(Desenho da minha filha Nina)
Por que ninguém se preocupa com os que ficam?
Se tivesse pego um farol fechado, ou aberto, não teria acontecido. Se tivesse demorado ou apressado 30 segundos para sair de casa não teria acontecido. Apenas uma fração de segundo a mais ou a menos para arrancar no farol e não teria acontecido. Se a velocidade média fosse apenas 1 km/h a mais ou a menos não teria acontecido. Esses são os pensamentos mais comuns quando alguém se vê envolvido em um acidente. Dependendo das consequências materiais ou físicas do acidente, essas inquietações desaparecem em alguns dias. Mas quando o acidente resultou na perda de uma vida essas perguntas ficam reverberando na consciência pra sempre. Pelo menos para quem tem consciência.
Uma moto corta a cidade de São Paulo, de norte a sul, pelo principal corredor de trânsito. A centenas de metros duas mulheres esperam no canteiro central de uma movimentada avenida, a 100 metros do semáforo com faixa de pedestre. Entre as duas mulheres uma menina de aproximadamente seis anos segura uma boneca em um das mãos e a outra está presa à mãe.
A moto se aproxima do cruzamento e quando está a poucos metros uma criança se solta da mão da mãe e atravessa. O impacto seco atira a menina ao chão, desequilibra a moto, mas o motociclista consegue frear sem cair. A cena é confusa e desesperadora: a mãe grita sem controle, a menina sangra no asfalto, o motociclista percebe que tem o braço e joelho esquerdos feridos, um corte no pescoço e caminha a pé em direção da criança. Antes mesmo de chegar a menina é colocada no banco de trás de um Fusca, que parte levando ainda as duas mulheres que gritam e pedem por Deus. No asfalto ficam apenas a mancha de sangue e uma boneca. Nunca mais se teve notícia da menina nem do motociclista.
Na ocasião a imprensa não tinha a agilidade de hoje. Nem havia redes sociais, nem celulares com máquina fotográfica, nada. As notícias demoravam e esse atropelamento caiu no esquecimento. Menos nas famílias afetadas, porque um acidente fatal não acaba no dia do enterro. Ele atinge todos à volta para sempre. Mas aqui existe um detalhe que raramente é lembrado, não é só a família da vítima que leva essa cicatriz, existe uma outra vítima que fica esquecida, mas é igualmente atingida: o atropelador.
Salvo as pessoas sem caráter, marginais e de índole naturalmente distorcida, qualquer cidadão que se envolve em um acidente fatal fica permanentemente afetado, mas com a diferença que este sofre sozinho e silenciosamente. Ele pode ser absolvido pela Justiça, ter sua situação civil inabalada, mas a cena do acidente não se apaga.
Não só a cena do acidente, mas pensamentos frequentes "como seria o futuro daquela menina", "como sua família seguiu a vida depois desse evento", ou "será que vou encontrá-la no céu para pedir desculpas?".
Uma vez, muitos anos atrás, a revista Quatro Rodas publicou o corajoso depoimento de um motorista que atropelou uma menina de seis anos. Nunca esqueci a foto de abertura que era em preto e branco, com uma boneca quebrada no chão. E as inquietações desse depoente era sobre a infeliz coincidência que leva a um acidente, porque é o único encontro no qual nenhum dos envolvidos tinha programado. Ninguém queria estar lá naquela hora e naquele local, mas estavam e culminou com a mudança na história de vida dos envolvidos.
Segundo o "pai" do automóvel, Henry Ford, acidentes não acontecem, eles são provocados. Mas e quando um dos envolvidos simplesmente não teve escolha, como se fosse apenas um vetor do destino? Uma criança com a visão encoberta pode atravessar a rua ingenuamente. Um ciclista pode apenas perder o equilíbrio e cair na frente de um ônibus sem chance de o motorista frear.
Como julgar esse motorista que praticamente teve uma participação meramente acidental, por estar no lugar errado na hora errada? Não há justiça dos Homens capaz de absolver.
