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Os dias eram assados. Como fali aos 11 anos.

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Em 1970 eu contava o tempo pelas Copas do Mundo.

Os anos 1970 ficaram marcados para as crianças da minha geração como o ano do tricampeonato mundial de futebol do Brasil. Dividia o tempo em Copas do Mundo. As que presenciei até os 10 anos de idade foram de 1966 e a festa de 70. Não, a de 1962 eu não me lembro, só tinha três anos...

Outras lembranças desta época foi a primeira vitória de um brasileiro na Fórmula1, em 1970, com Emerson Fittipaldi,  ver o Homem pisar na lua, em 1969, a primeira eletrola que minha irmã mais velha ganhou no Natal de 1968, junto com os primeiros discos dos Beatles e Roberto Carlos.

Apesar de ter nascido em São Paulo, às 16:20 de 17 de abril de 1959, no hospital Beneficência Portuguesa, morei os primeiros anos da minha vida em Suzano, cidade com vocação agrícola a apenas 70 km da capital, mas que para mim era longe como o Pará.

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A gente amava os Beatles e os Rolling Stones.

Quando fiz três anos meu pais se mudaram para o bairro da Aclimação, na Rua José Getútlio e logo depois nos mudamos para o Brooklin, na rua Califórnia, 612 e foi nesse endereço que me tornaria o maluco por carro e moto que sou até hoje. Minhas melhores lembranças desse período foram a primeira bicicleta, o primeiro autorama e meus carrinhos de rolimã que fazia com madeira de caixote, sobras de construção, rolamentos presentados pelos mecânicos e uma infinidade de pregos.

Outra paixão eram os carrinhos de metal Matchbox. Todo dinheiro que ganhava usava pra comprar carrinhos Matchbox e eu me lembro da euforia que sentia a cada nova aquisição. Só que demorava muito pra juntar dinheiro suficiente para essas compras, por isso bolei um jeito de conseguir mais dinheiro e criei a minha primeira empresa aos 11 anos de idade!

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Este foi meu primeiro Matchbox comprado com dinheiro do meu suor (e sofrimento).

Na minha rua, às quartas feiras, tinha feira livre e naquela época era permitido embrulhar comida (principalmente peixe) com jornal. Como meu pai essa assinante d’O Estado de São Paulo eu juntava jornal a semana toda para vender aos feirantes. Isso rendia alguns trocados que acelerava a poupança para a compra dos carrinhos. Ironicamente essa foi a primeira remuneração que o jornalismo me proporcionou!

Mas os trocados eram poucos e demorava quatro quartas feiras para conseguir o valor suficiente. Então descobri outra atividade: carregador! Vi que alguns meninos faziam carrinhos de madeira para carregar as compras das freguesas. Mais do que isso, percebi que as gorjetas eram bem mais gordas do que as merrecas que o jornalismo embrulhativo estava me proporcionando e tratei de construir um carrinho de carga.

Foi uma obra de engenharia de fazer inveja aos formandos da FEI. A roda dianteira foi subtraída de um carrinho de feira da minha mãe e as rodas traseiras eram os rolimãs dos meus experimentos. Com dez, onze anos eu não tinha permissão para usar ferramentas elétricas e a furadeira manual levava uma eternidade para fazer um furo. Por isso usava pregos que, claro, não segurava nada, deixava tudo torto e ainda desmontava com o esforço. Então eu dobrava a quantidade e o tamanho dos pregos!

Estudei como eram os carrinhos: basicamente era um caixote de madeira, apoiado em duas treliças de madeira em forma de V, com um eixo na dianteira para a única roda. Na traseira um eixo rígido de madeira com dois rolamentos. Alguns “frotistas” usavam um freio feito de pedaço de pneu, mas eu não consegui serrar um pneu, então usei a sandália Havaiana da minha mãe, sem permissão dela, claro. Aliás, ela nem fazia ideia do que eu fazia com tanta madeira, prego e passava o dia martelando.

Reparei também que os carrinhos eram enfeitados como se fossem caminhões, cheios de coisas coloridas e até as antenas de um falso rádio PX. Sofri um monte pra fazer o meu carrinho, enchi com botões coloridos dos casacos da minha mãe e, na frente, enfeitei com logotipo VW surrupiado de algum Fusca 69, pintei algumas partes de amarelo, vermelho e qualquer outra tinta que tinha no armário. Uma pena que nessa época não tínhamos o hábito de fotografar tudo como hoje, mas esse carrinho ficou estiloso, com alguns problemas típicos de qualquer projeto experimental, mas meus pais nem acreditaram que eu fiz sozinho! 

Estudando o mercado

A regra era mais ou menos a seguinte: os meninos estacionavam os carros nas principais ruas de entrada da feira e ficavam esperando as freguesas. Eu fiquei copiando como eles agiam e percebi que, diante da concorrência acirrada, alguns deixavam o carrinho estacionados e iam abordar as clientes ainda durante a compra para carregar as sacolas e depois levar tudo no carrinho até a casa.

Meus concorrentes eram mais velhos, na faixa de 14 a 15 anos e eu era um pirralho magrelo de 11, com tamanho de 9 que mal conseguia carregar um pacote de laranja. Por isso eu ficava sentado no meu carrinho, lendo gibi e abordava as clientes na chegada. Como eu era um fofo, as senhoras aceitavam minha oferta e assim consegui minha primeira freguesa.

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Quem resistia ao olhar desse menino pidão. (eu era apaixonado por essa menina...)

Lembro claramente da minha estreia nos negócios de transporte de carga. Uma senhora fez uma compra enorme, dessas para sustentar a família por uns seis meses porque o meu carro ficou pesado, muito pesado mesmo. Como eu era realmente muito magro e fracote – tão magro que minha vó portuguesa só me levava na praia se eu usasse camiseta – mal conseguia empurrar e percebi algumas falhas de projeto, normal para um player estreante.

Não levei em conta a distância livre do solo e o eixo traseiro ficou muito perto do chão. Qualquer pedrinha engatava no eixo e travava o carro. Isso me obrigava a levantar o carro toda hora e fui me cansando muito rapidamente. Precisei parar várias vezes pra descansar, atrasando a entrega e disse pra cliente “pode ir na frente que já chego”. Ela foi. E eu me ferrei, porque a rua dela era de paralelepípedo, piso totalmente incompatível com minhas rodas de metal a 2 cm do chão. Tive de empurrar por toda rua como se fosse um carrinho de mão de pedreiro, no braço! Passaria dias seguidos com dores musculares no corpo todo... A compensação veio rápido. Uma gorda gorjeta que iria acelerar tanto meu faturamento que com apenas um feira já conseguia o budget suficiente para comprar um Matchbox!

Voltei pra feira e consegui mais uma freguesa, felizmente bem mais perto e leve. Quando contei o faturamento do dia me deu aquela a felicidade de um homem de negócio bem sucedido e fui imediatamente até o armarinho comprar um carrinho Matchbox. Lembro até do modelo: um Ford Mustang!!!

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Eu era magro e buchudo como um etíope. E meu irmão vivia a me sacanear...

Durante a semana mudei alguns detalhes do meu carreto, coloquei braços maiores para aumentar a alavanca e reduzir o esforço e eu nem conhecia o Arquimedes! Além disso, diversifiquei o negócio, porque além de levar o carrinho eu ainda vendia jornais aos feirantes! Foi o maior sucesso, que continuou nas duas feiras seguintes! Mas comecei a perceber um certo ar de animosidade ente meus concorrentes, principalmente os moradores de uma comunidade da região do córrego das Águas Espraiadas que faziam carreto em todas as feiras do bairro para ajudar o sustento das famílias e não pra comprar brinquedo, como era meu escopo profissional.

Como não existia ainda o sindicato dos carregadores de feira, senti na pele o peso da concorrência desleal. Ao voltar de uma entrega vi que uns três carregadores estavam parados em uma esquina a duas quadras da minha casa. Tentei mudar de trajeto, mas eles vieram atrás de mim. À medida que eu acelerava meu ritmo eles também corriam e percebi que era comigo mesmo. Quando ouvi o primeiro gritar “vem cá, moleque filhodaputa”, larguei o carrinho, saí correndo e só parei quando estava na cozinha da minha casa, atrás da minha mãe. Perdi o carrinho, os concorrentes se livraram de um forte player e o mundo pode ter perdido um grande empresário do ramo de transporte!

E assim, sem conhecer os meandros do mundo corporativo, tive contato com a concorrência agressiva e fali minha empresa de transporte em apenas três semanas. Perdi meu carrinho de carga, voltei a vender os jornais, mas no final de 1972 outra mudança de endereço daria uma reviravolta na minha vida, que afetaria meu destino até os dias de hoje.

*N.d.r – Hoje em dia não vejo mais carregadores de feira, alguém notou a falta deles?

 

 

 


Os Dias Eram Assados - o primeiro carro de corrida

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O som estridente do motor dois tempos do DKW entrou na minha corrente sanguínea

Os dias eram assados. O primeiro carro de corrida

Como fui parar em Interlagos pela primeira vez

Minha pré-adolescência foi a porta de entrada para as atividades radicais. Desde muito pequeno gostava de subir nas árvores do pomar da minha vó, para desespero dela e de toda a família. Aos sete anos tive minha primeira (de uma série) fratura. A casa de um vizinho estava em reforma e deixaram um monte de areia na calçada. Eu subia na laje e me jogava num vôo de uns 2,5m que parecia o canyon do Death Valley. Cada vez que eu me jogava tinha de refazer a montanha para afofar a areia. Até que num salto mais empolgado passei da areia e caí direto no chão, quebrando meu braço direito! Isso foi bem na véspera do meu primeiro dia de aula!

O que mais marcou e mudou a minha vida nesta época foram dois vizinhos. Um deles, filho de um importante advogado, ganhou um Fusca e se inscreveu nas provas de Estreantes e Novatos, em Interlagos. Para quem já era doente por carros e por corridas isso era simplesmente fantástico e imediatamente esse vizinho virou meu herói. Lembro que meu irmão mais velho também era maluco por corridas e foi nessa época que começou a colecionar Auto Esporte e Quatro Rodas. Gastava a mesada dele na compra dessas revistas. Foi por meio delas que ficávamos sabendo das corridas do Emerson Fittipaldi em algum lugar distante chamado Inglaterra.

E foi nessa época que cometemos várias insanidades em busca de emoção. E entra em cena outro vizinho, na verdade dois irmãos, conhecidos apenas como Giba e Gato. O Gato era o mais velho e com vocação natural para inventar coisas, entre elas os carrinhos de rolimã Fórmula – sim, era uma estrutura de madeira semelhante a um F-1, mas com rodas de rolimã. Ou o primeiro kart de rolimã, feito todinho de cano d’água.

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500 km de Interlagos de 1973. Essa eu assisti quase inteirinha dentro da pista.

Nosso autódromo era uma ladeira no Morumbi, mas para chegar do Brooklin até lá era preciso rebocar ou empurrar os carrinhos por quilômetros numa época que não havia ainda a marginal Pinheiros. Como era preciso manter os carrinhos em linha reta, os mais leves iam a bordo dirigindo e adivinha quem era o mais leva da turma, feito apenas de pele e osso, como dizia a minha vó? Eu mesmo!

Quando lembro disso fico imaginando como minha mãe não enfartou. Nós saíamos do Brooklin, arrastávamos carrinhos de rolimã até o Morumbi, voltávamos à noite e eu tinha uns sete anos!!! Ah, mas tinha a proteção do meu irmão mais velho, um “quase adulto” de nove anos! Hoje, olhando pelo Google Maps descubro que são apenas 6,4 km, mas que para um fedelho de sete anos parecia a Dutra inteira!

Quando a molecada cansava de empurrar os carrinhos a gente conseguia carona de um vizinho, dono de uma Rural Willys. Amarrávamos uma corda e ele ia puxando, comigo dentro do cockpit!!! Colocavam uma madeira para eu conseguir olhar por cima do volante e eu ainda podia usar um capacete dos pilotos “de verdade”. Eu ia o caminho inteiro me imaginando dentro de um F-1 de verdade. Dá pra imaginar o quanto eu viajava...

Corrida de verdade

Essa aventura dos rolimãs no Morumbi durou pouco. Menos de um ano da primeira experiência, um jovem entrou debaixo de um Fusca e morreu. Não vi a cena, felizmente, mas lembro dos mais velhos jogando os carrinhos todos na caçamba de um caminhão e demos o fora dali pra nunca mais voltar.

Construí meus próprios carrinhos de rolimã, nas versões de três e quatro rodas e não me conformo de ver hoje em dia pais comprando carrinhos prontos para seus filhos. Não façam: construir um carrinho de rolimã junto com seu filho é uma experiência de engenharia que ele vai levar pra toda vida. Meu pai não me ajudava porque eu não queria! Fazia meus carrinhos, testava na rua de casa, perdia alguns metros de epiderme, analisava o que tinha dado errado, refazia, me ralava tudo de novo.

A outra imensa insanidade teve participação de todos aqueles mesmos delinquentes do rolimã, mas quem pagou os pecados foi meu irmão. Um domingo alguém sugeriu:

– Vamos pra Interlagos ver o vizinho correr de Fusca?

Todo mundo topou na hora, só que nosso único meio de transporte era a bicicleta! Meu irmão tinha uma Monareta e eu ainda não tinha autorização para andar além dos muros da fábrica da Bom Bril que era bem atrás de casa. Imagine um bando de crianças e pré-adolescentes, saindo de bicicleta em direção a Interlagos, pela avenida Santo Amaro, em 1967! Eu fui na garupa do meu irmão, coitado, que tinha de fazer ainda mais força do que os outros! Lembre, não havia a Marginal Pinheiros e o percurso dava algo em torno de 15 quilômetros, só de ida!

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Autódromo de Interlagos ficava muito longe, no meio do nada!

Escondemos as bicicletas num matagal em frente ao autódromo e pulamos o muro, claro, porque ninguém ia pagar ingresso! Menos eu, que não pulei o muro porque era muito alto pra mim. Não pulei, mas entrei, porque me arremessaram por cima do muro e caí do lado de dentro como um saco de cimento!

O som dos carros de corrida já tinha deixado todo mundo eufórico. Corremos até o alambrado na subida do Café, bem no ponto que os carros passavam acelerando a pleno e assim que vi o primeiro carro de corrida passar por mim, com aquele som ensurdecedor minha vida nunca mais foi a mesma. Aquele som não entrava pelos ouvidos, ele reverberava no plexo solar, como um rufar de tambores.

Quase caí de costas. Não lembro quais carros eram, porque naquela época tinha desde carreteras com motores V-8, até ardidos DKW com motores dois tempos. Aquele cheiro de gasolina queimada entrou pelas minhas narinas, chegou na corrente sanguínea e nunca mais saiu.

E assim fui crescendo sempre com os joelhos e cotovelos esfolados, sumindo em loucas aventuras de bicicleta pelas ruas do Brooklin até meu pai comprar uma casa e nos mudarmos para um bairro distante e desconhecido, longe da civilização chamado de Jardim Prudência.

Os dias eram assados: o primeiro skate

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Era uma casa muito engraçada num lugar distante.

Os dias eram assados: o primeiro skate

Não existia pronto, então o jeito era fazer

Houve uma época na minha vida que mudávamos muito de endereço, a ponto de a minha mãe nos chamar de nômades. Tudo porque meu pai foi do tipo “self made man”, que veio de uma pequena cidade do interior, começou a estudar tarde, se formou e dono de uma ambição típica daquela geração (sucesso nos anos 60 era ter um Fusca e trabalhar no Banco do Brasil), foi conquistando empregos sempre melhores e mais bem remunerados até surgir uma oportunidade grandiosa.

Ele, junto com mais cinco empresários, acreditaram no projeto super moderno de um americano radicado no Brasil e fundaram uma construtora que mudaria a cara de São Paulo e até os conceitos de arquitetura e construção civil: a Forma & Espaço foi um marco na arquitetura com projetos de apartamentos pré-moldados, construção rápida, simples, barata e funcional. Mais do que isso, não exigia terrenos gigantescos como hoje.

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Você daria uma moto para essa criança?

Como resultado desse investimento bem sucedido nosso padrão de vida foi melhorando, embora naquela época eu nem tinha grandes ambições na vida – como não tenho até hoje. Uma das consequências desse novo padrão de vida era que podíamos morar nos projetos criados pela Forma & Espaço, inclusive porque era uma forma de mostrar que eram tão eficientes a ponto de seus diretores morarem neles. Outra consequência era que eu recebia mesada polpuda e não precisava mãos vender jornais nem fazer carreto na feira. Foi assim que, no final de 1970, nos mudamos do Brooklin para esse desconhecido bairro chamado Jardim Prudência.

O nome assustava todo motorista de taxi: Jardim Prudente? Vila Prudente? Quase ninguém sabia onde era! Naquela época era um bairro tão afastado que perto da minha rua tinha um clube de caça! Nenhum motorista de taxi queria nos levar, o ônibus era mais caro porque vinha de Diadema, que já era (e ainda é, mesmo que não pareça) outro município.

A casa ficava (e ainda fica) na parte mais alta do bairro, classificado como Z1, ou zona 1, exclusivamente residencial. O comércio ficava longe, assim como os pontos de ônibus (e ainda são até hoje). Para ir na padaria, açougue, banca de jornal, qualquer necessidade era só a pé ou de bicicleta, o que não seria ruim se as ruas não fossem de terra (ou lama) e se os moradores mais antigos não tivessem o costume interiorano de manter os cachorros soltos, inclusive dobermanns, pastores alemães e até filas gigantescos.

Além disso, minha escola ainda era no Brooklin, assim como as dos meus irmãos e, por força da necessidade de ir e vir minha mãe aprendeu a dirigir e nunca mais o mundo foi um lugar seguro.

Surfe & skate

Como resultado dessa melhora no padrão de vida já podíamos passar férias na praia em apartamentos alugados e não mais em casa de amigos e parentes. Em uma dessas férias passamos algumas semanas em São Vicente, na Baixada Santista. Lembro bem das festas no Ilha Porchat Club, nos dias inteiros na praia, dos doces da Praça da Biquinha (de Anchieta). Mas o que ficou eternamente grudado na minha lembrança e na minha alma foi o primeiro contato com uma prancha de surfe.

Já tinha feito algumas experiências com uma prancha de madeira em Bertioga (sim, uma madeira fina e curta) que era um desastre. Na verdade essa pranchinha era meio que o primórdio do body board porque só dava pra pegar jacaré. O problema dessa prancha é que a frente não podia emborcar porque travava no fundo de areia, fazia uma alavanca e quase entrava pela nossa barriga!

Nessas férias em São Vicente meu pai comprou uma prancha bem maior, de isopor, que foi um enorme avanço a ponto de eu passar o dia todo dentro da água. Logo de cara descobri que era preciso usar camiseta pra não assar os mamilos!

Não dava pra ficar de pé, mas eu ficava vendo os surfistas “de verdade” e aprendendo até que numa tarde inesquecível um deles deixou eu experimentar uma prancha de resina e foi paixão instantânea. Mas mesmo para um recém alçado à categoria de mauricinho a prancha de surfe de resina era muito cara para um fedelho de 11 anos. E eu não era exatamente um estudante exemplar e meu pai achava que me dar uma prancha de surfe faria eu desistir de vez da escola, algo que certamente teria acontecido...

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Twin surf shop foi um marco na minha vida.

De volta pra São Paulo comecei a pesquisar tudo sobre surfe. Descobri a primeira loja de surfe da minha vida, a Twin, em Moema, endereço que passei a frequentar esporadicamente admirando as pranchas e gastando a mesada em camisetas e qualquer coisa com a marca Twin.

Como tudo que eu me apaixonava passei a comprar revistas de surfe e foi numa delas que vi uma novidade que mudaria meu foco: uma pranchinha, com rodinhas que podia ser usada nas ruas chamada de skate!

Olhei, olhei e olhei mais vezes até perceber que era algo possível de ser feito em casa, afinal eu já era quase um marceneiro. Um pedaço de madeira em formato de prancha de surfe em menor escala, com dois eixos e quatro rodinhas. Olhando com mais atenção percebi que os eixos e as rodas eram muito parecidas com as de patins e foi assim que meu primeiro skate começou a tomar forma.

