em volta e a prever a reação de um motorista. Além disso, não é uma buzina que salva um motociclista que roda a 90 km/h no corredor entre os carros, enquanto todo os outros veículos estão a 20 km/h. Uma moto a 90 km/h percorre 25 metros por segundo, mas demora mais de 25 metros para parar (se os freios funcionarem). Não adianta nada buzinar ou fazer barulho porque a essa velocidade vai bater de qualquer jeito.
Quando um motociclista passa buzinando ou fazendo barulho ao lado de um motorista ele não está exercendo a pilotagem segura, está apenas enchendo o saco - para usar o bom português - de todo mundo em benefício próprio. Para resolver uma necessidade pessoal ele atormenta toda a cidade.
3) Sociopatia - É uma doença comportamental que se manifesta nas pessoas que acreditam piamente que todo mundo está contra ela. Ou que a sociedade é injusta só com ela e que cidadania é um belo conceito para os outros. Quando um motociclista propõe usar escape barulhento como forma de proteção ele está se colocando acima da sociedade. O barulho que acredita ira salvá-lo é o mesmo que tira o repouso de um paciente no hospital; que atrapalha a concentração de uma criança na escola; que polui o ambiente da cidade em que ele vive. O sociopata coloca o interesse pessoal acima de tudo.
Além de manifestar-se como um doente social, esse motociclista é mais ignorante ao acreditar que os motoristas realmente perceberão sua presença pelo som. Só para avisar: não funciona assim!
Dentro de um automóvel o motorista está com os vidros fechados, o ar-condicionado ligado, tem um sistema particular de som, (rádio, CD player, MP3, etc), conversa com os passageiros e o som da moto chegará até ele fraco e sem foco. Ele não consegue identificar se a moto vem da esquerda, direita, de cima ou por baixo. Portanto não funciona. Para que o motorista perceba é preciso um ruído muito alto e fácil de identificar, como as sirenes dos veículos de socorro.
4) Ambientalmente incorreto - Já cansei de escrever que a cidade também é meio-ambiente, apesar de muita gente acreditar fielmente que meio-ambiente é só no meio do mato, entre lobos guarás e jacarés. Usar um veículo que emite ruído acima da lei é uma forma de mostrar à sociedade que você está pouco se lixando para o meio-ambiente. Que você produz ruído, mas reclama das caminhões que despejam fumaça de óleo diesel na camisa nova.
Essa é outra tecla que vivo esmurrando. Durante a semana o sujeito é executivo de uma grande empresa, exige um comportamento padrão dos funcionários, caga regra institucionalmente ao afirmar que sua empresa é ISO qualquer-coisa com certificação ambiental, gasta dinheiro para propagar isso nos meios de comunicação, mas no fim de semana monta numa moto e sai causando uma baita estardalhaço por onde passa. Cadê sua certificação ISO qualquer-coisa de idiota completo?
Quem posa de respeitoso e, mais do que isso, quem vive pedindo mais respeito, antes de mais nada deve se dar ao respeito.
5) E o futuro? O que me assusta nesse tipo de campanha é o legado que isso deixa. Como educar um filho a ser respeitoso com os outros se o pai desfila de moto fazendo barulho e ignorando o direito dos outros ao silêncio? Que tipo de cidadão este motociclista está preparando para deixar para a sociedade?
Não dá mais para aceitar esse tipo de atitude. Ninguém é "meio-educado" ou "quase cidadão". Ou é ou não é. Neste tipo de comportamento humano não existe meio-termo. A educação e cidadania devem ser contagiosas, atingir o máximo de pessoas à sua volta, se espalhar.
(A minha moto tem um belo escape esportivo, mas com o silenciador)
6) A indústria - Meus amigos que produzem e vendem escapamento esportivo não precisam ter medo de falir, basta fazer como as grandes marcas sérias: produz o escapamento com o silenciador (e não silencioso, como escrevem alguns) e atendendo os níveis de emissão. Na minha moto eu tenho um belo escapamento com acabamento de aço e aplique de carbono que é tão silencioso quando o original e tem um selo certificador Euro 3 de emissões. A moto ficou mais bonita, com visual esportivo, sem aumentar o ruído nem emissões.
E podem continuar produzindo os escapes esportivos para competição, com uso restrito às pistas, porque as corridas de moto não param de crescer em todo o Brasil (felizmente) e o mercado vai continuar promissor.
O escape barulhento não salva vida de ninguém. As motos já saem de fábrica com uma buzina que, se bem aplicada, salva vida e pode ser usada apenas nas necessidades. Recuso-me a aceitar qualquer argumento corporativista em contrário porque um bom lugar para viver só se faz com cidadania, não tem outro jeito!