(Desenho de autoria da minha filha Luna)
Mais respeito com a morte
Tive a oportunidade de presenciar três acidentes fatais, todos por atropelamento. No primeiro tinha cerca de nove anos e estava na porta da escola quando meu colega de classe atravessou a rua e foi atingido pela carroceria de um caminhão. Pude ver o desespero do pai e do motorista do caminhão. Não tem instrumento capaz de medir a dor. Não há como dimensionar qual daqueles dois homens sentiu a maior fisgada no coração, sentiu suas entranhas se emaranharem como um novelo com mais intensidade.
No dia seguinte, no velório, a nossa professora de matemática me abraçou, me sufocando no meio dos seios, chorando copiosamente e repetindo "oh, meu Deus, eu pensei que tinha sido você". Quase afogado pelo perfume dela eu quis mesmo morrer porque os pais do menino ouviram e até hoje aqueles olhares indignados não saem da minha memória. Para mim aqueles pais deveriam estar pensando "sim, por que meu filho e não o filho dos outros?".
E o motorista do caminhão? Será que passou o resto da vida lembrando da cena do menino caído no asfalto, o rosto branco, a cabeça inchada em meio ao sangue?
O segundo acidente foi na rodovia Presidente Dutra. Uma mãe foi atravessar a estrada com um bebê no colo e, claro, não chegaram do outro lado. Só lembro de ver o corpo girando no ar e algo pequeno logo atrás. O motorista do carro pegou o bebê no colo e saiu por entre os carros chorando e gritando por socorro. Não havia o que socorrer, a não ser ele mesmo, que levou para toda a vida aquela imagem de angústia e desespero.
E o terceiro acidente é aquele descrito no começo desse texto. Até hoje posso ouvir claramente os gritos da mãe e como ela evitava chegar perto da filha com medo do que iria ver. Mas eu vi. E nunca esqueci, porque eu era o motociclista.
Quer saber como é? É olhar uma cicatriz no pescoço refletida no espelho todos os dias e lembrar de um acidente no qual uma vida foi interrompida. É passar uma existência se perguntando por que não esperou mais 30 segundos para sair. Por que não acelerou ou reduziu a velocidade só 1 km/h? Por que um semáforo não fechou ou abriu no percurso? É ver suas filhas chegarem à mesma idade daquela menina e imaginar como seria se eu as perdesse.
E pensar como ela seria se nada disso tivesse acontecido. O que ela estudaria, qual carreira seguiria, se teria marido, filhos, família... E a mãe dela? O quanto ela se culpou e lamentou pelo destino? Como a família a julgou?
A outra vítima de um acidente não morre, mas leva a morte estampada na alma, como uma coceira que não passa. A outra vítima não merece compaixão, como se apenas aquele que morre tem o mérito de ser velado. A outra vítima não é perdoada, por mais que seja absolvida pelos Homens. Ela espera pelo perdão só no dia do juízo final, literalmente, quando terá a chance de encontrar sua vítima e pedir desculpas.
Essa é a visão de quem recebe a missão de vetor do destino. Precisava estar lá, naquele instante, para mudar a vida das pessoas.
Por tudo isso me revolta como a imprensa e as pessoas tratam os acidentes de trânsito com vítimas fatais. Com exceção dos evidentes e comprovados crimes de trânsito, nos quais o dolo fica explícito, quem se envolve em um acidente fatal não o fez de propósito e merece o respeito de ao menos a compaixão e consolo.
Infelizmente, como escrevo há três décadas, as relações humanas desandaram que nem uma maionese aguada. Nem bem uma celebridade morre e vira motivo de chacota nas redes sociais. A morte não tem graça. Seja acidental ou natural. Ela está sempre ali, do nosso lado, mas queríamos que fosse ignorada, como quando tínhamos seis anos. A criança demora cerca de sete anos para conhecer o significado da morte. Eu lembro como se fosse ontem quando percebi que um dia eu, meus pais e meus irmãos, todos um dia iríamos morrer, comecei a chorar aos soluços e meu pai me pegou no colo com todo carinho e colocou na cama até eu pegar no sono.
Era assim que queríamos viver: confortado nos braços dos nossos pais na certeza da vida eterna. O que resta para a outra vítima é esquecer que um dia participou da morte de alguém. Por isso, se você não é capaz de respeitar a vida, respeite ao menos a morte.