Minha irmã tinha um par de patins Torlay abandonado, até porque nessa nova casa as ruas eram de terra e não tinha onde patinar. Comparei os eixos dos patins e não tive dúvida: bastava serrar a plataforma para ter dois trucks perfeitos para um skate, mas faltava a prancha.

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Um par de patins na mão e uma ideia ruim na cabeça.

Nem precisou procurar muito e uma tábua de madeira ganhou forma de uma pequena prancha de surf. Medi tudo milimetricamente para furar a aparafusar os eixos e voilá, nasceu meu primeiro skate. Logo no primeiro check-down percebi que era tudo que tinha imaginado para ocupar o vazio que o surfe deixara na minha vida.

E adivinha onde foi o batismo de fogo? Naquela mesma ladeira do Morumbi onde eu descia de rolimã! Esse skate não corria muito – graças a Deus – e eu descia em linha reta, ganhava velocidade e entrava em uma subida que funcionava como “desacelerador” gradual.

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Esse pobre patim será serrado ao meio!

Rapidamente meus vizinhos da mesma idade se interessaram naquela pranchinha e começamos a picotar os patins para fazer novos skates. Logo depois a mesma Twin começaria a vender os shapes de fibra de vidro e eixos de skate feitos pela mesma Torlay que fabricava os patins. Foi assim que montei meu primeiro skate “de verdade” e já estava ficando bom nesse brinquedo quando houve outra reviravolta na minha vida, dessa vez de forma tão profunda que nunca mais fui a mesma criança.

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Skate vintage em homenagem à Twin.

Esse novo endereço no Jardim Prudência era muito chique, mas um inferno em termos de mobilidade. Meu pai nos levava para as escolas pela manhã, mas voltávamos de ônibus depois da aula. Eu chegava em casa tarde, morrendo de fome e ainda tinha os cachorros soltos que às vezes me fazia dar uma volta quilométrica para chegar em casa inteiro.

Por conta dessa dificuldade de mobilidade minha mãe aprendeu a dirigir e ganhou um Fusca 1969 verde que eu amava de paixão. Ela deixava eu voltar dirigindo. Imagine uma criança de 11 anos dirigindo em São Paulo! Minha mãe colocava uma almofada no banco para eu alcançar os pedais e, para parecer mais velho, eu usava só a armação de um óculos de grau.

Em pouco tempo eu já estava indo e voltado dirigindo, revezando com meu irmão. Até que um dia meu pai cometeu o desatino de nos deixar ir sozinhos dirigindo o Fusca. Como meu irmão parecia mais velho do que os 14 anos, achávamos que nenhum policial perceberia. De fato, nunca tivemos problemas, até uma mulher, grávida, passar mal, atravessar uma esquina preferencial sem parar e nos acertar a meia nau. A pancada foi tão forte que minha porta abriu e só não fui lançado pra fora do carro porque desde sempre usava cinto de segurança, não por questões de disciplina, mas porque eu achava que ficava parecido com piloto de Fórmula 1.

Meu pai só não sofreu um processo porque a moça grávida também não era habilitada e admitiu que teve um mal súbito. Assim cada um assumiu seu prejuízo, ninguém sem machucou, mas nossa liberdade de dirigir foi cassada.

Depois desse acidente meu pai voltou a nos levar para as respectivas escolas, com o agravante de ter de acordar quase às cinco da manhã. No entanto essa rotina sofreria outra mudança radical.

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Primeira moto que vi na vida foi uma Honda 65cc do eu vizinho.

Quando ainda morávamos no Brooklin tive contato com uma moto pela primeira vez. Nosso vizinho Gato Pascoalin tinha uma Honda Sport Cub 65 e ensinou meu irmão a pilotar. Eu olhava, mas não ligava muito pra moto, minha paixão era carro.

Para resolver a questão da mobilidade meu pai nos surpreendeu com uma ideia meio maluca para a época, mas que mudaria radicalmente a história da minha vida. Um dia ele chegou em casa com uma moto, uma Suzuki A 50II comprada na Mesbla e falou para o meu irmão:

– Pronto, a partir de agora você vai pra escola de moto e leva seu irmão!

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Voltando do Externato Pequenópolis com a minha Suzuki A 50II.

Quando vi aquela moto dourada entrando pela porta da garagem fiquei tão admirado com tanta peça cromada, brilhante, a pintura metálica, envernizada, com as luzes da seta, o velocímetro. Lembro como se fosse ontem a excitação de ver aquela moto tão linda e admirável que na primeira noite obriguei meu irmão a colocá-la no meio da sala e eu dormi no sofá, olhando pra ela.

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Aprendi a pilotar sozinho e a partir deste dia nunca mais fiquei um dia sem uma moto.

No dia seguinte não queria mais saber de skate, de surfe, de bicicleta e minha vida passou a ser em função somente das motocicletas. Só fui subir numa prancha de surfe e num skate novamente 46 anos depois...

P.S.

Sempre que eu conto a história do meu primeiro skate feito em casa muita gente duvida, principalmente os mais jovens. Por isso eu aproveitei um par velho de patins Torlay jogado no quartinho de bagunça e resolvi fazer um skate vintage em homenagem à Twin. Até ficou bem legal, com acabamento todo trabalhado com pirógrafo. Mas na hora do teste foi um fiasco. Ficou muito ruim! Na verdade o skate não ficou ruim, mas exatamente igual àquele que eu usava: só anda em linha reta e é péssimo de curva. Só que nestes 46 anos o skate evoluiu em todos os sentidos, tanto que fez meu primeiro skate parecer nada mais do que um patim com um pedaço de madeira!

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Acredite, com um pedaço de madeira e um pé de patim dá pra fazer um skate. E funciona!!!

 

Conheça as Royal Enfield 650

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(Visual 100% café-racer mais clássico do mercado. Foto: Fabiano Godoy)

Clássicas e divertidas

Um grande passeio com as novas Royal Enfield 650 Twin

Existem várias teorias sobre o apego às coisas antigas ou vintage. Pode ser desde a necessidade de uma conexão com o passado, até o puro e simples modismo. Seja qual for o motivo é inegável que a indústria percebeu essa tendência já há tempos e, claro, decidiu surfar nessa onda. Porém no caso da marca inglesa Royal Enfield essa tendência é diferente, porque ela sempre foi antiga.

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(O estilo clássico e confortável da Interceptor 650. Foto: Johanes Duarte)

Nascida em 1901, na Inglaterra, a marca sucumbiu a eficiência e estilo das japonesas e para não desaparecer de vez transferiu sua planta para a Índia, país que estava engatinhando no processo de industrialização. Os modelos de 535 cc são produzidos até hoje na Índia, com o mesmo aspecto das inglesas dos anos 1950.

Até que recentemente começou a desenvolver seus próprios projetos como a Himalayan 400 e em 2018 iniciou os projetos do motor de dois cilindros, que equiparam seus modelos pela última vez em 1970. Assim nasceram as Royal Enfield Continental GT 650 e Interceptor 650, que acabam de chegar ao Brasil (com preços entre 25 e 28 mil reais), e tivemos o prazer de pilotar por quase 1.000 km nas mais diferentes situações de clima e piso.

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(A posição de pilotagem da Interceptor permite pilotar por horas seguidas. Foto: Johanes Duarte)

O ponto alto dos dois modelos é o estilo absolutamente clássico. Não fosse pela injeção eletrônica e freios a disco daria para confundir com uma moto antiga. Aliás, esse é o charme! Ter uma moto feita hoje com o mesmo visual do ano que você nasceu (se tiver mais de 50 anos, claro).

Durante a apresentação os executivos brasileiros, indianos e ingleses mostraram o maravilhoso trabalho para criar peças como as tampas laterais do motor, a tampa do cabeçote ou o tanque de gasolina como se tivesse acabado de sair do túnel do tempo. E conseguiram, a exemplo do que já fez outra inglesa clássica, a Triumph com a linha Bonneville.

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(O motor é uma obra de arte, feito para parecer com as inglesas dos anos 50. Foto: Johanes Duarte)

Ah, importante: antes de mais nada, nem nos seus sonhos mais delirantes tente comparar essas Royal com as Triumph. São propostas, fábricas e investimentos completamente diferentes. Esclarecido isso, vamos ao teste.

Parada

Um dos pontos altos do estilo é a tentativa de aproximar ao máximo com as “originais”. Por isso o guidão da Interceptor é cromado e tem um cross-bar (barra como mas motos de cross). Espelhos redondos, assim como os instrumentos do painel, limitado a velocímetro e conta-giros. No velocímetro está o hodômetro total e dois parciais, bem como o marcador de gasolina. A respeito desses instrumentos devo registrar que em dois modelos avaliados apresentou condensação depois de molhar (chuva e lavagem). Também senti falta de um indicador de marcha e relógio de hora.

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(Painel clássico, com instrimentos redondos. Foto: Johanes Duarte)

Alguns detalhes chamam atenção como os protetores nas aletas do cilindro para não queimar os joelhos do piloto; um prolongador de plástico no para-lama traseiro, feito para ser retirado e dar um ar mais clássico ainda e o super bem vindo cavalete central na Interceptor que ajuda muito a vida no caso de um furo de pneu na estrada.

Na Continental GT gostei muito dos semi-guidões, do tanque totalmente café-racer e do banco já preparado para receber uma capa que o torna monoposto.

A título de curiosidade, os escapamentos lembram muito as Yamaha TX 650, motos criadas no começo dos anos 1970, justamente inspiradas nas clássicas inglesas. E já que o tema é volta às origens, outro item charmoso é a buzina dupla, como era nas motos europeias daquela época.

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(O motor tem duplo comando e defasagem de 270º. Imagem: Divulgação)

Ambas tem o mesmo motor de dois cilindros paralelos, com a ignição defasada em 270º. Essa configuração é o segredo para um funcionamento super suave, quase sem vibrações e que lembra muito as nossas antigas Honda CB 400. A potência fica em 47 CV a 7.250 RPM, que pode não ser muito animadora, mas o grande barato é a curva de torque quase plana, com 80% dos 5,3 Kgf.m entregues a 2.500RPM. Com esse torque e câmbio de seis marchas pode-se imaginar um funcionamento bem “elástico” e econômico.

Com várias combinações de cores – inclusive a maravilhosa versão cromada – esta Interceptor é um convite a customização. Eu mesmo pensei em várias!

Em movimento

Tivemos a oportunidade de rodar com as duas versões em uma bela região entre Cunha (SP) e Paraty (RJ) passando por uma tortuosa serra, porém sob chuva intermitente. Comecei pela Interceptor e foi uma boa surpresa. A posição de pilotagem é a mais tradicional possível, com o guidão largo, na altura ideal para meus quase 1,70m. As pedaleiras não ficam tão recuadas e, junto com o banco largo e de boa densidade, permitem pilotar por horas.

Logo nos primeiros quilômetros percebe-se o motor com funcionamento bem “liso” sem vibrações típicas dos bicilíndricos. E o câmbio não “pede” marcha como acontece nas motos modernas, especialmente as japonesas. Graças ao torque logo em baixa rotação, a sensação é de respostas vigorosas com força quase a partir da marcha lenta. Nesta hora faz falta o indicador de marcha porque é fácil esquecer de engatar a sexta!

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(Instrumento apresentou pequena consensação depois da chuva e do banho. Foto: Tite)

Na estrada foi a vez de avaliar o comportamento em diferentes velocidades. A velocidade ideal de cruzeiro fica perto de 120 km/h quando o conta-giros revela modestos 4.900 RPM (a faixa vermelha está a 7.500 RPM). A 100 km/h viaja super suave a 4.000 RPM. Claro que tive de ver como respondia em velocidades mais altas e num trecho tranquilo cheguei a 170 km/h ainda com curso no acelerador, porém a esta velocidade a frente se mostrou um pouco instável.

Notei que todas as 40 motos desta avaliação estavam rebaixadas em cerca de 1,5 cm. Isso não é normal e pode ser uma tentativa de minimizar esse efeito. É evidente que uma moto com esse caráter e pneus com medidas bem singelas (Pirelli Phanton Sportscomp radial 100/90-18 na frente e 130/70-18 atrás) não foi feita pra rodar a esta velocidade, mas vale a pena investir numa regulagem de suspensão ou mesmo uma barra estabilizadora (que está presente) para eliminar esse balanço. Conheço bem esses Pirelli porque são os mesmos que equipam a Triumph Street Twin e cheguei a velocidades acima de 180 km/h sem qualquer ressonância. Portanto é preciso acertar a suspensão (dianteira e traseira) ou, se não quiser levar sustos, instalar um amortecedor de direção.

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(Todas as motos avaliadas estava rebaixadas em cerca de 1,5 cm. Foto: Tite Simões)

Quase chegando na região de curvas da serra veio a chuva e tive a chance de avaliar se os Pirelli segurariam a bronca. Sim, com folga de segurança. Se o pneu traseiro mais fino pode perder um pouco de eficiência em curvas de média e alta velocidades, no piso molhado é um alívio, porque oferece aderência na curva e na frenagem. O que me tranquilizou foi o sistema de freios com disco e ABS nas duas rodas.

Continental GT

Os executivos da RE brasileira apostam suas fichas na Interceptor com razão. Será o modelo mais vendido, porém quando avaliei a Continental GT tive a impressão que a diferença entre as duas não será tão grande. Primeiro porque a posição de pilotagem é bem confortável, apesar de os semi-guidões sugerirem o contrário. O tanque é mais fino com encaixes para os joelhos. Os semi-guidões não são tão baixos quanto se imagina nas fotos. E as pedaleiras são recuadas uns 10 cm em relação à Interceptor.

Aqui vale uma explicação. Quando pilotei a Interceptor achei o câmbio um pouco impreciso, especialmente na passagem da quinta para sexta marcha. Já na GT o câmbio pareceu bem mais preciso. Só que é o mesmo conjunto motor e câmbio, como pode ser? Simples, como as pedaleiras do piloto são mais avançadas na Interceptor foi preciso usar um braço oscilante no pedal do câmbio. Essa articulação fez aumentar o curso da alavanca e tirar um pouco da precisão.

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(Na esquerda a alavanca de câmbio com articulação na Interceptor. À direita a alavanca direta da GT. Foto: Tite )

Em menos de 50 km rodados já estava muito à vontade na GT 650. A posição dos braços e pernas lembraram algumas esportivas dos anos 1980. O conjunto de suspensão é o mesmo em ambas as motos, com regulagem nos amortecedores traseiros (com reservatório de gás).

Conseguimos pegar um longo trecho de estrada seca e pudemos fazer algumas curvas mais tranquilos. Equipada com os mesmos pneus, a Continental GT também apresentou oscilação nas curvas, mas em função da posição de pilotagem – que joga o tronco do piloto mais para a frente – não apareceu o leve shimmy em alta velocidade nas retas.

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(Rodas raiadas, aros de alumínio e freios ABS. Foto: Johanes Duarte)

Difícil afirmar qual das duas seria a minha favorita. Gosto muito da esportividade da GT, mas o tanque em forma de gota e o guidão tipo “scambler” da Interceptor são um convite a viajar por horas a fio. Não pude avaliar o consumo, mas pelo que li nas avaliações feitas no exterior, fica na casa de 20 km/litro, que é normal para esse tamanho de motor. O tanque da Interceptor tem 13,7 litros, enquanto na GT tem 12,5 litros. Ambas tem peso contido para o porte, com 200 kg na Interceptor e 198 kg na GT.

Ainda sobre o estilo clássico vale uma reflexão. As rodas raiadas são quase uma unanimidade entre os admiradores de motos vintage. De fato são bem mais adequadas ao estilo, porém tem a desvantagem de obrigar o uso de pneus com câmara. Aí temos de considerar que pneu sem câmara é mais seguro e exige muito menos esforço para reparar um furo. Talvez fosse o caso de a Royal Enfield avaliar a possibilidade de adotar rodas raiadas com raios perimetrais, que permitem o uso de pneu sem câmara. Pelo menos nas unidades exportadas para o Brasil.

O mercado irá responder todas essas questões em breve, quando esses modelos chegarem nas concessionárias. Ainda existem poucas no Brasil, mas há previsão de abertura de novas nas principais capitais. A concorrência será com os modelos usados de Triumph e Harley-Davidson. O alvo é o público que curte motos customizadas, diferentes e clássicas. Essas Royal não tem o mesmo padrão de acabamento de Triumph e Harley, especialmente quando se notam detalhes como a pintura da mesa superior com pequenos pontinhos, num efeito chamado “casca de laranja”.

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(Ambas tem amortecedores traseiros com regulagem e gás. Foto: Johanes Duarte)

Ainda sobre mercado, a melhor notícia é que a Royal Enfield anunciou a instalação de uma fábrica no Brasil. Certamente na Zona Franca de Manaus, para aproveitar os subsídios federais. Além de ser uma prova da confiança em nosso mercado, essa unidade poderá servir para produzir modelos menores (de 350cc) para abastecer atender várias faixas de preço. Só não pode perder esse charme anglo-indiano que fez muito sucesso aqui.

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(Banco largo e confortável. Foto: Johanes Duarte)

Ficha Técnica, cores e preço clique AQUI.

Junto e misturado: Triumph Scrambler 1200

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(Estilo único, atraente com destaque para o belíssimo escapamento. Fotos: Tite)

A Triumph Scrambler 1200XE é a soma de tudo que uma aventureira precisa

Texto e fotos: Tite Simões

Ah, no meu tempo... Tem coisa mais chata do que esse discurso? Mas tenho de admitir que no meu tempo as motos eram pura e simplesmente... motos! Não tinha tanta especificidade como hoje em dia. Quem comprava moto tinha de usar na cidade, na estrada, fora da estrada, com garupa, com mochilão de lona nas costas e a vida era bem simples e divertida. Quando começaram a surgir as motos mais específicas para esportividade, off-road, custom etc foram aparecendo as tribos defensoras deste ou aquele estilo.

Aí vem a Triumph e resgata uma das categorias mais charmosas e versáteis de todas: a scrambler! A palavra scrambler em inglês significa justamente isso: misturador, embaralhador, algo que veio para bagunçar os conceitos. Nos anos 1960 as marcas japonesas se apressaram em trazer modelos com esse conceito, com pneus com duplo propósito cidade-campo, suspensões de cursos longos, guidão largo e o mais marcante de tudo que é o escapamento saindo pra cima, passando por baixo da perna do piloto.

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(Esta lindeza de escapamento provoca desconforto nas pernas de quem pilota)

Assim que montei nessa Triumph percebi que não foi feita para pilotos baixos. Com 870 mm de altura do assento ao solo ficou bem difícil para meus 1,68m. Para quem tem mais de 1,75m vai se sentir em casa. Como a ideia foi pegar estrada durante a semana, tive de enfrentar um congestionamento monstro que só os paulistanos sabem o que é. E foi nesse percurso que percebi de cara um enorme abacaxi que vai ser difícil solucionar: o calor do escapamento em contato com a coxa direita é simplesmente insuportável.

Sei que desenvolver um produto é a eterna briga do marketing com a engenharia. Claro que algum engenheiro percebeu que esse escapamento traria problemas e conforto, mas o marketing falou mais alto porque é simplesmente a peça mais bonita da moto. Bonita e insuportável. Não vou alongar muito no tema, porque é um desconforto que aparece somente no trânsito e esta é uma moto feita pra viajar e se divertir.

Como é

O modelo avaliado (XE) é o top da linha, com itens exclusivos e até a geometria diferente, mais alta, feita para uso misto de verdade. Em breve chegará outra versão (XC) mais simples, mais baixa e, claro, mais barata. A versão que tivemos em mãos tem preço (em SP) de R$ 59.990,00. Um pouco alto pelo o que oferece, sobretudo no conforto.

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(Painel com a tomada de conectividade de periféricos como GoPro) 

Como tudo que a Triumph desenvolve, essa moto tem um acabamento primoroso. Cada parafuso tem tratamento estético, peças de alumínio escovado estão por toda parte, mas o grande destaque é o tanque de gasolina em forma de gota (capacidade de 16 litros), com uma cinta de aço passando pelo centro e o bocal tipo Le Mans imitando os veículos antigos de corrida. Na verdade é só uma capa para esconder a tampa de plástico com chave.

Muito boa a solução na parte traseira, tentando resgatar as motos dos anos 1960, com pequenas setas fazendo as vezes da lanterna traseira. As setas tem dupla função: indicar a direção e de lanterna. A Harley-Davidson usa essa solução em alguns modelos e dá um aspecto bem mais limpo, sem lanternas enormes.

Outra ideia digna de nota são as rodas raiadas, mais fiéis ao estilo vintage. Para permitir a montagem de pneus sem câmara (os ótimos Metzeler Tourance) a Triumph usou a estratégia de raios perimetrais que não atravessam os aros. Solução já adotada pela BMW há décadas. A roda raiada, além de mais adequada ao estilo, tem a vantagem de ser mais confortável do que as rodas de liga leve.

Ainda olhando a Scrambler XE parada, podemos ressaltar o guidão largo de alumínio, os protetores de mão, a perfeita escolha pelos espelhos retrovisores redondos e o painel que merece ser detalhado. Com tanta tecnologia embarcada o painel se torna multifunção com várias informações extremamente úteis como consumo instantâneo, consumo médio, tempo de viagem, autonomia, além dos modos de pilotagem que variam do “rain” (chuva), que reduz a potência e torna a moto menos agressiva, até o modo “off-road pro”, que elimina todos os controles de tração e ABS.

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(Detalhe da roda com raios perimetrais. Permite uso do pneu Metzeler sem câmara)

Também devemos destacar o aquecedor de manopla (muito bem vindo no inverno) e o “cruise control” (controle de velocidade de cruzeiro). Em alguns países foi proibido o uso do termo “piloto automático” para essa função por dar margem a múltiplas interpretações. É o cruise control mais simples que já avaliei: basta um toque e está ativado! E, acredite, é um tremendo alívio para viagens. O sistema desativa mexendo no acelerador ou tocando num dos freios.

Tudo nessa moto foi pensado para ser estiloso. De tão bem desenhada é o tipo de moto que merecia ficar guardada na sala de casa!

Como anda

Muito! É uma das motos mais completas do mercado. O motor é um poderoso bicilíndrico de 1.200cc, capaz de desenvolver 90 CV a 7.400 RPM. A potência nem é o mais importante, mas o torque de 11 Kgf.m a apenas 3.950 RPM. Pra quem não gosta muito de interpretar esses números, isso significa que esse motor é extremamente “elástico” *, com retomadas de velocidade vigorosas praticamente desde a marcha lenta.

Em termos práticos é uma moto que exige poucas trocas de marchas e, ao contrário da maioria das motos japonesas, essa inglesa não fica pedindo marchas. No trecho urbano pode-se rodar em segunda e terceira na boa, sem constantes trocas de marchas. Neste caso o indicador de marcha no painel ajuda bastante.

À primeira vista as dimensões podem dar impressão de moto difícil de pilotar no uso urbano, mas tirando o desconforto do escapamento, a moto é bem maneável e até circula bem no caos paulistano. Só mesmo na hora de parar que a coxa encosta na proteção do escape e gera um sufocante contato! Para compensar escolhi um roteiro que teria longo trecho de estrada, duas serras e uma sequencia divertida de fora de estrada.

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(Lindo tanque de gasolina com bocal estilo Le Mans: pura nostalgia)

Na primeira parte uma das melhores estradas do Estado, com limite de 120 km/h, velocidade que o motor se mantém a tranquilos 4.000 RPM e ainda tem muito acelerador. Nesta velocidade a moto quase não apresenta vibração e roda muito macio, extremamente silenciosa. Só mesmo quando o motor é levado a mais de 5.500 RPM a dupla de escape emite um ronco esportivo, agradável, mas sem estardalhaço.

Uma das dificuldades enfrentadas pela engenharia para criar uma moto que seja eficiente em todo terreno é proporcionar aderência tanto no asfalto quanto na terra. A primeira boa surpresa foi perceber que isso a Triumph conseguiu total êxito. Boa parte desse sucesso vem dos pneus Metzeler Tourance (90/90-21 na frente e 150/70-17 atrás), com uma curiosidade: o pneu traseiro é radial, fabricado na Alemanha e o dianteiro é diagonal, fabricado no Brasil! Além de garantir boa aderência nas curvas, se mostrou silencioso na rodagem, algo difícil de conseguir em pneus de uso misto.

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(Não torça o nariz para a suspensão com dois amortecedores porque é ótima!)

Nos trechos de alta velocidade a Scrambler XE enfrentou as curvas com total segurança e sobra de limite. Pode-se mesmo inclinar sem medo e acelerar com vontade porque o controle de tração garante que não vai dar nenhum susto.

O melhor estaria por vir num trecho de serra muito travado, com curvas de mais de 180º. Para esse teste preferi usar o modo “sport” e o resultado foi a sensação de estar pilotando uma supermotard. Pura diversão!

Fora da estrada

Mas nem tudo é tão bom que não possa melhorar! Confesso que duvidei da eficiência dessa Triumph, mas nada como um teste para derrubar falsas impressões. A estrada de terra estava na melhor condição possível: seca, com areia fofa, erosões e pedras.

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(Pedaleira com cobertura de borracha, mas o escape atrapalha a pilotagem em pé)

Já escrevi mais de uma vez que a eficiência de uma moto no fora de estrada depende 80% do piloto. O que independe do fator humano é o bom trabalho do conjunto de suspensão, freios e pneus. No caso dessa Triumph a suspensão é um exemplo de globalização com garfo invertido Showa (japonês) na frente e par de amortecedores Öhlins (suecos) reguláveis na traseira. Esse conjunto é amplamente regulável, mas fica uma dica: se não entender como funciona nem se atreva e mexer porque o número de combinações é exponencial e nossa paciência é bem pequena!

Para esse percurso coloquei o módulo de injeção na posição offroad pro, que desliga todos os controles eletrônicos e tudo fica a cargo do piloto. Dos 850 km que rodei nesse teste foi, de longe, o trecho mais divertido. Como estava sozinho não abusei muito, mas foi o pacote completo: gás no meio da curva, saltos, todas as derrapagens possíveis e frenagens escorregando pra todo lado. Incrível como ela é maneável mesmo com seus quase 220 kg (em ordem de marcha). Mas o grande responsável por esse desempenho versátil são mesmo os pneus. Eles seguraram a onda e a maior surpresa foi sentir as frenagens seguras na terra!

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(As setas funcionam como lanternas traseiras.)

Único detalhe contra é mais uma vez os escapamentos que impedem que o pé direito apoie inteiramente na pedaleira quando o piloto fica em pé. Além de esquentar a panturrilha. Já a pedaleira tem uma proteção de borracha que pode ser removida para andar na lama e melhorar a aderência das botas.

De volta pra estrada de asfalto foi hora de fazer o balanço deste produto. Outra falsa impressão é do banco. Feito para parecer vintage, tem um desenho clássico extremamente elegante. Mas por ser fino passa impressão de desconforto. Esquece! Tem alma de gel e permite pilotar por horas seguidas. É a soma do charme com conforto. Só não tem espaço para nenhuma bagagem, nem mesmo uma capa de chuva. Certamente o mercado irá oferecer opções de alforjes e bagageiros.

Presença comum nos carros de luxo, essa Triumph adota a chave por presença. Basta carregar a chave no bolso. Segundo os marqueteiros, é o tipo de item que “agrega valor”. Na prática é um mimo totalmente desnecessário em motos. A velha chave codificada já atende 100% das necessidades. Outra função herdada dos automóveis de luxo é o painel que permite conectividade com smartphone e até câmera de vídeo GoPro. Esta função ainda não está disponível.

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(Chave tipo canivete com sensor de presença: um mimo desnecessário em motos)

Realmente o maior trabalho que a Triumph terá pela frente é resolver o desconforto gerado pelo escapamento que também incomoda quem vai na garupa. Existe solução, claro, que pode passar pelo simples revestimento de manta térmica, até algum espaçador mais eficiente. Porque esta Scrambler tem tudo para ser aquele modelo de moto três em um: para usar no dia a dia, pegar estrada e curtir um off-road, com muito charme vintage.

Preços, ficha técnica e revendedores, clique AQUI.

Tite Simões – jornalista especializado, instrutor de pilotagem. Contato: tite@speedmaster.com.br 

* Quando escrevo "motor elástico" significa que tem uma faixa de distribuição de potência e torque bem ampla. No caso dessa moto a potência máxima se dá aos 7.400 RPM e o torque a 3.950 RPM, o que dá uma faixa útil de 3.450 RPM

 

 

Foxnation! Motovelocidade e eu na Fox Sports

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Joe Roberts: de coadjuvante a ator principal. Note as duas manetes na mão esquerda. (Foto: MotoGP)

Foxcinante!

Minha estreia como comentarista esportivo

Na verdade não foi bem uma estreia porque eu já havia comentado o GP Brasil de Motovelocidade em Interlagos (1992) para a Jovem Pan. Mas foi a primeira vez na TV e para um público tão grande. Confesso que tremi.

O convite foi feito na quinta feira pelo meu amigo e colega Flavio Gomes, conhecido há décadas pelos comentários de Fórmula 1 e meu parceiro no Anuário AutoMotor. Diante do meu interesse ele comunicou a gerência da emissora que na sexta-feira mandou um recado com os dados de voo, hotel, taxi etc. Assim, em menos de 24 horas eu estava inserido na equipe da Fox Sports para comentar a primeira etapa do campeonato de 2020, nas categorias Moto3 e Moto2.

Foram duas noites sem dormir direito, cheio de borborigmos em vários tons até pegar um taxi na porta do hotel mega chique na Barra em direção aos estúdios da Fox, ali do lado.

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Parece um ovo com fone de ouvido! 

Encontrar Edgard de Mello Filho depois de quase 25 anos foi uma festa. Fizemos algumas pautas bem bacanas sobre motos e sempre acompanhei a carreira dele desde o tempo que ele corri de Opala e mandava o sapato em Interlagos. Cheguei super nervoso que nem uma virgem no altar e quando meu outro velho amigo Téo José abriu a transmissão eu gelei! Gelei e fiquei mais duro que bode na canoa. Não conseguia falar, nem olhar pros lados. Paniquei.

Até que ele chamou meu nome pra começar a comentar e aos poucos fui acalmando e entrando no clima. Posso garantir que é bem mais difícil do que imaginava. Fazer ao vivo é como desenhar com lápis sem borracha. Tipo tatuador que desenha direto na pele sem decalque.

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Desse lado praquele: Eu, Téo José e Edgard Mello Filho, o trio velocidade.

Quando tivemos um intervalo entre as baterias consegui relaxar e na hora da Moto2 a coisa rolou bem mais tranquila, fazendo uma parceria mais afinada com Edgard. O resto foi controlar os nervos e tentar falar de forma mais clara.

As corridas

Fiz a lição de casa direitinho, pesquisei os pilotos, equipes, dados técnicos e mesmo assim já mandei uma batatada logo de cara ao afirmar que a Moto3 tinha 60 cavalos, quando na verdade tem 75. Culpa do Google que me mandou pra uma matéria velha.

Alguns amigos comentaram: ah você precisa decorar o desenho dos capacetes. O quê? Pirou? Qual o tamanho da tela de vídeo na cabine? É igual à sua TV de casa. Além disso os capacetes são super parecidos, melhor é olhar os number plates e decorar.

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Os óculos de daltonismo pra não chamar Honda de Kawasaki. 

Pra minha sorte o Téo José que é um baita profissional estudou muito e chegou na cabine com um monte de anotações. Aprendeu a pronúncia dos nomes, decorou os números e mandou super bem. E o melhor de tudo: sem piadinhas bestas tipo “você que comprou a TV de plasma e pagou em 12 vezes no carnê”! Aprenda uma coisa: assinante da FoxSports compra TV à vista.

Na Moto2 eu já estava mais soltinho que arroz da vovó. Consegui estudar muito o pole-position Joe Roberts, a carreira, o passado e que não tem parentesco com Kenny Roberts nem com a Julia Roberts. O carinha começou a correr aos QUATRO anos de idade na modalidade Flat Track (oval na terra). Estreou no mundial de Moto2 em 2017 sem fazer todas as provas e seu melhor resultado foi 10º correndo na equipe AGR. Em 2018 fez todas as etapas na equipe NTS correndo com esse chassi NTS muito peba e seu melhor resultado foi 13º. Até que em 2019 mudou para a equipe KTM e seu melhor resultado foi um 14º lugar. Quando veio a primeira etapa de 2020 o cara cravou a pole-position.

Esse histórico mostra que não dá pra julgar um piloto só pelos resultados. Fosse assim o Joe Roberts não teria fechado contrato com a equipe American Race, com chassi Kalex. Ele não era um piloto ruim, só estava mal equipado e bastou sobrar um equipamento de ponta pra cravar a pole, liderar boa parte da corrida e ainda chegar em quarto, somando mais pontos do que as três temporadas anteriores!

Durante a corrida eu reparei que ele usa o freio traseiro na mão esquerda. Tentei falar isso na transmissão, mas não deu. Esse freio na mão esquerda é tema de um monte de discussão. A maior parte delas por pessoas que não entendem um cazzo de pilotagem. Os pilotos americanos e alguns australianos são criados em categorias de ovais na terra (o já citado flat track ou dirt track). Nestas provas as motos não tem freio dianteiro e o piloto comando a moto só no traseiro, usando a derrapagem como complemento da frenagem.

Quando chegam nas corridas de asfalto descobrem que não dá pra acionar o freio traseiro em curva pra direita. Como eles não usam mais a embreagem pra trocar de marcha, podem usar a mão esquerda pra frear o traseiro. Assim conseguem frear para os dois lados da mesma forma. E a pista de Losail gira horário, com mais curvas para a direita.

Mas o melhor da Moto2 foi sem dúvida a vitória – primeira – de Tetsuda Nagashima, da equipe Red Bull KTM, que largou lá atrás em 14º e veio comendo pelas beiradas até assumir a ponta a três voltas do fim. Foi uma aula de como economizar pneus e ele já pode abrir a disciplina Administração de Pneus na Universidade de pilotos. Foi super emocionante, pena que também não consegui comentar mais no final porque o sinal saiu do ar logo após o pódio.

Detalhe interessante foi a volta de Tom Luthi à categoria depois de uma claudicante temporada na MotoGP. Nenhum demérito voltar de categoria, porque às vezes é reflexo de o piloto “casar” melhor com um tipo de moto. Hoje a Moto2, com o motor tricilíndrico Triumph de 767cc está bem perto da MotoGP com 990cc. Pode ser que nesse formato o Tomas Luthi se encaixe melhor na categoria. Pode esperar que ele vai pra cima**post edictum - Obrigado pela correção: o Tom Luthi voltou para a Moto2 em 2019 e já mordeu o calcanhar dos líderes. 

Moto3

Sabe que mais? Fizemos o tempo todo sem o live timming! Live Timming é a tela da cronometragem oficial que fica aberta direto dando todos os tempos de volta de cada piloto, as distâncias, trechos rápidos enfim, toda informação que ajuda a se achar na corrida. Não funcionou e isso nos deixou várias vezes sem saber o que tava rolando.

A Moto3 foi aquela tradicional briga de foice no elevador com a luz apagada. A molecada cheia de hormônio querendo aparecer e todas as voltas como se fosse a última da vida deles. Albert Arenas (pronuncia-se Albért e não Álbert) saiu na primeira fila, segurou a onda e as Honda porque conseguiu colocar a KTM na frente de OITO Honda!!! Teve japonês bravo nos boxes!

Essa categoria é a mais raiz de todas porque não tem quase nada de eletrônica e se o piloto perder 300 RPM numa curva passam uns oito por ele. Foi muito difícil de narra e comentar porque tem zilhões de ultrapassagens por volta de dezenas de quedas (o Téo ainda está com a cabeça no automobilismo e fala que o piloto”bateu”).

Ainda não sei se farei todas as etapas. Estamos negociando e espero profundamente que assim seja. Me aguardem porque agora é #titenafox

Nova Dafra Citycom HD 300

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Estável e firme, mas curva pra esquerda precisa atenção. (Foto: Bruno Terena)

Ela chega ao mercado para complementar a família Citycom.

Sym, ele se parece muito com o Citycom 300i. Não, ele não vai substituir, mas complementar a linha 300 de scooter da Dafra. Muita gente – eu inclusive – achou que este novo produto entraria no lugar do já conhecido e líder da categoria o Citycom 300i. Mas para surpresa geral a empresa anunciou que ambos seguirão juntos. Então por que dois produtos tão próximos?

Se eu fosse especialista em marketing não seria jornalista, mas a explicação oficial foi para abrir o leque de opções aos usuários. Uma outra explicação provável é tentar se aproximar do ameaçador Yamaha X-Max 250 que está batendo a porta do mercado brasileiro. Seja qual for a explicação este Citycom HD 300 já está disponível na rede Dafra ao preço de R$ 21.490, com dois anos de garantia.

Portanto não é o caso de falar em “mudanças” porque são dois veículos diferentes, mas sim de “diferenças”. E as primeiras que saltam à vista são a ausência do para-brisa e a posição de farol (full Led) que na HD está fixado com o guidão. De acordo com o departamento de marketing, essa posição deixou as linhas mais modernas e aqui cabe uma curiosidade. Na verdade o farol no guidão tem nada de moderno, pelo contrário, as primeiras scooters tinham farol no guidão. Porém, como o vintage entrou na moda em todas as áreas, ser moderno é ser antigo. Entendeu a loucura?

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Esta versão tem o farol colocado na carenagem do guidão e luzes full led.

Seguindo esse raciocínio as linhas são mais arredondadas, justamente como eram nas primeiras Vespa e Lambretta dos anos 1950. As rodas também são diferentes, com os raios curvos e mais uma vez é um desenho que remonta lá atrás, nas clássicas café-racers dos anos 1960. Em suma, se a ideia era ser moderno conseguiram, porque hoje o moderno é ser antigo.

Sábia decisão foi colocar o bagageiro como item de série. No Citycom 300i o desenho da parte traseira é tão harmonioso que colocar um bagageiro com baú “mata” as linhas. Na versão HD 300 já foi previsto esse acessório e por isso mantém a aparência elegante.

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Sábia decisão de incluir bagageiro como item de serie.

Outras pequenas novidades são a abertura do banco e tampa de gasolina por sistema de pop-open na chave, gancho escamoteável para carregar sacolas no escudo frontal e uma redução de peso na ordem de 13 quilos.

Neste modelo o painel ficou bem interessante, com instrumentos mais modernos, display para os hodômetros total e parcial, nível de gasolina e até conta-giros que sempre achei meio inútil em scooters, já que tem câmbio CVT e não se troca marchas!

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O compartimento de carga comporta dois capacetes.

Uma diferença importante para o 300i foi a posição da bateria, que saiu da parte de baixo do banco e abriu espaço para aumentar a capacidade de carga em 27%, chegando a 38 litros. Pode comportar até dois capacetes. Só faltou um pouco de criatividade nas opções de cores: preto fosco e cinza fosco! Ideal para daltônicos!

Mais resposta

No conhecido e confiável motor de 278,3 cc, arrefecido a líquido, houve uma pequena mudança na faixa de torque em relação ao 300i. Na versão HD 300 o torque passou a 2,6 Kgf.m a 6.000 RPM e já explico o que significa na prática. Trata-se de um motor econômico, com 27,6 CV a 8.000 RPM, suficientes para permitir uma viagem tranquila a 120 km/h.

O teste dinâmico foi feito em um kartódromo e isso me lembrou o lançamento do primeiro Citycom 300 – mais de 10 anos atrás – que foi em um autódromo! Não gosto muito de teste de motos “civis” em autódromo porque não simula a realidade das ruas, mas foi possível perceber algumas importantes diferenças para o 300i.

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O motor tem boas respostas em baixa rotação e o câmbio é CVT.

A primeira delas foi a melhor resposta em baixa rotação. Reflexo não apenas da redução na faixa de torque máximo, como também no menor peso que se traduz em uma melhor relação peso/potência. Há milênios se sabe que reduzir o peso, mantendo a potência, deixa o veículo mais “esperto” de retomada de velocidade.

O quadro tubular é o mesmo do Citycom 300i, assim como as suspensões. Mas o banco está muito diferente, com um degrau bem maior entre o piloto e garupa. Confesso que gosto mais do banco da 300i, mas este novo formato melhora bastante o conforto na estrada, especialmente para quem viaja na garupa – não que isso seja a minha maior preocupação em uma moto!

Chegou o momento da avaliação e de cara já percebi que a posição do piloto ficou bem na medida pra meus quase 1,70m. Os pés ficam separados pelo túnel central, o guidão é largo e leve de manobrar. Meu corpo encaixou logo de cara como se fosse feito sob medida.

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Boa pegada em curva graças ao trabalho os pneus Metzeler Feelfree.

Na saída senti falta do para-brisa. É engraçado como isso faz falta depois de uma certa idade... Vento no rosto é para jovens! O primeiro teste que fiz foi o de retomada de velocidade, por ser a principal diferença para o 300i. Totalmente verdadeira a afirmação do engenheiro: melhorou a resposta em baixa velocidade e isso normalmente reflete positivamente no consumo. Não fizemos essa medição, mas acredito que fique na faixa de 28 km/litro o que é excelente para um motor de quase 300 cc.

O segundo teste foi de frenagem. Uma das minhas (poucas) queixas em relação ao 300i era com o freio traseiro que travava com facilidade. Mas o pênalti era a opção por discos de mesmo diâmetro nas duas rodas, algo que não se faz em motos/scooters: o freio dianteiro sempre precisa ser maior do que o traseiro.

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Freios a disco com sistema ABS.

No HD 300 isso foi revisto e o disco traseiro é menor (260 mm na traseira e 287 mm na dianteira), o que equilibrou bastante a frenagem, mas ainda apresenta tendência a travar o traseiro, totalmente sem problema porque tem ABS de duas vias. Um destaque na linha Citycom sempre foi o freio super eficiente, com as mangueiras tipo “aeroquip”, que mordem usando pouca pressão nas manetes. Agora a Dafra optou por duas versões: a 300i com freio combinado CBS e essa nova HD com freios ABS. Saiu de linha a 300i com ABS.

Depois de testar algumas centenas de motos e scooters com e sem freios ABS cheguei a conclusão – baseado em testes e não em “achologia” – que em motos/scooters até 180 Kg o freio combinado CBS atua muito bem e é mais simples. Mas o ABS se torna uma benção quando precisa frear no piso molhado. Mas este é um assunto para uma matéria técnica muito mais ampla.

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É confortável para piloto e garupa.

Para avaliar a suspensão recorri às zebras (guias) do kartódromo e foi possível perceber que está bem parecida com a 300i e que repete quase o mesmo comportamento de praticamente todos os scooters: é firme e progressiva na compressão dos amortecedores traseiros, mas um pouco “seca” na expansão. Traduzindo para o uso prático significa que no começo do impacto a scooter reage com suavidade, mas na “aterrissagem” o piloto (e garupa) sentem mais a pancada.

Aqui vale uma explicação porque quase todos os scooters são assim. Na verdade tem a ver com o fato de o piloto ficar sentado, e não montado, por isso a sensação é de um trabalho mais “duro” da suspensão traseira.

Esse HD 300 também repete o mesmo comportamento do 300i nas curvas: ou seja um pouco “arisco” na entrada da curva, mas super tranquilo na sequência. O que ajuda bastante nesse trabalho são os pneus Metzeler Feelfree, aro 16. Scooters com aro 16 polegadas são tudo de bom para fazer curvas e superar obstáculos. Um dos pontos altos desses pneus é o comportamento muito seguro no piso molhado.

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Dentro do porta-luvas tem uma tomada USB para periféricos.

Só precisa ficar esperto em curvas para a esquerda porque o cavalete raspa no asfalto muito facilmente. Mas isso é um scooter, tá? Não é uma moto esportiva.

Por fim, esse HD é um alívio para quem costuma levar passageiro. O banco é largo, super macio e parece uma poltrona. Moleza total! Se preferir pode regular as molas da suspensão traseira – usando uma ferramenta do kit – e calibrar para o uso frequente com garupa.

Sei que parece estranho a Dafra manter dois produtos tão parecidos, mas é uma estratégia comum para permitir uma oferta maior sobretudo nos preços. Muitas vezes um valor um pouco menor ou maior facilita ou complica a aprovação de crédito. Ter um leque maior de preços ajuda a encaixar no orçamento.

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As cores não são muito variadas: cinza e preto.

Em termos de concorrência, o Honda SH 300i (R$ 21.490) é um produto que se tornou praticamente de nicho porque atende um público que prefere sofisticação. Já o Yamaha XMax 250 (?) ainda é uma incógnita porque acabou de ser lançado. E o Kymco Downtown 300i (R$ 23.900) ainda tem uma participação muito discreta no mercado. É uma boa briga nessa fatia do mercado, dominado pelo já conhecido Citycom.

Preços, rede de concessionárias e ficha técnica clique AQUI.

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O painel é moderno e tem contagiros.

 

Café expresso: conheça a Kawasaki Z900RS Café

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A Kawasaki mais uma vez surpreende com uma clássica

A Kawasaki é dona de duas marcas icônicas no Brasil: jet ski, que condenou todos os outros fabricantes a adotarem o insosso nome “moto aquática”, e Ninja, sinônimo soberano de prazer e desempenho no mundo das motos. Com essas credenciais a marca Kawasaki faz parte dos objetos de desejo de toda uma geração, mas nem sempre se traduziu em números substanciosos no nosso mercado, fruto de várias idas e vindas na administração da marca.

Felizmente, hoje a marca está oficialmente no Brasil, já tem uma discreta rede de concessionários e os novos produtos, como este avaliado, tem dois anos de garantia.

Desde que o “vintage” entrou de vez na moda várias marcas correram para apresentar suas armas e a Kawasaki não brincou em serviço. Foi buscar inspiração na própria história com a 900 Z1 de 1972, concorrente direta da Honda CB 750Four. Se a Kawasaki deixou sua marca na História com a geração Ninja, o título de persona canonizável no mundo das motos vai para Soichiro Honda, que popularizou o motor de quatro cilindros em linha ao lançar no mercado americano a CB 750Four em 1969. Todas as “Four” que vieram a seguir devem reverência a ele.

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Detalhe do motor quatro cilindros de 109 CV com aletas funcionais.

Por isso não tem como falar em clássica esportiva sem pensar em um projeto de motor quatro cilindros. Que me perdoe a Triumph e suas belas Bonneville, mas “quatro-em-um” é fundamental!

Para desenvolver essa coleção, Z900RS (Retro Sport) nas versões naked e Café, a Kawasaki foi nas prateleiras da linha de montagem e sacou o quatro cilindros da naked esportiva Z900, porém devidamente amansado. Perdeu um pouco de potência (ficou com 109 CV a 8.500 RPM) e de torque (9,7 Kgf.m a 6.500 RPM), números totalmente capazes de entregar desempenho até acima do necessário. Entre as mudanças nesse motor para se adequar ao visual clássico foi a redução da taxa de compressão (10,8:1) que aceita nossa estranha mistura de petróleo com cana de açúcar, que chamam pelo apelido de gasolina.

Nem vale a pena detalhar muito o motor porque é muito mais divertido descrever como anda, que será em breve. Só vale a pena ressaltar o fino detalhe de acabamento ao manter as aletas de arrefecimento, mesmo sendo a líquido com um baita radiador. Essas aletas são funcionais sim, mas sua verdadeira razão é “parecer” coisa antiga. Deu certo, porque nada é mais desestimulante do que uma moto clássica com os cilindros “pelados”.

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A suspensão dianteira é invertida, com regulagens. Os freios a disco contam com ABS. 

O modelo que escolhemos para avaliação foi a versão Café Racer (R$ 49.990), na mítica cor verde abacate. Não tem como curtir Kawasaki sem gostar dessa cor. Tem até uma opção cinza que só pode ser um pedido do pessoal do marketing, mas é tão estranha quanto a Seleção Brasileira jogando de azul. As diferenças dessa Café para a RS clássica são: a carenagem de farol, guidão e banco.

Desde que a Kawasaki apresentou essa moto no Salão de Milão em 2017 – e logo em seguida aqui no Brasil – já despertou o interesse dos que buscam o clássico sem abrir mão da tecnologia. O estilo é um banho de inteligência da turma da engenharia porque conseguiu manter aparência clássica como o farol e instrumentos redondos, quadro tubular, rabeta, tanque de gasolina em forma de gota (17 litros), com tecnologia moderna como a suspensão dianteira invertida, enormes discos de freio (com pinças radiais), suspensão traseira monoamortecida, pneus radiais e rodas de liga leve.

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No punho esquerdo está o seletor do controle de tração.

A tecnologia moderna se apresenta na eletrônica, como o controle de tração em dois níveis, na injeção, nos freios ABS e ignição. Nenhuma novidade, mas o controle de tração é válido sobretudo no piso molhado porque o torque em baixa é brutal. E claro que tem os detalhes de comodidade que ninguém abre mão como a chave codificada e uma tomada 12V (tipo acendedor de cigarro) sob o banco. Ah, essa trava do banco é protegida por uma capa de borracha pra não entupir de sujeira.

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O melhor dessa Kawasaki é pegar estrada cheia de curvas. 

Hora da estrada

Por favor nem pense em comparar essa Kawasaki com qualquer clássica da Triumph! Não são comparáveis em nada! Aqui no Brasil não tem concorrente para esta Z900RS. Lá fora ainda tem a Honda CB 1100RS que também segue a linha retrô. Mas aqui ela está sozinha nesse nicho.

Antes de pegar a estrada, um passeio nas ruas de São Paulo pré-quarentena, com o trânsito típico. Quem olha para o guidão em forma de asa de gaivota, plano e ligeiramente largo, poderia imaginar uma posição desconfortável para rodar no trânsito. Felizmente não é. Com a posição das pedaleiras recuadas (mas não muito) e o banco bem cavado na parte do piloto, mesmo um nanico de 1,68m consegue colocar os dois pés no chão sem dificuldade. Pena que os pesinhos nas extremidades do guidão sejam exagerados, porque atrapalham um pouco na hora de passar entre os carros.

Para manobrar desligada senti falta das barras de apoio para garupa (oferecidas opcionalmente), mas foi fácil deslocar os 215 kg (em ordem de marcha). Depois de engatada a primeira das seis marchas aí a mágica acontece, porque é muito maneável e “leve” no trânsito. O escalonamento de marchas é típico das motos japonesas com as primeiras bem curtas e logo se engata a sexta. Felizmente tem indicador de marcha no painel!

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Painel completo, com instrumentos redondos.

Outra boa surpresa foi a suspensão muito bem calibrada para o uso urbano (dianteira e traseira com regulagens na mola, compressão e retorno). Podem gastar latim à vontade sobre a coerência em usar duplo amortecedor traseiro nas motos estilo vintage, mas nada supera o monoamortecedor, nada! Nem a melhor engenharia consegue fazer dois amortecedores convencionais serem mais progressivos, confortáveis e eficientes do que o mono. Infelizmente, porque no aspecto visual o duplo é bem mais compatível com o estilo.

Mesmo com o guidão mais baixo o piloto não fica muito apoiado nos punhos e torna-se tranquilo rodar em baixa velocidade. Outra preocupação no trânsito urbano é com o calor que normalmente sobe do motor, mas até isso é bem suportável nesta Z900RS. Mesmo quando liga a ventilação forçada. Só acho que poderia ter embreagem hidráulica, porque o sistema por cabo cansa no anda-para da cidade.

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Linhas clássicas que combinam com a semi-carenagem.

Na estrada

Aí sim! Motor grande (948cc pra ser exato) gosta de rotação! Rodar na cidade em baixa rotação consome mais (cerca de 16 km/litro), embora seja um propulsor extremamente “elástico”, capaz de retomar em sexta marcha já a partir de 1.500 RPM! Algo fantástico dentro dessa categoria.

Mesmo com essa característica quando se entra na estrada essa Kawasaki não fica “pedindo marcha”. Até 120 km/h (4.500RPM em sexta) o motor é tão “liso” que parece deslizar sobre um colchão. Vibração mesmo só acima de 7.000 RPM, sentida nas pedaleiras e guidão principalmente na desaceleração. Mantendo uma velocidade de cruzeiro entre 100 e 120 km/h a média de consumo melhora bastante chegando até a 20,5 km/litro. No completo e bem desenhado painel tem as opções de consumo instantâneo e média no percurso. Além do já citado indicador de marcha, nível de gasolina, temperatura do líquido de arrefecimento, controle de tração e as já tradicionais luzes-espias.

O único inconveniente pra mim veio da bolha da carenagem. Acima de 80 km/h ela desvia o vento justamente para a minha testa, causando um aumento do ruído no capacete. Depois de um tempo achei uma posição que reduzia um pouco, mas já percebi que este é um ponto a ser observado pelos usuários. Existem bolhas alternativas no mercado para amenizar essa característica.

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Ela vem só com apoio lateral. O cavalete central é vendido como acessório.

Quando vi que essa clássica vem sem o cavalete central até torci o nariz – é oferecido opcionalmente. Na minha concepção toda moto clássica deveria ter cavalete central, quem quiser tirar que tire! Mas a explicação da ausência veio na primeira serra que enfrentei. Pra dizer a verdade, na primeira curva pra esquerda! Sem o cavalete essa Z900RS Café inclina facilmente, com margem de segurança, até tocar a pedaleira no asfalto. Se tivesse cavalete seria um limitador a mais.

Moto é um veículo feito para inclinar. Algumas mais, outras menos, mas quanto mais ela inclina maior a sensação de prazer ao pilotar. O divertido nessa Kawasaki é que ela consegue um difícil compromisso entre esportividade, conforto e diversão. Tudo na medida certa para ser aquela única moto na garagem. Na minha psicose de testador compulsivo peguei até estrada de terra e abençoado seja o criador do controle de tração. Claro que ela não foi feita pra isso, mas foi bem melhor do que uma esportiva pura.

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O habitat dessa Cafe Racer é a estrada, onde o consumo médio é de 20,5 km/litro.

Não cheguei a testar o controle de tração no asfalto porque estava seco e quente (e eu estava bonzinho). Os pneus originais Dunlop Sportmax GPR 300 seguram bem no uso civilizado, embora tenha ficado longe do limite. Para quem é “curvodependente” que nem eu tem opções mais esportivas como o Pirelli Rosso III nas mesmas medidas originais do aro 17 polegadas (120/70 e 180/55).

Muito tranquilizador é contar com esse kit de freios a disco eficientes e progressivos. Especialmente o freio traseiro que permite controlar a velocidade nas curvas sem tendência a travar. O dianteiro – dois discos, com mangueiras de borracha – são bem progressivos. Mas eu também trocaria por um flexível revestido com malha de aço. Coisa de quem gosta de frear com dois dedos.

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Mesmo com apenas uma lente o farol é muito potente.

A melhor parte das estradas sinuosas é ouvir os quatro cilindros trabalhando a cada troca de marchas. Mas com esse motor tão vigoroso em baixa rotação dá pra manter quase o tempo todo em quinta! Só por curiosidade deixei uma marcha engatada até cortar o giro a 10.500 RPM (a faixa vermelha vai de 10 a 12 mil giros). Fiquei só imaginando o ronco desse escapamento com uma ponteira esportiva – felizmente o imenso catalisador e silenciador estão antes da ponteira. Nesta hora da aceleração a pleno é que se entende o motivo do banco em dois níveis: sem ele o piloto pode ser arrancado de cima da moto!

Ainda sobre o banco, nessa versão “cafeinada” o espaço do garupa tem um cocuruto justamente para funcionar como a rabeta esportiva. Essa espuma a mais pode ser um conforto extra para o passageiro, mas como a inclinação é negativa dá a sensação de ficar meio solto. Pra isso a Kawasaki oferece (lá fora) as barras de apoio para garupa (e outros acessórios). Vale a pena investir nisso.

Nem pense em instalar bagageiro, muito menos um baú, porque isso é um crime de lesa-design. Em volta do banco já tem ganchos para prender alguma pequena carga – como meu skate – ou capa de chuva, mas acostume-se a usar mochila!

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Sem chance instalar bagageiro! Ela tem ganchos para prender pequenos pacotes.

Quem olha desconfiado para os faróis redondos de lente única aqui vai outra dica: hoje em dia com iluminação por LEDs o tamanho do farol não influencia mais. Neste caso o facho é mais do que suficiente para viagens noturnas bem tranquilas. Em compensação pense numa buzina ridícula! Uma buzina dupla cairia muito melhor e até combinaria mais com as motos da época.

Concluindo, a Kawasaki Z900RS em suas duas versões é a aliança entre urbanidade, turismo e esportividade, num visual clássico dos anos 1970. A combinação entre novo e antigo nunca foi tão bem afinada. Para meu gosto essencialmente pessoal só sugeriria um downsizing, um motor de 750cc, porque não precisa tanto desempenho. Há anos não faço medição de velocidade máxima em estradas, mas pelo que li nos testes gringos pode chegar fácil aos 220 km/h, mais do que suficiente em tempos de radares nos olhando.

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Aprovada no teste de skatebilidade.

Não posso encerrar sem duas importantes avaliações. O teste de skatebilidade, totalmente aprovado graças aos ganchos para prender pequenos objetos. E o já mundialmente famoso IPM – Índice de Pegação de Mina (ou Mano) – que pode chegar a 9,0 pelo charme vintage. Não chega a 10 porque não tem como a mina (ou mano) se segurar no banco. Até colocaram uma cinta à moda antiga como se fosse uma sela de cavalo mas, fala sério, é a primeira coisa que eu arrancaria fora na minha!

Para ficha técnica, pontos de venda e preços clique AQUI.


Customização e segurança.

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Customização pode ser uma obra de arte! (Foto: Wel Calandria)

Como fica a segurança da moto depois de alterações mecânicas e estéticas.

A moda é curiosa. Parece que as tendências vão e voltam como ondas. O tempo passa, os gostos mudam e pá! de repente o que era antigo volta a ser moderno. Hoje estamos presenciando uma onda de customizações de motos, especialmente na tendência caféracer e seus derivados. A ideia é parecer as motos dos anos 50/60, quando alguns conceitos de segurança ainda engatinhavam ou simplesmente nem existiam.

Costumo brincar com meus alunos ao explicar que um engenheiro teve de estudar seis anos, fez cálculo 1, 2, 3 etc. Passou um ano desenvolvendo e defendendo um TCC, conseguiu estágio, estudou, aprendeu, se atualizou, desenvolveu até criar uma moto em seus mais complexos itens. Aí vem uma pessoa de Humanas e muda tudo!

Claro que isso tem consequências. A moto é um veículo de equilíbrio muito delicado. Ela se apoia apenas em dois pontos, tem uma divisão de massa muito bem calculada e pensada. A simples mudança de um guidão mexe com todo esse equilíbrio. Ah, então não vamos mais mexer nas motos? Sim, vamos, mas com conhecimento e bom senso, artigos raros hoje em dia.

Vou dividir por partes para facilitar:

Pneus– Vou começar por aqui porque é o item que mais exige consciência e que mais compromete a segurança. Tenho visto todo tipo de aberração em motos customizadas. A maior delas é usar pneus on-off road em motos de uso urbano, especialmente nas dos estilos Brat e Bobber. O pneu de uso misto pode ser aplicado nas motos urbanas sem problema, mas tem critérios e limites. Por exemplo, nas motos pequenas com aro 18 polegadas é fácil encontrar um par de pneus de uso misto1. Mas nas motos maiores é quase impossível achar o dianteiro, porque geralmente as motos de uso misto tem aros de 19 ou 21 polegadas de diâmetro.

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Como frear uma moto de 900cc no asfalto com esse pneu???

Aí a criatividade e capacidade de improviso falam mais alto e o customizador instala um pneu traseiro na roda dianteira, a maior de todas as aberrações em se tratando de motocicletas. Imagine uma moto de 900cc, 48 CV, 230 kg, capaz de chegar a 180 km/h tentando frear apoiada em dois pneus TRASEIROS de uso misto!

Mesmo que seja difícil de acreditar, moto não é um carro de duas rodas! O que funciona em carro não dá certo em moto e vice-versa. Geralmente os quatro pneus dos carros são iguais. Mas nas motos os pneus dianteiro e traseiro são bem diferentes e tem de ser assim! O pneu dianteiro responde por boa parte da frenagem e pela inclinação no início das curvas. O pneu traseiro é responsável pela tração e por apoiar a moto nas saídas de curvas. Eles nasceram e serão sempre diferentes, cada um com sua função.

Não é só isso. Os pneus de uso misto tem gomos mais espaçados, mais altos e mais macios, porque previu o uso tanto na terra quanto no asfalto. Em uma moto de uso essencialmente on road estes gomos causarão muito ruído, aumento no consumo, perda da aderência em curvas e – pior de tudo – não responderão com segurança numa frenagem mais forte. Além de muitas outras consequências.

Com relação à caféracer hoje já encontramos pneus atuais feitos nos moldes mais clássicos. Mais uma vez, para ser fiel ao estilo, tem customizadores buscando pneus que se assemelhem aos dos anos 50/60. Inclusive com faixa branca2. Mas é importante frisar que nos anos 50/60 as motos não inclinavam tanto, os freios eram menos potentes e as velocidades mais baixas. Usar um pneu de desenho e formato clássicos em motos atuais terá de respeitar essas características. O piloto não poderá inclinar demais, nem frear forte.

O que é diferente no caso de restaurações! Por exemplo, motos das décadas de 60 e 70 podem rodar com pneus clássicos, porque elas foram feitas para isso. O que não combina definitivamente é uma restauração clássica com rodas mais largas e pneus esportivos de hoje em dia! Isso tem outro nome: Frankenstein. Para as motos estilo clássico também existem pneus que atendem essa necessidade de visual clássico sem comprometer a estabilidade e a segurança3.

A maior temeridade que surgiu nessa onda de customização é o uso de pneus de carro em moto! Para dar a aparência mais clássica alguns artistas apelaram para qualquer coisa que se assemelhe a um pneu antigo. Às vezes é preciso trocar a roda por uma menor para poder receber os pneus de carro. Só não quero ver como vai ficar na curva, porque carros não inclinam!

1- Para motos pequenas a Pirelli tem um pneu de uso misto que atende com segurança que é o Citycross.

2- Para motos clássicas a Metzeler tem uma opção com faixa branca, o ME 888 Marathon Whitewall

3- Para motos maiores aro 18” existe a opção do Phantom Sportscomp

- Guidão– Confesso que na minha infância motociclística troquei muito guidão de moto. O mais comum nos anos 70 era o tipo “morceguinho” que podia instalar nos suportes originais. Depois veio a moda dos Tomaselli, que na verdade são dois semi-guidões colocados diretamente na bengala da suspensão.

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Guidão Tomaselli colocado direto na bengala.

            Mudar só o guidão – alto ou baixo – mexe com o equilíbrio da moto porque muda a posição de pilotagem e o piloto vai transferir mais massa para o eixo dianteiro (guidão baixo) ou no traseiro (guidão alto). O ideal seria mudar também a posição das pedaleiras, mas nem sempre isso é fácil ou possível.

Nos dois casos será preciso trocar também os cabos e mangueiras de freio, embreagem e acelerador, além do chicote elétrico. Para guidão mais baixo apenas pela estética, porque os cabos ficarão bem maiores, fazendo uma curva maluca bem na cara do piloto. No guidão mais alto porque os cabos podem ficar esticados a ponto de quebrar. Pior: o cabo do acelerador “estica” quando vira pra esquerda e acelera a moto sozinho.

O guidão baixo exige uma atenção especial ao tanque de gasolina. Lembro de uma vez que passei horas trocando o guidão de uma moto por um par de Tomaselli para descobrir que ele batia no tanque! Pense numa raiva! A solução foi mexer no batente do guidão, mas ela aumentou muito o ângulo de esterço e ficou horrível de manobrar. Por isso é preciso medir e checar tudo cuidadosamente antes de ver aquele mundo de peças pelo chão.

Outra consequência do guidão baixo é o agravamento da carga na suspensão dianteira. Com o tronco mais pra frente o piloto força a suspensão pra baixo – especialmente nas frenagens – e tira um pouco da maneabilidade da moto. Para compensar isso pode-se adotar duas opções: aprender a segurar o peso do corpo pela pélvis (haja saco!) ou colocar banco e pedaleiras bem para trás. Mais barato aprender a usar as pernas para se segurar!

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Guidão alto dificulta as manobras e as frenagens. 

Uma das modificações mais esquisitas é o uso de guidão bem alto, tipo easy rider, ou o famoso “seca sovaco”. Só para esclarecer que esse tipo de guidão surgiu nos EUA nos anos 50/60 quando do nascimento das gangs de motoqueiros. Como os caras eram casca grossa de verdade, as brigas entre eles terminavam em carnificina. Uma das táticas usadas pelas gangs era amarrar um fio de arame entre dois postes, atravessando a largura da rua, para degolar os rivais. Técnica que nosso Lampião já usava aqui no nordeste 30 anos antes. Para não ter a cabeça arrancada do pescoço esses motoqueiros americanos criaram esse guidão alto, assim o arame pegava no guidão antes da degola.

Claro que virou moda e estilo de vida! Tecnicamente mexe bastante com o equilíbrio da moto porque concentra mais massa no eixo traseiro. É inevitável a troca de todos os cabos e mangueiras. Mas o pior desse guidão alto é que dificulta muito a frenagem, tanto pela mudança da posição do punho em relação à manete de freio, quando pela falta de apoio no momento da frenagem.

Outro dado sobre o guidão tem a ver com o princípio elementar da alavanca. Guidão ou semi guidões são nada mais do que alavancas e quanto maior menor a força para mover e vice-versa. Deve-se levar em conta que a moto pode ficar mais ou menos maneável, de acordo com a largura total do guidão.

Isso não quer dizer que é para manter o guidão original, mas antes de fazer alguma mudança muito radical analise como pretende usar a moto e o quanto isso mexe com o conforto e maneabilidade. 

Escapamento– É um dos primeiros itens a ser modificado. O que pouca gente sabe é que ele faz parte do motor e se for feito sem critério pode afetar – para pior – parâmetros de consumo e desempenho. Um dos maiores mitos entre motociclistas é atribuir o escape “aberto” ao aumento de desempenho. Mas não é bem assim. O som mais alto e grosso induz o cérebro a acreditar que está correndo mais.

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Até os escapamentos esportivos tem silenciador!

Para conseguir desempenho o escapamento tem uma série de parâmetros como curva e diâmetro dos tubos, comprimento e velocidade de vazão que tem influência direta no “caminho” que os gases fazem. Além disso, hoje em dia existe a preocupação com emissões de gases e ruído e o escapamento é o item que contribuiu bastante para reduzir a emissão de poluentes.

Os primeiros catalisadores ficavam dentro do escapamento, ocupando quase todo o tubo. Hoje em dia, já pensando na customização, a maioria das motos tem o silenciador e o conversor catalítico – bem menor – colocados antes da ponteira. Assim pode-se trocar apenas as ponteiras sem aumentar os níveis de emissões. Mas ainda tem o nível de ruído, por isso é preciso que a ponteira nova tenha o silenciador. O ronco fica mais grosso, encorpado, sem estourar os tímpanos de quem pilota ou está perto.

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Em algumas motos o catalisador e o silenciador ficam antes da ponteira.

Filtro de ar– Nem sempre a customização piora a moto. Hoje o mercado oferece várias opções de filtros de ar menos restritivos que melhoram o desempenho sem comprometer o consumo nem a durabilidade do motor. No entanto o que vemos nas customizações em geral é a pura e simples retirada do filtro de ar!

O filtro de ar não está ali só por enfeite ou firula, ele tem uma importante função de eliminar ao máximo as impurezas que chegam no sistema de admissão de combustível. Funciona como os pelos do seu nariz. Mas não é só isso. Também ajuda a reduzir as emissões de poluentes e de ruído. Na busca por equiparar as motos modernas com as clássicas, sobretudo as caféraces, tem gente simplesmente retirando o filtro e usando uma “corneta” de admissão. Isso funciona em corrida de motovelocidade porque é um ambiente limpo e o motor passa por revisões constantemente. Mas no dia a dia a pura e simples retirada do filtro condena o motor a um desgaste prematuro, além de aumentar o ruído e a poluição.

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Note o filtro de ar de elemento seco: solução que salva o motor, mas aumenta a emissão de gases.

Não precisa – e nem deve – retirar o filtro por uma questão estética. Até existem no mercado filtros de elemento seco que simulam as antigas “cornetas”. Mas uma das funções do filtro e da caixa de filtro de ar é receber os vapores do motor (óleo e gasolina), que são reabsorvidos pelo filtro de ar e não chegam na atmosfera, reduzindo a poluição.

Hoje em dia as pessoas gostam de fazer discursos socialmente corretos nas mídias sociais, mas no dia a dia não praticam o que defendem. Lutar por um mundo melhor inclui reduzir emissões de ruídos e poluentes e uma moda não pode destruir o seu meio ambiente. Cidade também é meio ambiente.

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Imagina pilotar essa clássica Honda CB 350 num dia de chuva!

Eliminação dos para-lamas– Parece piada, mas os para-lamas não são acessórios, eles tem função importante inclusive para a segurança. Um pneu quente, girando em alta velocidade, arremessa vários objetos que podem tanto atingir partes do motor da moto, como o radiador (que chega a furar), quanto o motociclista que está pilotando, assim como em quem vem atrás. Imagine uma pedra ou um pedaço de metal sendo jogado para trás ou para acima a uma velocidade absurda!
E nos dias de chuva o para-lama funciona como uma proteção. Sem o para-lama dianteiro a água do asfalto (com óleo e seujeira) atingem tanto o piloto quanto quem está atrás. Isso tira muito da visibilidade!

Não acabou! Uma das funções secundárias do para-lama dianteiro é atuar como barra estabilizadora. Sua simples retirada mexe com a estrutura da moto que pode ficar instável em algumas condições e velocidades. Mexer nessa peça sem critério é sinal de perigo!

Luzes– É importante ressaltar que as luzes das motos não são feitas apenas para ver, mas também para ser visto. Uma das tendências mais adotadas é pintar a lente do farol de amarelo e instalar protetores. Pode ficar realmente super clássico, mas como fica a visibilidade? A capacidade de iluminação cai mais de 30% só com a tinta amarela. Se ainda inserir elementos que reduzem o facho de luz isso vai piorar muito mais.

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Exemplos de lanternas com visual antigo mas luzes por LEDs.

Hoje já existe iluminação por LEDs que projeta uma luz mais intensa sem causar ofuscamento. Mexer no farol apenas por estética é um tiro no pé, a menos que limite o uso apenas durante o dia!

Outras mudanças que afetam diretamente a segurança é substituir a lanterna traseira original por pequenas lanternas estilo antigo. E remover todos os reflexivos (olhos de gato). Esses componentes são criados para que a moto SEJA VISTA pelos outros veículos. Como já foi explicado, pode até reduzir o tamanho, mas mantendo os padrões de segurança. A luz de LED consegue um bom resultado, mesmo com tamanho menor em relação à luz incandescente. E, por favor, não remova as setas!

Em suma, a customização é uma atividade que beira a arte da manufatura. Mas sempre tem de levar em conta critérios de segurança e proteção ao meio ambiente. O Brasil tem um mercado grande de motos usadas, clássicas, que ganham uma nova vida com a customização, só não pode deixar que isso comprometa a vida de quem pilota! Aliás, deixei essa informação pro final: toda mudança no moto, mesmo acessório, deve ser comunicada ao departamento de trânsito e passar por vistoria. Quem faz isso? Nunca vi! Sei que a maioria dessas motos serão usadas como peças de coleção e raramente vão às ruas. Mas saiba que pode ter sua peça de coleção guardada pra sempre no pátio do Detran!

Capacete, aqui cabe uma vida

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Capacete integral de qualidade, sua vida vale esse investimento.

Como escolher o tipo certo

Já não basta ter de escolher a moto que atenda as necessidades, ainda tem de decidir pelos equipamentos, de forma a atender a segurança sem levar o motociclista à falência. Hoje existem dezenas de marcas e centenas de modelos à venda, o que torna tudo ainda mais difícil.

O capacete é o único equipamento de segurança obrigatório por lei. Essa exigência gera controvérsias no mundo todo, sendo que em alguns países o uso nem sequer é obrigatório. Independentemente de legislação, o que determina o uso do capacete é o velho bom senso. Afinal trata-se de uma questão de sobrevivência.

Quando as motos ainda eram novidade no Brasil o capacete nem sequer fazia parte dos equipamentos. Foi só a partir dos anos 1970, quando inauguraram as fábricas brasileiras, que as cidades passaram a conviver com estes veículos em quantidade. Neste começo, a moto ainda tinha um aspecto romântico, ligado à liberdade e rebeldia. Por isso eram raros os motociclistas de capacete, apesar de já termos fabricantes nacionais.

A aceitação do capacete começou sendo uma expressão da identidade. Cada um queria ter um desenho próprio, como os pilotos de corrida. Assim, gastavam-se tubos de tinta em spray e quilos de lixa para ter um capacete exclusivo. Na garupa dessa moda, surgiram os primeiros estúdios de pintura que faziam obras de arte e isso ajudou a convencer da necessidade de usar capacete.

Logo em seguida veio a lei que obrigou o uso e daí pra frente o esquisito passou a ser rodar de moto sem o equipamento na cabeça.

Os tipos

Basicamente existem quatro tipos de capacete: integral, com a proteção fixa no queixo; aberto, sem a proteção na frente do rosto; basculante (também chamado de Robocop), que a proteção do rosto pode ser levantada e off-road, com ou sem viseira, ideal para uso fora-de-estrada.

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Os modelos abertos devem obrigatoriamente ter viseira. (foto: divulgação)

Antes de mais nada vale lembrar uma pesquisa feita por uma associação de motociclistas dos EUA que revelou um dado importante: 35% dos traumas crânio-encefálicos em motociclistas tem origem pelo maxilar. Portanto o capacete aberto, logo de cara, não é um equipamento que oferece 100% de proteção. O curioso é ver que donos de scooters e de motos custom adotam esse tipo de equipamento na ingênua crença que esses tipos de veículos não caem! Costumo argumentar que o asfalto não fica mais macio dependendo do tipo de moto; ele é sempre duro e áspero!

É bom lembrar que para usar um capacete aberto ele precisa obrigatoriamente ter viseira ou óculos específicos de motociclista, que acaba custando quase tão caro quanto o capacete!

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O modelo basculante é versátil para uso na cidade e estrada (Foto: divulgação)

Outro tipo que transmite uma falsa impressão de proteção são os basculantes (ou Robocop). Esse tipo de capacete nasceu para ser usado pela polícia, para funcionar tanto como proteção na moto quanto para proteger em casos de conflitos. Quando começou a ser usado por civis rapidamente se popularizou especialmente entre viajantes. A preocupação com relação a esse tipo de capacete são basicamente duas:

- Eficiência das travas da queixeira: como todo mecanismo que tem travas e molas, depois de um número de operações esses mecanismos podem falhar, tanto por desgaste natural dos materiais, quanto perda de eficiência das molas. No caso de um choque a queixeira pode abrir expondo o rosto.

- Rodar com ele aberto: obviamente que esse mecanismo foi pensado para facilitar algumas operações, mas não para rodar com a frente do capacete levantada. Principalmente acima de 80 km/h porque o vento empurra a cabeça para trás, forçando a musculatura do pescoço e ombros.

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Sem dúvida o modelo integral é o mais seguro. (Foto: divulgação)

Sem dúvida o modelo que oferece mais segurança é o integral, com queixeira fixa. Também é o mais vendido.

Por último, o modelo on-off road, com queixeira fixa, com ou sem viseira. Esse capacete é muito bom para usar na cidade, já que a velocidade é baixa. Porém, na estrada, acima de 120 km/h, a pala provoca muita resistência aerodinâmica, forçando a cabeça para trás.

Foto Capacete_5: Os tipos fora-de-estrada podem ser usados na cidade. (Foto: divulgação)

Materiais

Normalmente os capacetes são feitos de dois materiais: plástico injetado e fibras sintéticas (aramida, carbono ou vidro), que podem ser puras ou composta, (mais de uma fibra misturada).

A calota de plástico tem a vantagem de ser mais em conta pelo uso de material mais barato e pela facilidade de fabricação. Como a calota é feita em injetora a produção é de larga escala e isso reduz muito o custo final. Já os capacetes de calota de fibra tem processo industrial bem mais lento, quase artesanal e, obviamente, isso eleva o custo unitário. Além de materiais mais nobres.

Em termos de proteção, ambas as tecnologias são aprovadas pelas normas brasileiras. A grande diferença está na forma de absorção dos impactos. Por ter camadas sobrepostas, os capacetes de fibra distribuem as ondas de choque de forma mais uniforme, dissipando a energia pelo casco. Já os de plástico concentram a onda de choque no local da batida. Além disso, a calota de fibra não “quica” quando bate no asfalto, enquanto o plástico tem uma resposta elástica maior e pode quicar várias vezes.

Quando se pesquisa preços, pode-se encontrar desde equipamentos de R$ 70,00 até mais de R$ 8.000. Sinceramente, com toda experiência acumulada em quase 50 anos como motociclista, não dá para confiar a sua vida em um capacete de menos de R$ 600,00 (valores de São Paulo). Sei que não é fácil tomar essa decisão, mas se ajuda, pense em quanto custa um dia de internação na UTI.

Prazo de validade

Uma das maiores polêmicas sobre esse tema é sobre o prazo de validade. Que seja bem esclarecido: todo produto têxtil voltado para a segurança tem um prazo de validade. Os chamados EPI – equipamentos de proteção individual – tem o prazo determinado pelo fabricante, independentemente do uso. Até os pneus tem prazo. No entanto, alguns equipamentos tem prazo de validade indeterminado A MENOS QUE tenha sofrido as consequências de um acidente. É o caso, por exemplo, dos cintos de segurança dos carros, que devem ser trocados em caso de colisão.

Já sobre os capacetes essa regra do acidente é válida. Se o capacete sofreu acidente que bateu no asfalto ou em outro veículo, deve ser trocado. Jamais retocado para voltar a utilizar! Mesmo que a estrutura esteja aparentemente intacta, não se sabe se esse casco resistiria a uma segunda pancada no mesmo local. Mas sem exageros! Já vi motociclista querer trocar de capacete só poque deixou cair de uma altura de meio metro. Calma, esse tipo de queda não chega a comprometer a estrutura, mas pode matar um motociclista de raiva.

O período aceitável para aposentadoria de um bom capacete é de cinco anos, mesmo que não tenha sofrido acidentes. Porém, uma revista especializada americana foi mais longe. Pegou um capacete com cinco anos de uso e outro da mesma marca e modelo totalmente novo. Submeteu os dois aos mesmos testes de homologação e descobriu que o capacete usado apresentou rigorosamente os mesmos resultados.

Então por que trocar a cada cinco anos?

Porque fica largo! Tem itens no capacete que se desgastam com o uso e o principal deles é o poliestireno expandido – conhecido popularmente como isopor. Ele é o principal elemento de absorção e dissipação de impacto. Tem uma enorme durabilidade, porém não tem efeito memória: se apertar um pedaço de isopor ele não retorna ao formato original (como faz a espuma) e o ato de vestir e tirar o capacete, aos poucos, causa a compressão do poliestireno, deixando o capacete largo. Capacetes não podem ficar soltos na cabeça, senão o vento pressiona contra o rosto e dificulta a visão.

Algumas empresas substituem essa calota interna de poliestireno, assim como a forração, deixando o capacete praticamente novo. Não é uma solução totalmente reprovada, mas se fizer a conta de quanto é o investimento em um bom capacete, diluído pelo período de cinco anos, percebe-se que não chega a ser um custo tão alto assim por algo que salva nossas vidas.

E o que fazer com o capacete usado? Por mais que doa no coração, deve ser destruído. Isso mesmo. Ou, se for do tipo que se apega a bens materiais, guardá-lo como recordação. Jamais descartado no lixo – mesmo reciclável – porque ele vai aparecer em alguma cabeça.

Cuidados

O capacete é um item pessoal, que nem cueca! Não se empresta capacetes e cada um deve ter o seu. Por ser uma peça íntima, a higiene é uma preocupação e o cuidado é muito simples. Sempre que possível deixe o capacete virado com o interior para o sol. Também pode-se aspergir desinfetante em spray e sempre guardar o capacete com a viseira aberta para arejar.

Para limpeza do casco deve-se usar apenas com esponja, água e sabão. Pode ser polido com cera, mas cuidado com a viseira! Ela só deve ser lavada com água e sabão neutro, sem uso de álcool ou solventes. Para não acumular água de chuva pode-se polir com lustra móveis e algodão.

O maior inimigo do capacete são as bactérias. Uma reportagem do jornalista Celso Miranda fez uma revelação assustadora: ele levou um capacete de motofretista para análise em laboratório e descobriram que tinha mais bactéria do que uma latrina! Ecah!

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Guarde o capacete com a abertura para cima para evitar a proliferação de bactérias. (Foto: divulgação)

Nossa sugestão é realmente aposentar os capacetes com mais de cinco anos por questões de segurança e higiene. Ah e um recado aos românticos: nada de comprar um capacete de 70 reais para quem vai na garupa! Lembre: o asfalto é o mesmo para piloto e passageiro!

Por fim, não basta vestir o capacete, é preciso afivelar! Um capacete desafivelado tem a mesma função protetiva de um chapéu de palha. Em muitos acidentes que causaram o trauma crânio encefálico o motociclista estava usando capacete no momento do choque, porém o capacete saiu da cabeça e ao chegar ao solo o motociclista estava desprotegido. O mais difícil é vestir o capacete; faça o mais simples que é fechar a fivela. Importante: não pode haver folga entre a cinta jugular e a pele do pescoço. Para uma real proteção a cinta deve encostar na pele. Sim, num dia quente essa cinta irrita, mas não tem nada que irrita mais do que um dia de UTI.

Capacete, sua vida cabe aqui - Parte I

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Passei boa parte da minha vida dentro de um capacete (Foto: Claudinei Cordiolli)

Proteja sua cabeça, ela tem muita história.

Tente imaginar tudo que já viveu. A infância, o cheiro da comida da vó, o primeiro dia de escola, o vento fresco no campo. O carinho dos pais, família e amigos. Os primeiros machucados, ardidos e eternos. Pense em todo amor e frustração que já viveu. Dos prazeres mais simples aos desafios mais complexos. Uma carreira, o primeiro salário, anos de aprendizado. Imagine o tanto de conhecimento que já acumulou. Toda nossa vida está guardada em nossa mente como um computador com inesgotável capacidade de memória. Agora imagine perder tudo isso em uma fração de segundo. É o que pode acontecer quando se bate a cabeça.

Quem ainda não percebeu que o cérebro é um órgão vital? Sim, ele é tão importante para nos manter vivos e ativos quanto o coração. Daí vem a expressão “morte cerebral”, quando o indivíduo funciona da cabeça pra baixo, mas morre por inatividade cerebral. O coração bate, o fígado funciona, os rins filtram o sangue, mas a pessoa é declarada mortinha da silva. E toda a história de uma vida se vai como um sopro.

Parece óbvio que proteger o cérebro é vital! Mas não é isso que vemos nas ruas, nas casas, no trabalho. Não se dá a devida importância ao capacete como se ele fosse uma prova de fragilidade ou de falta de coragem. Assim, todos os dias, em algum lugar, uma história de vida se vai como um HD formatado. Ah, e não tem backup.

Se existe alguém no mundo capaz de comprovar a eficiência do capacete em diversas situações esse alguém sou eu. Desde a pré-adolescência já tive a oportunidade de bater a cabeça dezenas de vezes. Algumas bem graves e outras bem de leve. Em todas as atividades que pratico – moto, escalada, bicicleta e skate – já tive acidentes que teriam consequências bem graves (talvez fatais) não fosse pelo uso do capacete.

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Até para fazer manutenção em casa eu uso capacete, luvas e óculos. (Foto: Tite)

Sou tão xiita com essa questão que até mesmo para fazer manutenção em casa eu coloco o capacete, luvas e óculos de proteção. Quem me conhece sabe o pavor quase doentio que tenho ao ver pessoas subindo em telhado, em árvores ou em muros sem qualquer proteção. Já perdi um amigo e outro ficou paraplégico em acidentes domésticos tão prosaicos quanto a velha necessidade de regular a antena da TV.

Recentemente o Brasil entrou em choque ao saber da morte do apresentador Gugu Liberato em um acidente doméstico que poderia ter terminado apenas com um susto e luxações.

Em conversa com um diretor do SAMU de São Paulo, descobri que a maioria absoluta dos atendimentos são de acidentes domésticos e não de trânsito. É fácil entender: São Paulo tem 12,5 milhões de habitantes e seis milhões de veículos. Tem muito mais gente dentro de casa do que nos veículos.

Uma história de cabeçadas

Vou contar como era ser motociclista nos anos 70. O capacete não era obrigatório e só se usava muito de vez em quando nas estradas. Usar capacete era quase uma prova de covardia, de falta de macheza. Como eu tive um pai bem rigoroso, ele obrigava o uso do capacete sob ameaça de vender a moto. No começo eu não gostava, mas aos poucos fui acostumando, principalmente por vaidade: sem capacete a pele ficava ensebada, cheia de perebas e o cabelo oleoso e embaraçado (não ria!).

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Minha primeira moto em 1974, sem capacete, como todo mundo. (Foto: arquivo pessoal)

Quando o uso do capacete se tornou lei eu já usava 100% do tempo e pelo menos em uma ocasião ele salvou minha vida: peguei uma emenda de ponte desnivelada que fez a moto capotar de frente e aterrissei de focinho no chão. As marcas no capacete não deixaram dúvidas que eu podia ter formatado meu HD aos 15 anos de idade!

Depois, quando comecei a correr, primeiro de kart e depois de moto, perdi a conta das vezes que o capacete me salvou. No kart eu capotei cinematograficamente na curva mais rápida do kartódromo de Interlagos e lembro da batida seca com o cocuruto no asfalto. Nunca esqueci o barulho da fibra estalando na pancada. Em outra ocasião meu kart travou no final da reta e o piloto que estava atrás subiu nas minhas costas e deixou a marca do chassi no meu capacete!

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Note o kart de trás com as rodas no ar, depois bateria na minha cabeça! (Foto: arquivo pessoal)

Nas competições de moto nem consigo lembrar todos os acidentes, principalmente nas provas fora de estrada. Uma vez passei reto numa curva e meti a cabeça num mourão de cerca a uns 90 km/h destruindo um capacete novinho! O primeiro importado! O saldo do acidente foi um dedão quebrado.

Competição é assim mesmo. Os tombos fazem parte e todo piloto tem uma história de salvação pelo capacete.

Eu tenho uma filosofia: quem corre não racha. Quem pilota em pista não tira racha na rua. É que nem praticante de lutas marciais. Quem luta não briga na rua. A melhor coisa que aconteceu na minha adolescência foi meus pais permitirem correr porque isso evitou que me transformasse num rachador de rua.

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Corri muitos anos de motovelocidade e bati várias vezes a cabeça, mas estou vivo! (foto: Arquivo Pessoal)

Bike também machuca

Porém, por mais que eu acreditasse na importância do capacete ainda tinha muita resistência ao uso na bicicleta. Achava meio um exagero, afinal estava só dando um rolê e a bicicleta é praticamente um brinquedo. Foi só quando conheci o preparador físico José Rubens D´Elia que comecei a usar sob ameaça de violência física. Um dia ele apareceu com um capacete Bell importado, lindo, super bem acabado, jogou no meu colo e ameaçou: “se te pegar andando de bike sem capacete te encho de porrada”. Lembrou meu pai.

Empolgado com o capacete novinho, chique e cheio de charme decidi ser um ciclista politicamente correto e instalar buzina e espelhos retrovisores na bike. No caminho para a loja eu quase atropelei uma mulher com duas sacolas de compra e para desviar caí de cabeça no chão. Literalmente! Bati a testa, o nariz, ralei as mãos, os cotovelos e os mamilos (pense num banho ardido). Quando vi o capacete com a pala destruída e o casco amassado me deu aquela dor aguda na barriga e só imaginei o que teria acontecido se estivesse sem. Comprei outro capacete igual e nunca mais subi numa bike sem capacete.

Pensa que acabou? Nada! No ano 2000 comecei mais uma atividade com muita chance de quebrar o côco: a escalada! Nos primeiros anos eu simplesmente ignorava todas as recomendações de usar capacete, afinal queria um contato com a natureza e o capacete tirava um pouco da liberdade, o que não passava de uma desculpinha esfarrapada. Até que... um escalador acima de mim deslocou uma pedra que passou a centímetros da minha testa.

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Na escalada sofri uma queda e o capacete me salvou, de novo. (Foto: Leandro Montoya)

Comprei um capacete de escalada e passei a usar o tempo todo, mesmo nos trechos de caminhada perto das encostas. Só não dormia de capacete porque era desconfortável.

E veio o acidente. Em um trecho relativamente fácil, a rocha que estava me apoiando se desprendeu e caí uns 12 metros. De costas. A primeira coisa que bateu no platô foi minha mochila, que amorteceu parte da pancada. A segunda foi minha cabeça. Fez aquele estalo de plástico quebrando, meu óculos saíram voando aos pedaços e quebrei um dente. Quando vi a marca da pancada no capacete mais uma vez gelei e, apesar de todo ralado, terminei a escalada e ainda voltei pra casa pilotando a moto. Detalhe: neste dia eu tinha deixado o meu capacete em São Paulo e só não morri porque peguei um emprestado a pretexto de não queimar a careca no sol.

Pensa que acabou?

Em 2018 outra atividade entrou na minha vida. Procurando uma atividade física menos chata que academia, redescobri o skate depois de 46 anos! Só que dessa vez já usei capacete desde o primeiro dia. No começo usava o mesmo da escalada, depois comprei um de snowboard porque achei os capacetes de skate muito frágeis.

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No skate eu uso um capacete de snowboard porque acho mais seguro. (Foto: Kabé Rossi)

Como toda atividade que envolve risco de queda, no começo ninguém se machuca sério. Só depois de acreditar que já sabe tudo é que acontecem os acidentes. Foi assim mesmo: demorei pra sofrer a primeira queda mais forte, mas ela veio e fui catapultado de costas do skate, bati as costas e a cabeça tão forte que até dei uma leve apagada. O relatório de danos revelou um ralado no cóccix, mais um óculos de grau pro lixo e o capacete ralado. Comprei outro.

Duas semanas depois um garoto de 15 anos morreu ao bater violentamente a cabeça descendo a mesma ladeira.

Então o quê?

Por isso eu me desespero vendo as pessoas agirem como se fossem invulneráveis. Vejo ciclistas andando entre os carros, sem nenhuma proteção, desafiando a morte a cada quarteirão. Ou quando vejo os micro modais elétricos se popularizando sem trabalharem a devida importância ao uso do capacete. São patinetes, bikes, monociclos e scooters elétricos que, à falta de uma regulamentação, são conduzidos por pessoas sem nenhuma proteção.

Acredito que vamos assistir ainda muita notícia triste de acidentes com esses micro veículos até que se tenha consciência da importância de usar um equipamento tão simples, barato e eficiente quanto um capacete. Não existe desculpa: um capacete de bike pesa menos de meio quilo e pode ser levado em uma mochila. É o mais versátil e pode ser usado para qualquer um desses modais.

Um teste feito nos EUA mostrou a eficiência do capacete de bicicleta, comparando com outros tipos. Vale a pena ver clicando AQUI.

Só não deixe de usar. Mesmo que seja “só uma voltinha”, mesmo que seja “chato de transportar”, ou que seja “feio e desengonçado”, ou ainda “que estrague o penteado”. Nenhuma desculpa justifica o risco que representa uma batida de cabeça. Volte lá no primeiro parágrafo e reflita: vale a pena perder tudo que você já viveu?

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A história da Foto: Yamaha XT 600 Ténéré

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Salto alto: eu inventava as loucuras e o Mário Bock clicava!

Ténéré voadora!

No final dos anos 80 a Yamaha surpreendeu com o lançamento de uma das motos mais icônicas do mercado mundial, a XT 600 Ténéré, a bem sucedida rainha dos desertos africanos. Era o sonho de consumo de 9 entre 10 viajantes e praticantes de fora-de-estrada. Imagine a minha ansiedade para pilotar essa moto, na flor dos meus 28 anos, trilheiro juramentado e considerado – na época – um dos mais respeitados jornalistas do setor. 

Nesta época meu relacionamento com a Yamaha era ótimo e os executivos eram amigos fora do mundo profissional também. Nada comparado com hoje em dia que a relação com a marca só piora. 

Mas naqueles tempos as fábricas nos entregavam a moto e a única recomendação era extrair dela o máximo de informação, independentemente do estado que devolvesse. E muitas vezes as motos voltavam um bagaço.

Assim que liberaram a XT 600 Ténéré eu mesmo fui buscar pessoalmente na fábrica da Yamaha em Guarulhos. Ela tinha acabado de ser ativada, zero quilômetro de verdade e tratava-se de uma pré-série. Estas versões "pré-série" na verdade eram exatamente iguais às de produção em série, poderia eventualmente mudar um adesivo, um botão diferente ou outro fornecedor de parafuso. Mas no geral era exatamente igual à de série. 

A fábrica da Yamaha ficava – e ainda fica – na margem da via Dutra e lembro como se fosse ontem a minha emoção ao dar a partida naquele motor de um cilindro, engatar a primeira e entrar na Dutra em direção à capital como se estivesse flutuando a um metro do asfalto. A emoção de pilotar uma moto totalmente nova pela primeira vez e ser o primeiro a montar, antes de chegar às lojas, é inexplicável. É como se cada vez fosse uma lua de mel!

Assim que pousei na redação da revista Duas Rodas foi um furor. Todo mundo na garagem pra ver a maior trail do mercado brasileiro. O mais animado era o fotógrado Mário Bock, o maior apoiador das minhas ideias mais malucas. O Mário foi um dos fotógrafos mais abertos a ideias criativas. Imagine o sufoco que era produzir três a quatro testes pode mês, buscando soluções diferentes para cada uma.

Nosso programa favorito era descer para o litoral norte e produzir as fotos em vários cenários diferentes: estrada, cidade, praia, terra, trilha e voltar pra São Paulo no mesmo dia! Geralmente íamos em duas motos, carregando uma montanha de equipamentos, porque eu tinha de usar macacão de couro na estrada e com roupa de trilha no off-road. Além disso, nessas priscas eras a fotografia era com filme. Nós tínhamos de usar poucos rolos de filme (algo em torno de 100 fotos) para fazer a capa, miolo e, neste caso, o pôster. Não tinha margem pra erro e precisávamos acertar o máximo possível. O resultado só seria conhecido dois dias depois quando os filmes voltavam do laboratório.

Nesse teste específico fizemos as fotos na cidade e estrada na parte da manhã e fomos em direção à Bertioga pela serra de Mogi das Cuzes, onde fizemos as fotos com o famoso macacão de couro amarelo do Capitão Gemada. 

Na região onde hoje é o balneário de São Lourenço antes era um grande matagal. Neste local foi realizado uma das mais famosas corridas de enduro da história da modalidade, o Enduro das Praias, que participei correndo com uma Yamaha DT 180 praticamente original e mal consegui dar uma volta completa!

Foi quando eu sugeri ao Mário fazer as fotos na mesma trilha e ele topou na hora. Péssima ideia – e quanto pior a ideia, mais o Mário aprovava. Se eu já tinha quase morrido com os bofes de fora em uma leve e tranquila DT 180, imagine uma pesada, alta e novinha XT 600 Ténéré! Mas a vontade de fazer as fotos na praia falou mais alto.

Vesti o uniforme de trilha e foi pura diversão, tomando maior cuidado pra não destruir a moto antes de terminar as fotos. Foi quando vi um morrinho que dava para saltar bem alto. Como expliquei antes, nessa época não dava pra ver "como ficou a foto" no display digital. A gente marcava o terreno exatamente onde eu ia passar, saltar e aterrissar e o Mário fazia o pré-foco para acertar. Mesmo assim o índice de acertos no caso do Mário Bock era altíssimo!

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Essa foto foi o pôster central da revista Duas Rodas.

Terminamos essa sessão, vesti novamente o macacão de couro e planejamos voltar pelo Guarujá. Sempre que terminava a sessão de fotos e sobrava algum rolo de filme era a hora de viajar na maionese. Primeiro a gente garantia o "arroz-feijão", depois pirava em experiências ousadas pra ver se salvava alguma coisa mais doida e foi com essa estratégia que tive outra péssima ideia, imediatamente aceita pelo Mário.

Ao sairmos da balsa de Bertioga lembrei de uma trilha que eu costumava fazer quando era criança. Passava por uma ruína da época da fundação de Bertioga que, num país normal, teria sido preservada, mas estava abandonada e vandalizada. Nunca tinha feito aquela trilha de moto e minha memória me traiu feio.

Sem paciência para tirar o macacão eu decidi vestir uma capa de chuva por cima, falei pro Mário subir na garupa e entramos nessa trilha. Que era bem mais apertada do que eu imaginava – ou eu era bem menor aos 12 anos de idade! Passamos por trechos espremidos entre uma rocha e o abismo que terminava nas ondas do mar quebrando nas pedras. Tudo isso numa moto alta, pesada e com o Mário na garupa. Uma insanidade que eu jamais repetiria na vida!

Como nada é tão ruim que não possa piorar, depois de descer uma trilha bem lisa começou a chover! Estávamos no meio do nada, sem comunicação, com uma moto pesada, numa trilha escorregadia e uma subida cheia de pedras para encarar. Coisa típica da dupla Tite-Mário Bock. Parece que a gente tinha uma capacidade inata de nos meter nos maiores perrengues.

Com uma habilidade que nunca imaginei que tivesse consegui passar ileso por toda a trilha, sem deixar a moto cair e, num trecho de granito, tive de descer e empurrar a Ténéré debaixo do sovaco, com macacão de couro, suando litros. O Mário registrou tudo, mas não usamos as fotos na matéria porque o filme era preto&branco!

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Pensen num perrengue: macacão de couro, piso ensaboado, 200 kg de moto debaixo do sovaco!

 

 

A história da foto: perdidos em Minas

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Eu e Mário Bock, uma dupla com milhares de kms rodados e histórias!

Uma aventura-teste com a Agrale SXT 16.5 e Yamaha DT 180

Fotos: Mário Bock

Nos meus primeiros anos como jornalista especializado o mercado de motos ainda estava bem embrionário. Poucas marcas, poucos produtos, já dominado pela Honda, mas com boa participação da Yamaha. Até que uma empresa de Caxias do Sul, criada por filhos de imigrantes italianos apaixonados por motores, lançou-se nessa briga com uma marca já conhecida no universo agrícola: Agrale!

Foram buscar tecnologia na Itália e bateram na porta da Cagiva, nome adorado por todo mundo que tinha sangue de verdade nas veias. Dessa parceria nasceu a Agrale SXT 16.5, uma trail de 125cc, motor dois tempos, arrefecido a líquido que mexeu com a minha testosterona logo à primeira vista. Uma 125cc naquela época tinha 12,5 CV e esta chegou com 16,5 CV e o radiador.

Nunca escondi minha paixão pela marca, pela família Stedile* (donos da Agrale), especialmente a filha Dolaimes Stedile Angeli, linda, loira, olhos azuis, inteligente, elegantérrima, simpaticíssima e de uma gentileza rara. Não tinha homem na face da Terra que não se apaixonasse por este pacote completo. Mas ela mantinha o distanciamento digno de uma rainha diante do séquito. Inacessível aos mortais. Infelizmente nos deixou de forma precoce em 1995.

Daria para escrever um livro inteiro sobre a família Stedile – se não foi feito ainda – e essa admiração fazia de nós, jornalistas, fãs de carteirinha da marca Agrale. Era uma fábrica nacional, feita com a coragem dos imigrantes italianos, com a paixão de quem ama o que faz e a gentileza de verdadeiros lordes. Nunca, nos meus quase 40 anos de jornalismo, fui tão bem tratado e respeitado, quanto pela família Stedile, incluindo o patriarca, Francisco, os filhos Carlos e Franco (que apoiavam todas as minhas loucuras) e até os netos! Contrastava demais com a frieza dos executivos japoneses e alemães que convivíamos até então.

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A foto da capa foi num raros momentos de sol já no final da viagem.

Logo nos primeiros testes com a Agrale SXT 16.5 percebi que era uma moto com grande potencial, mas tinha muito o que melhorar em vários pontos, principalmente o sistema elétrico que dava paus inexplicáveis. Mas era uma moto pra quem gostava de esportividade e batia de frente com a Yamaha DT 180, ícone off-road, dominadora das trilhas e responsável por romper o hímen de muita gente no fora-de-estrada. No meu caso era hímen complacente porque precisei de duas DT 180 até aprender!

Nada mais natural que fizéssemos um teste comparativo entre a recém chegada Agrale e a já dominatrix Yamaha. O ano era 1985 e o mês de dezembro, claro, com todos os implicativos das datas festivas. Mas não era um teste qualquer, feito no quarteirão, queríamos algo mais marcante. O editor na época era o Roberto Araújo que permitia todo tipo de insanidade, desde que voltássemos com uma história boa. Levávamos muito a sério o conceito de “Aventura-Teste” e tinha de reunir todos os ingredientes para uma narrativa que prendesse leitor logo no primeiro parágrafo. Tudo decorado com fotos de situações dramáticas, coisa que nem precisava esforço quando tinha a parceria do Mário Bock.

Eu tinha acabado de voltar do Enduro da Independência (em setembro) e, como sempre, preservei uma cópia da planilha (mapa roteirizado) dos quase 1.000 km de trilhas. E tive a ideia insana do mês, do ano, da década: repetir parte do roteiro do Enduro da Independência, começando por asfalto em São Paulo, entrando na trilha em Três Corações (MG), terminando o trecho de terra em Lavras, (MG) e retornando pela rodovia para São Paulo. Daria mais de 1.500 km por todo tipo de situação, em dois dias, com pernoite em Lavras.

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Choveu durante quase todo o teste.

Valeu, São Pedro!

Pegamos as motos absolutamente zero km e teríamos de amaciar os motores na estrada até Três Corações, mantendo os limites de rotação e velocidade indicados pelos fabricantes. Teríamos 320 km para “soltar” os motores dois tempos. Nesse torturante trecho de asfalto com motos pequenas nossa média horária era ridícula e, claro, saímos bem atrasados, o que já projetava o primeiro problema de programação: chegar em Lavras durante o dia.

Se a média horária era baixa na rodovia tudo ficou pior quando chegamos em Três Corações para enfrentar cerca de 50 km de estradas de terra até São Tomé das Letras, cidade mística de duendes, fadas e outros seres esquisitos. A estrada estava “pesada” porque tinha chovido muito na véspera e o Mário não tinha muita experiência com fora-de-estrada, mesmo assim conseguimos chegar em São Tomé ainda no meio da tarde.

Fizemos a sessão de fotos em frente às tradicionais casas de pedra, lanchamos no único boteco aberto e quando olhei de relance pro céu vi que a coisa tinha ficado literalmente preta. Nuvens escuras, raios e um vento forte davam toda certeza do mundo que viria uma tempestade típica de verão.

Pior: era justamente em São Tomé que começaria o trecho de trilha de cerca de 90 km até Lavras. Eu tinha feito esse trecho no Enduro da Independência, mas a moto era uma Honda XL 250R, preparada, com pneus bem melhores e eu estava em uma competição, correndo contra o relógio. Na minha memória, a distância entre São Tomé e Lavras era um “tirico de espingarda”, coisa de poucas léguas, seja lá quanto tem uma légua.

No bar alguns poucos moradores e turista aconselharam a pernoitar e só continuar no dia seguinte. O que seria a decisão mais sensata. Só que justamente o que mais faltava a uma equipe de testes naquela época era um mínimo vestígio de sensatez. Entre os que tentavam nos demover da ideia de sair na iminência de uma tempestade estava uma mocinha muito simpática, de olhos verdes e trança no cabelo que ofereceu um quarto no casa dela.

– Vamos ficar – aconselhou o Mário Bock – a gente sai amanhã cedo e nem vai fazer tanta diferença no fim.

Só que tinha mais um componente complicativo: eu estava prestes a ser pai da minha primeira filha (que nasceria em janeiro). E isso deixava tudo mais tenso porque eu tinha de ficar colado a um telefone. E em São Tomé das Letras, no ano santo de 1984, só tinha UM telefone na praça principal. Além disso, de Lavras eu poderia pegar a rodovia e chegar em SP mais fácil e rápido do que saindo de São Tomé.

– Vamos pra Lavras, são só 80 km até lá, se a gente fizer média de 40 km/h chegamos em duas horas – insisti, numa inocência quase pueril.

Infelizmente o Mário concordou. Trocamos a companhia da mocinha dos olhos verdes, um quarto confortável, a segurança de uma noite tranquila por uma aventura que se tornaria uma grande, fedorenta, desesperadora, assustadora e interminável CAGADA!

Abduzido?

Já saímos do boteco vestindo as capas de chuva. Instalei uma prancheta na Agrale, coloquei a planilha – de papel!!! – com o nosso roteiro e assim que chegamos na primeira trilha o céu caiu sobre nossos capacetes!

Pensa numa chuva forte, fria e escura! Era perto de 17:00 horas, se fizéssemos esse trecho em duas horas, como eu havia previsto, chegaríamos em Lavras às 19:00 ainda com luz do dia porque era verão. Mas nos primeiros quilômetros percebi o tamanho da encrenca. Sem experiência em fora-de-estrada o Mário pilotava muito devagar.

Os pneus originais de motos de uso misto são feitos para rodar no piso asfalto/terra, mas sem lama. Em baixa velocidade a lama gruda no pneu, que fica totalmente liso, escorregadio e começam as quedas. Nada grave, só que a cada queda perdíamos muito tempo para levantar, montar na moto, esperar a gasolina da cuba do carburador “desafogar”, dar a partida no pedal várias vezes, até finalmente o motor pegar, engatar a primeira, rodar uns 500 metros e... cair de novo!

O único jeito de a lama não grudar nos pneus era correr. A centrifugação natural retira a lama e os pneus voltam a aderir. Mas o Mário não conseguia correr na lama e fiz uma continha básica para descobrir que nossa média horária era de mais ou menos 10 km/h! E ainda faltavam uns 60 km pra chegar em Lavras.

Fui olhar no mapa para ver se tinha uma forma de cortar caminho e pegar a rodovia. Mas depois de toda aquela chuva e lama o mapa tinha virado uma bola marrom de papier maché.  

Escureceu e chovia muito. A chuva só não era maior do que meu arrependimento. Sem mapa, naquelas motos com faróis tão miseravelmente fracos que pareciam lampiões de carbureto me dei conta do tamanho da burrada, mas não podia fraquejar. Expliquei pro Mário que numa situação dessas tínhamos de fazer que nem os mineiros: seguir o caminho mais batido que termina num bairro, vilarejo, cidade, alguma civilização.

Só que nós somos paulistanos. E foi assim que nos perdemos!

Já passava das 19:00 horas, não tínhamos rodado nem 30 km, sem a menor ideia de onde estávamos, cheios de lama, as motos derrapando tanto que num dado momento minha moto deu um giro de 1800 e fiquei de frente pro Mário! Minha vontade era sentar na beira da estrada e esperar, catatônico, até nascer o sol. Só queria chegar a algum lugar e quando achei que nada podia piorar queimou o farol da Agrale! Lembra lá no começo que comentei que o sistema elétrico das Agrale era um lixo? Pois foi minha primeira experiência com esse problema congênito da marca.

Sem o meu farol tínhamos de andar um do lado do outro pra eu aproveitar o fraco farol da Yamaha. Isso fez a média horária cair ainda mais. A maior preocupação era não cair num dos terríveis mata-burros pela estrada. Para evitar que o gado e os cavalos fujam das propriedades, as estradas eram cortadas por porteiras com diferentes tipos de mata-burro. Normalmente eles são projetados para passar carros e caminhões, não previram que um dia passariam motos a 90 km/h. Os pneus das motos encaixavam no vão do mata-burro e o piloto era arremessado longe, não sem antes quebrar braços e pernas. No Enduro da Independência eu vi muito piloto literalmente quebrado pelo caminho por conta dessas armadilhas.

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ISTO é um mata-burro, se vacilar o piloto se quebra todo. Vi muita gente se arrebentar nessas armadilhas.

No meio de toda essa tensão eu implorava o tempo todo, gritando pro Mário nunca andar no meio da estrada e tomar maior cuidado pra não cair num mata-burro até que tudo ficou escuro e silencioso. O Mário sumiu!

Olhei em volta e... nada! Tirei os óculos e... nada! Ele simplesmente tinha sumido bem do meu lado. E estávamos em São Tomé das Letras, terra de discos voadores, duendes, portais que levam a Macchu Picchu, civilizações escondidas em cavernas e o Mário tinha sumido. Pensei “pronto, o Mário foi abduzido, como vou explicar isso pro Roberto Araújo?”. Desliguei a barulhenta Agrale na esperança de que ele tivesse caído num mata-burro e ouvi um grito:

– Titeeeeeeee volta aqui!!!

O Mário tinha entrado com moto e tudo numa vala cheia de água e adivinhe: o farol da Yamaha pifou!!!

Preto velho existe

Estávamos, literalmente, numa encruzilhada. Bem num entroncamento de duas estradinhas, em qualquer ponto dos 586.528 km2 do Estado de Minas Gerais, sem luz nem a menor ideia de qual estrada pegar. Foi quando bem longe eu vi uma luz bruxuleante, fraca, típica de lampião e o cheiro típico de lenha queimando. Era uma casinha de taipa, bem simples, no sopé de um morro.

Já com a vista acostumada com a escuridão empurramos as motos até a cerca da casinha e comecei a bater palma. Nada. Mas eu sabia que tinha gente lá dentro porque estava ouvindo vozes. Bom, mas como expliquei, estávamos perto de São Tomé das Letras e ouvir vozes era algo até contumaz naquelas paragens. Bati palma de novo e o Mário sugeriu:

– Tira o capacete!

Ah, mesmo se tratando de São Tomé não deve ser normal alguém bater na sua porta, numa noite de chuva, usando uma bola branca na cabeça, todo coberto de lama e folhas.

Tirei o capacete, bati palmas e a porta se abriu bem devagar. Vimos só a silhueta de um homem. Gritei que estávamos indo pra Lavras e nos perdemos. A porta se abriu mais e o homem veio em nossa direção segurando algo que eu imaginei um rifle, mas era uma bengala. Ele chegou perto e vi que era um senhor bem preto, com cabelos bem brancos, como aqueles quadros de preto velho das casas do interior.

– Boa noite – comecei o discurso – somos de São Paulo, estamos indo pra Lavras, mas escureceu e nos perdemos.

Ele olhou daquele jeito desconfiado que todo mineiro tem desde que nasce.

– Mas vocês estão longe demais – respondeu o velho, já com um ar mais amigável. Entrem, vamos tomar um café que e eu explico – completou.

Entramos. A casa era bem simples, mas toda arrumadinha. Na cozinha, com piso de cimento queimado, estava a mulher dele, idosa também, branca velha, sentada ao lado do fogão a lenha, de onde saía a fumaça que eu farejei como um perdigueiro cego e faminto.

Olhei aquilo tudo, me vi pisando com as botas cheias de lama naquele piso, morri de vergonha, mas aceitamos o café. O rastro de lama atrás da gente. E o preto velho explicou:

– Vocês vão seguir essa estrada pra lá (n.d.r.: mineiro não se entende bem com esse negócio complicado de “esquerda e direita”). Lá no alto você vai ver uma mangueira bem no meio de um capão de mato. Nessa mangueira o senhor vira pra cá.

Enquanto ele explicava eu olhava para as mãos para saber se o “cá” e o “lá” era esquerda ou direita.

Quando terminou a explicação ele perguntou:

– Por que vocês não dormem aqui e vão amanhã? Nessa escuridão, com chuva, vocês vão se perder de novo,

Confesso que fiquei tentado. Olhei pro Mário e ele também parecia gostar da ideia. Mas tinha aquele problema de ficar longe de um telefone, a minha mulher grávida em São Paulo, podendo dar a luz a qualquer momento e no exato instante que pensei em dar a luz o velho disse:

– Se vocês acertarem o caminho vão chegar em Luminárias!

Luz, Luminárias, aquilo só podia ser um sinal.

E era mesmo, porque decidimos seguir em frente e, misteriosamente, o farol da Agrale voltou a funcionar! Perguntei pro Mário:

– E aí, entendeu o caminho?

– Só não entendi a parte da mangueira, é arvore ou daquela de regar jardim?

Agradeci muito ao velho, montamos nas motos, demos a partida e quando me virei pra me despedir, o susto: não tinha ninguém! Olhei de novo e nada. Nem sinal. Ele tinha sumido do nada! A casa estava escura. Me arrepiei todo, engatei a primeira marcha e gritei pro Mário:

– PUTAQUIPARIU, coooooorre daqui!!!

Naquele pavor eu não conseguia identificar mangueira, jaqueira, goiabeira, nem um pé de pau sequer. Seguimos pela estrada mais batida como bons mineiros e depois de algum tempo começamos a avistar luzes de uma cidade. Era Luminárias, a apenas 50 km de São Tomé. Chegamos às 22 horas, totalmente ensopados, enlameados e fomos direto pra primeira placa escrito HOTEL. De lá até Lavras era mais 45 km, mas eu simplesmente cancelei o resto da viagem em troca de um banho quente, jantar, telefone e cama!

Liguei para São Paulo e estava tudo dentro do previsto para o nascimento da minha filha um mês depois. Nunca fui muito bom em contas...

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A chamada de capa já trazia o aviso: teste-emoção!

Na manhã seguinte, mais calmo, encontramos com os enduristas da região que nos levaram para uma sessão de fotos no meio de um lamaçal, de novo!!! Olhei pro Mário, visivelmente de saco na lua e propus:

– Vamos voltar?

– Agora!

Pegamos a Fernão Dias para mais de 350 km de asfalto limpo, delicioso, macio e seco. Quase chegando em Mairiporã fomos premiados com uma luz perfeita, num belíssimo pôr do sol que rendeu a foto da capa.

Até hoje não sei se o preto velho foi uma alucinação depressiva depois de tanto estresse naquelas estradas de terra, se aconteceu mesmo ou se eu simplesmente inventei tudo isso. Só o Mário pode confirmar, ou não. Acho que na hora que me virei não vi nada porque o senhor era mesmo muito preto e nossas motos estavam sem as lanternas traseiras. Quando eu olhava pelo espelho só via escuridão. Mas, sabe-se lá, era São Tomé das Letras, terra de histórias extraordinárias.

Para saber mais sobre a família Stedile clique AQUI.

 

 

A História da Foto: comparativo entre CBX 750F e RD 350

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Uma viagem emocionante e vibrante com dois ícones da indústria nacional (Foto: M. Bock)

A atividade de piloto de teste de motos nos primórdios da civilização era penosa, arriscada e emocionante. Tudo era ainda muito novo para nós, desde os instrumentos de medição compostos pelos mais diferentes ímetros, ômetros e ógrafos que tínhamos de aprender a usar, até a sensibilidade de perceber, identificar e solucionar problemas nas motos no meio de uma viagem.

Quem chegou agora nesse ofício nem imagina o que é pegar uma moto com defeito e descobrir só durante o teste, numa estrada entre nada e coisa alguma, debaixo de chuva, à noite, sem lanterna e só com as ferramentas originais da moto. Mais do que isso, hoje em dia seria inimaginável o que aconteceu nessa aventura-teste em dezembro de 1986, quando a Yamaha nos entregou uma RD 350LC cheia de problemas, justamente para comparar com a rival Honda CBX 750F!

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Uma das edições mais vendidas da história da Duas Rodas.

Mais uma vez coube a mim a inglória missão de buscar a moto na sede da Yamaha, na República Distante de Guarulhos, numa sexta-feira à tarde, dia que milhões de motoristas decidem circular pela Via Dutra, único acesso para São Paulo. Depois do tradicional chá de cadeira, peguei a moto com precisos 4 km marcados no hodômetro. Isso mesmo: ela saiu da linha de montagem, foi para o pátio da fábrica, deu algumas voltas para um check-down tradicional e chegou diretamente nas minhas mãos para uma viagem-teste de 2.500 km até o vizinho Paraguai.

Hoje em dia isso seria impensável. Os fabricantes rodam centenas de quilômetros antes de entregar uma moto para teste. Checam até o ar do pneu. A qualidade, não a calibragem. Dizem as más línguas que essas motos de teste eram “preparadas” antes, mas isso é balela. Porque se for verdade o que aconteceu nesse teste comparativo foi o único caso de fabricante “despreparar” uma moto pra teste.

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Olhe nossas carinhas de bons moços limpinhos na Paulista. (Foto: Mario Bock)

Para completar, esta RD 350 seria a nossa primeira avaliação da versão nacionalizada. Até este dia nós só tínhamos rodados nas versões pré-série e todas estavam impecavelmente perfeitas. Eu fui mais além: cheguei a pilotar uma RD 350 japonesa em Interlagos, antes de ver uma “made in Brazil”. A minha lembrança daquela RD japonesa era de uma TZ 350 com farol e lanterna!

Foi com essa doce lembrança e o coração saindo pela boca de tanta ansiedade que dei a partida (a pedal) na RD 350 brasileira, engatei a primeira e entrei na Dutra, de novo...

Nessa data eu era um jovem de 28 anos, mas já tinha muita experiência com moto. Comecei aos 12! Por isso não precisei rodar nem 100 metros para perceber alguma coisa muito errada na RD 350. A frente estava “pesada” e eu precisava fazer muita força para virar. Tudo bem que os semi-guidões eram esportivos, mas estava demais. Parei num posto de gasolina para conferir a calibragem e... bingo! O pneu dianteiro estava com 12 libras, quando deveria ter 28. Foi um sinal do que viria pela frente.

Num trecho mais livre da Dutra consegui chegar a 100 km/h e percebi uma vibração muito anormal. O Gabriel Marazzi vinha de CBX 750 atrás de mim e fazia sinais como se quisesse saber “que cazzo está acontecendo”? Paramos mais uma vez e eu expliquei pro Gabriel que a moto estava balançando demais. A frente chacoalhava como se estivesse tudo solto. E no dia seguinte pegaríamos a estrada para o Paraguai!

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Anúncio veiculado pela Yamaha bem no meio do teste. Infeliz coincidência!

Chegamos a pensar que era culpa dos pneus Pirelli Phanton nacionais com câmera. Mais experiente do que eu (ele praticamente nasceu em cima de uma moto), o Gabriel achou melhor levar a moto a uma revenda Yamaha. Constatamos uma série de problemas: os parafusos das mesas e a porca da coluna de direção estavam com mais torque do que deveria e a porca do eixo dianteiro estava solta!!! E eu a 120/140 km/h na Dutra no meio de caminhões com a porca do eixo dianteiro soltinha da silva! Era mais um sinal!

Clima tropical

No dia seguinte nos preparamos para fazer a foto da “largada” na avenida Paulista com objetivo de rodar cerca de 1.100 km e chegar no mesmo dia em Foz do Iguaçu. Rodar 1.000 km num dia era moleza para nós, jovens, naquela época que não existia radar de controle de velocidade e com duas motos que passavam de 190 km/h fácil. Mas...

Como sempre tivemos um atraso, dessa vez por minha culpa. Ou melhor, por culpa da imprecisão do marcador de gasolina da CBX 750F que indicava ainda um pouco de gasolina no tanque, mas era mentira! Fiquei sem gasolina com uma moto pesada no meio do corredor Norte-Sul. Felizmente um motoqueiro socorreu mas perdemos um tempo precioso.

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Bastava programar uma viagem teste para começar a temporada de chuvas. (Foto: Tite)

Chuva

Quando finalmente colocamos a proa rumo ao Sul, entramos na rodovia Castelo Branco e... começou a chover! Só pode ser praga, pensei, porque bastava programar uma viagem-teste e o nosso clima tropical justificava o nome inglês “rain forest”. Eu comecei na Honda CBX 750 e o Gabriel na Yamaha RD 350.

Mesmo com asfalto molhado mantivemos uma média horária alta porque a rodovia era segura, as duas motos estavam com pneus novos e nossas viseiras ainda estavam perfeitas. Pena que isso durou bem pouco. Eu me sentia super seguro na chuva a 160 km/h com a CBX 750: ela era muito firme, confortável e os pneus Pirelli Phantom (os mesmos da RD, mas medidas diferentes) passavam muita confiança, o que me levou a inocentar os pneus com relação aos problemas daquela Yamaha.

Até que chegamos na região do Paraná e pegamos as estradas de pista simples, com uma camada de terra vermelha que, misturada com a água, formava uma tinta que grudava na viseira dos capacetes. Nestes idos de 1986 os capacetes nacionais não tinham a qualidade de hoje e um dos itens que mais dava problema era justamente a viseira. Feitas de material simples elas riscavam só de olhar! Imagine passando a luva com uma camada de terra vermelha!!! A uma certa altura eu não enxergava mais nada e para piorar meus óculos de grau embaçavam. Se eu abrisse a viseira sujava as lentes do óculos, se fechava embaçava tudo. Quando vinha algum veículo em sentido contrário a luz do farol batia na viseira riscada e formava umas estrelas cintilantes que nem árvore de natal.

No meio desse inferno, já começando a escurecer, fui ultrapassar um caminhão em meio ao spray de tinta vermelha quando peguei um baita buraco que quase me mandou pro espaço. Fiz sinal pro Gabriel parar e decidimos desistir da ideia de chegar em Foz no mesmo dia. Dormimos no primeiro hotel de beira de estrada que encontramos. Putos da vida porque não conseguimos cumprir os 1.000 km num dia como era o planejado.

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O nome do rio já era um sinal de algo de errado não iria dar certo. (Foto:Tite)

Fizemos de tudo para chegar em Puerto Stroessner (atual Ciudad de Leste) no sábado para pegar as lojas abertas fazer algumas compras – pouca coisa, afinal estávamos de moto – e voltar já sem compromisso de rodar os 1.000 km num dia. Vivíamos a época da proibição de importação e eu estava babando para conseguir um toca-disco a laser, sonho de consumo de todo audiófilo do planeta. Pouca gente sabe, mas o Gabriel Marazzi era – e ainda é – um roqueiro raiz. Ele era o DJ das festas de 15 anos da maioria dos vizinhos, muito antes de inventarem o termo DJ. O CD tinha acabado de ser lançado pela Philips e – hoje posso confessar – toda essa viagem foi planejada com o claro objetivo de comprar os CD players no Paraguai.

Que passa? No passa!

À noite o tempo melhorou a chegamos até a ver o céu estrelado. Legal, pensei, amanhã vamos ter sol e descontar o atraso. Santa inocência...

Assim que terminamos o café da manhã voltou a chover! Sabe o que é pior que chuva? Vestir macacão de couro e capacete encharcados! Mesmo com capa de chuva o macacão molhou e ficou pesando uma tonelada e meia. Naquela época não tínhamos acesso aos equipamentos de hoje, tudo era gambiarra, improviso e resultado de anos de “pesquisa” se ferrando de várias formas. Um desses aprendizados foi o verdadeiro papel da imprensa: forramos toda nossa roupa com jornal! Até na cueca, ponto nevrálgico e limite da decência de qualquer motociclista na chuva. Cueca molhada é o desconforto máximo e quando isso acontece normalmente é o momento que entrego meu destino a Deus. Nada mais pode piorar.

Pode sim. O capacete molhado! É nojento, frio, desconfortável e sinal que o Homem pode descer a níveis de higiene bem rasteiros. Não tínhamos (ainda) as balaclavas e não dá pra colocar jornal por dentro do capacete.

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Na tríplice fronteira Brasil-Argentina-Paraguai. (Foto: Leitor)

Assim, molhados, fedidos e humilhados tocamos rumo à fronteira. Chegamos até relativamente cedo a ponto de fazer uma foto no marco da tríplice fronteira Brasil/Argentina/Paraguai. Um dado curioso: nesse local encontramos um leitor de Duas Rodas que sabia tudo das nossas vidas. Foi quando comecei a ter respeito e admiração muito maior pelos leitores.

Já sem a chuva para nos infernizar finalmente chegamos à fronteira e... surpresa! Não podíamos entrar com as motos porque não estavam nos nossos nomes! Essa era uma burocracia na época que causou muito transtorno na minha vida e fez com que eu nunca fizesse a famosa viagem à Patagônia: eu só viajava com motos de fábrica e nas fronteiras da Argentina e Paraguai havia a exigência de o veículo estar no nome do condutor.

Fizemos meia volta, mas não desistimos do contrabando, afinal TODA aquela viagem tinha como objetivo comprar os CD Players, mas esta burocracia infernal nos fez perder muito tempo e só conseguiríamos voltar no dia seguinte, domingo, com as lojas fechadas!!! Pensa numa dupla desesperada! Todo nosso plano foi – literalmente – água abaixo por causa da chuva e da burocracia.

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A famosa foto em frente às cataratas do Iguaçu. Hoje não pode mais entrar de moto. (Foto: Tite)

Mas não desistimos! Sugeri ao Gabriel fazer turismo no domingo, visitar o Parque Nacional, fazer fotos na cachoeira, jantar um belo churrasco e deixar a contravenção para segunda-feira, mesmo sabendo que o Roberto Araújo comeria nosso fígado com cebola, afinal o teste era para edição de janeiro e o mês de dezembro era mais curto por causa das festas de fim de ano. Perder um dia de trabalho significava muito nos tempos de fotolito, fotocomposição e past-up.

Mesmo assim decidimos ficar mais um dia. Seria muito cruel voltar do Paraguai sem as nossas muambas, ainda mais porque eu tinha deixado para comprar os presentes de natal naquelas lojas. Imagine a ansiedade! Só que isso nos obrigaria a voltar os 1.100 km num dia, mesmo que isso custasse nossas vértebras em cima daquelas motos.

No vácuo a 200 km/h!

Mal o dia raiou na segunda-feira, já estávamos na “ponte da amizade” rumo às compras. Mas assim que passamos pela fronteira, surpresa: ERA FERIADO NO PARAGUAI!!! E, claro, as lojas estavam fechadas!

Olhei pra cara do Gabriel e meu primeiro pensamento foi me jogar nas águas lamacentas do rio Paraná. Todo nosso esforço, os 1.000 km debaixo de chuva, os riscos na estrada, a possibilidade de ter nossos fígados servidos numa bandeja de prata pro Roberto e Josias Silveira devorarem, tudo isso por NADA?

Mas se existe no mundo uma dupla que não desistia de nada era nós. Esta fase da Revista Duas Rodas foi uma das melhores do jornalismo especializado: Geraldo Simões e Gabriel Marazzi! Só hoje entendi a dimensão dessa dupla no jornalismo. Éramos tipo William Bonner e Fátima Bernardes (sem conotação sexual, por favor). E a Duas Rodas era a Globo da imprensa especializada. Por isso decidimos que não poderíamos voltar do Paraguai sem um CD Player ou presos por descaminho. Nossas honras estavam em cheque.

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Mais uma foto famosa na Internet: o primeiro teste da CBX 750F nacionalizada. (Foto: M. Bock)

Assim que pisamos na rua do comércio percebemos que os paraguaios tinham dado um jeitinho de vender, mesmo com as portas fechadas: camelôs! Isso mesmo, os lojistas montaram barracas e colocaram os produtos mais procurados à venda. Graças a esse jeitinho achamos um CD Player, mas apenas UM e era do tipo walkman, portátil. Comprei pelo equivalente a US$ 100.

Só tínhamos que decidir quem passaria com a muamba pela fronteira, sabendo que os policiais faziam uma revista randômica. Nós dois tínhamos cara de contrabandista, mas eu decidi colocar na mochila e tentar a sorte. A menos de 500 metros da fronteira o Gabriel teve um momento sensitivo, me parou, pegou o aparelho e colocou dentro da calça, alegando que nenhum policial colocaria a mão ali.

Deu certo! O policial me revistou, mas deixou o Gabriel passar! Nosso principal objetivo estava alcançado, só restava voltar pra casa e chegar no mesmo dia.

Pensa numa viagem doida. Nós trocamos de motos e eu voltei pilotando a RD 350 e o Gabriel na CBX 750. Essa RD estava muita estranha. Não passava de 180 km/h e vibrava tanto que perdemos várias porcas e parafusos no caminho. A qualquer momento a carenagem poderia desprender. Mesmo assim tocamos de volta num ritmo frenético. Viajar com o Gabriel era perfeito para devoradores de asfalto, porque ele só para pra abastecer ou se pegar fogo na moto.

Na metade do caminho parou de chover. Quando chegamos na parte duplicada da rodovia colocamos os aceleradores na posição ON e viemos dando final a maior parte do tempo. Como a RD não passava de 180 decidimos que o Gabriel iria me puxar no vácuo, assim conseguimos chegar a 200 km/h comigo naquela RD que vibrava tanto que minhas bolas não paravam na cueca. Claro que não recomendo isso a ninguém, mas eu confiava plenamente no Gabriel e vice-versa.

Quando finalmente chegamos na Marginal Pinheiros senti a traseira da RD balançar sem motivo aparente, mas creditei ao meu cansaço. Parei na garagem de casa anoitecendo, fiz a famosa foto deitado na garagem que seria publicada em outra ocasião.

No dia seguinte corri comprar um CD e lembro claramente que foi um disco do Queen! Quando olhei pra roda traseira da RD o susto: o regulador de tensão da corrente de transmissão tinha pulado e a roda estava desalinhada. Por isso aquela balançada esquisita na Marginal. Só não sei se já estava assim nos trechos acima de 180 km/h!

O mais surpreendente deste teste foi o texto. Nenhum dos problemas da Yamaha RD 350 foi omitido, pelo contrário, foram descritos minuciosamente. Mais do que isso, o Roberto Araújo fez um editorial esculachando a Yamaha, inclusive citando nominalmente o diretor comercial da empresa. Se isso fosse publicado hoje em dia a revista fecharia. Mas naquela época a Duas Rodas tinha um peso enorme. Os executivos das fábricas nos tratavam com muita reverência. Mas o fato de a Yamaha estar cheia de problemas e a Honda não ter apresentado nada de errado, começou neste comparativo o boato de que a Duas Rodas (e seus jornalistas) recebiam um “por fora” da Honda.

O que os Yamahistas não aceitavam na época – e até hoje – é que a Yamaha tinha problemas sérios de controle de qualidade. Até a decisão de ir para Manaus, os produtos da Yamaha tinham tantos problemas que o valor de revenda era muito baixo. Pior que isso: algumas concessionárias Yamaha não aceitavam uma Yamaha usada em troca! Acredita nisso? Certamente algumas cabeças rolaram depois da publicação deste comparativo, porque sintomaticamente nunca mais pegamos uma moto da Yamaha tão problemática.

Com relação ao contrabando, quase 20 anos depois eu dei esse CD Player de presente pro Gabriel que o conserva até hoje.

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O papel da moto durante a pandemia do corona vírus

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Nunca os motoqueiros foram tão necessários. Foto: Tite

Como o Corona vírus colocou a moto de volta na foco da mobilidade

Há anos defendo a teoria de que os motofretistas, ou motoboys, são uma espécie de Geni* do trânsito. Quando está tudo bem eles são odiados e maltratados, mas quando alguém está com fome e não quer sair de casa são os motoboys que levam a pizza. Então, num passe de mágica, eles são adoráveis, não importando o CPF, ficha corrida, comportamento e educação.

Essa história se repete há mais de três décadas. Odiados por uma parcela da cidade, são eles que de certa forma estão salvando milhares de pessoas durante o período de confinamento. E a moto entra com aquilo que ela tem de mais destacável que é a mobilidade a baixo custo, acesso fácil em áreas densamente habitadas e, cereja do bolo, é um veículo naturalmente feito para atender o isolamento social, porque as motos de carga só levam uma pessoa. E quando levam duas, ambas estão de capacete.

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Alguns comerciantes estão facilitando e ajudando os motociclistas profissionais. Foto: Tite

Os aplicativos de entrega de mercadorias, refeições e documentos não pararam e houve até uma correria em busca de mais motociclistas. Os atacadistas registraram uma queda de vendas de até 70% nas primeiras semanas, mas passados quase 30 dias recuperaram e registram um faturamento apenas 30% menos. Parte dessa recuperação veio dos restaurantes que passaram a atender em regime de delivery e aí que entraram os “cachorros loucos” com suas motos.

Imagine o que é manter as pessoas em casa em uma cidade como São Paulo que tem 12,5 milhões de habitantes, população maior que a de Portugal e Bélgica. Se as pessoas não podem sair de casa, o jeito é levar os produtos até elas! Uma grande atacadista de São Paulo, a PMG, abriu as vendas para pessoa física com entrega em casa. Por isso o mercado de alimentos conseguiu sobreviver em plena pandemia.

Herança maldita

O estigma dos motofretistas não é de hoje. Eu mesmo fui motoboy no final dos anos 1970 quando a indústria brasileira ainda engatinhava. Motoboy era a ascensão profissional do office boy. Ter uma moto em São Paulo fazia o dia render muito mais porque não precisava passar horas se deslocando em ônibus lotados e desconfortáveis.

Mas a primeira moto nacional de 125cc só veio em 1976. De forma muito discreta começávamos a ver algumas delas paradas em frente aos bancos, cartórios, fóruns etc. A indústria foi crescendo, a facilidade de aquisição aumentando e nos anos 1990 os motoboys já eram uma realidade. Pipocaram empresas especializadas em entregas rápidas e a atividade deu um salto gigantesco a partir do ano 2000 quando os problemas de mobilidade nas grandes cidades já estavam muito mais evidentes.

Quando começou, a atividade de motoboy era bem remunerada e atraía estudantes – como eu – e aqueles que simplesmente não se adaptavam a um ambiente de escritório – como eu de novo. Foi graças a essa atividade que consegui pagar os primeiros anos da faculdade de jornalismo. Também era uma atividade para apaixonados por motos. Tinha um ar de rebeldia e liberdade que atraiu muita gente. E eu ainda era um motoboy de luxo porque rodava de Honda CB 400Four!

Quando o dono do escritório (meu pai!) me promoveu para trabalho interno entrei em depressão e pedi demissão! Virei jornalista!

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Num dia normal os motoboys disputam espaço com os carros. Foto: Tite

Mas deixa lembrar como era o mercado nessa época. Em 1992 o total de vendas foi de pouco mais de 90.000 motos no ano. Quando rompemos o século 21, mais precisamente em 2005 o mercado atingiu essa cifra de 90 mil unidades por mês! E chegou a um milhão/ano neste mesmo ano. Esse crescimento veio no embalo de um programa de liberação de crédito que inundou as cidades de motos.

Com a facilidade de acesso rapidamente o número de motoboys cresceu exponencialmente. Como em tudo no mundo, o aumento na oferta de mão de obra fez as o valor das tarifas despencarem. Só para título de comparação, em valores de hoje, eu recebia uma média de 20 reais/hora. Hoje, passados quase 30 anos, o valor é de mais ou menos R$ 8,0 a hora. Porém, com uma diferença: hoje os aplicativos pagam por quilômetro rodado, um perigo porque estimula o aumento da velocidade.

No meu tempo era perfeitamente possível trabalhar seis horas por dia, de segunda a sexta, estudar e ainda sobrar tempo livre para lazer. Hoje um motociclista profissional passa até 12 horas por dia, sete dias por semana, em cima da moto para chegar a um “salário” de R$ 4.000. Com muito esforço!

E vieram os problemas naturais dessa expansão. Um deles foi o aumento no acidente com vítimas. Mas esse mito caiu por terra quando a Faculdade de Medicina da USP e a Abraciclo, realizaram uma pesquisa para identificar o perfil da vítima. Para surpresa geral os motoboys representavam apenas 28% das vítimas. Algo difícil de entender quando se observa a forma quase suicida como pilotam.

Na verdade é uma ilusão. Calcula-se que circulem cerca de 250.000 motociclistas profissionais em São Paulo, dentro de uma frota de mais de um milhão de motos. Os motoboys rodam todos os dias, muitos quilômetros e essa vivência traz habilidade. Já o motociclista que usa a moto apenas como meio de transporte roda poucos quilômetros e demora mais para obter habilidade. Isso gera dois tipos de perfis: o habilidoso sem responsabilidade e o responsável sem habilidade! E quando se trata de sobrevivência no trânsito a habilidade é mais determinante do que a responsabilidade.

Não é só isso. O motoqueiros irresponsáveis representam uma pequena parcela. A imensa maioria pilota de forma responsável. Porém mais uma vez entra em cena a ilusão. Quando um motociclista responsável passa por um motorista ou pedestre a moto nem sequer é percebida. Se passarem vinte “normais” ninguém percebe. Mas se passar UM fazendo barulho, buzinando, batendo no espelho será lembrado por muito tempo. Isso causa a sensação de que tem mais maus do que bons motociclistas.

E ainda tem o aspecto da imitação. Como já mostrei, os motoboys adquirem habilidade rapidamente, enquanto um motociclista “civil” demora mais. Porém esse novato acaba imitando o arquétipo do motoboy e tenta acompanhar esse ritmo sem ainda ter adquirido experiência. O resultado é o que ficou demonstrado na pesquisa: 72% das vítimas são de usuários comuns e não motoboys!

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Não pense que é fácil trabalhar com moto. É pau, pedra, chuva é o fim do caminho! Foto: Tite

Amor em tempos de vírus

Eis que chegamos no ano 2020 com uma surpresa: um vírus letal que se espalhou rapidamente pelo mundo e fez o brasileiro experimentar uma tal de quarentena. A recomendação de isolamento social obrigou mais da metade da população a ficar dentro de casa (segundo censo da Prefeitura na primeira semana de abril), enquanto a outra parte trabalha para ajudar quem fica isolado. Assim o brasileiro redescobriu a importância do motoboy!

Com os novos aplicativos de transporte com moto, como iFood, Uber Eats, Loggi ou Rappi essa atividade permitiu, facilitou e até incentivou a quarentena. E como na fábula da Geni e o Zepelim o motoboy passou a ser admirado, respeitado e recompensado.

Em Belo Horizonte, MG, os moradores começaram uma campanha – rapidamente disseminada para outras cidades – de solicitar um lanche e dar ao próprio motociclista! Foi uma ação de reconhecimento porque muitos desses motociclistas não tem tempo nem de parar para se alimentar. Em São Paulo eu vi uma cena inesquecível: um motoboy tirou um pacote de geléia de mocotó em barra do bolso e começou a comer enquanto estava parado no semáforo! E ainda me ofereceu!

As gorjetas também aumentaram. Dos tradicionais dois reais saltou para cinco e até dez reais! Um reconhecimento pela importância desse trabalho. Alguns motoboys iniciaram a campanha “fique em casa” pelas redes sociais e com avisos em suas enormes mochilas. Outra consequência da pandemia foi o aumento expressivo de mulheres na atividade! Principalmente jovens em idade escolar. Isso eu percebi pelo aumento de mulheres procurando o meu curso ABTRANS. A boa notícia é que mulheres se envolvem muito menos em acidentes!

Outra boa notícia é que os acidentes diminuíram quase a zero, porque as cidades estão praticamente vazias de carros, mantendo apenas caminhões e ônibus em circulação. Sem os carros não há necessidade de transitar no corredor entre eles, uma das principais causas de acidente. E nem precisa se ariscar, porque sem carros a média horária das motos aumentou naturalmente e o motoboy circula sob uma pressão bem menor.

Ao contrário do que se imagina, não é o excesso de velocidade que causa acidentes entre moto e carro, mas a DIFERENÇA de velocidade! Imagine uma via que tem limite de 50 km/h. Se o trânsito está carregado e os carros circulando a 15 km/h, uma moto rodando a 45 km/h está dentro do limite de velocidade, porém está três vezes mais rápida do que um carro. É isso que causa os acidentes.

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Seja gentil com os motoqueiros, dê gorjeta! Foto: Tite.

Para piorar essa equação, a 45 km/h (ou 12,5 metros por segundo) uma moto em ótimas condições, pilotada por um motociclista habilidoso, percorre cerca de 10 metros até parar totalmente. Dez metros são mais ou menos cinco carros, mas a fechada vem do motorista que está a dois carros de distância! O resultado dessa matemática é a batida. Por isso, nos meus cursos eu recomendo usar o corredor entre os carros no máximo a 30 km/h.

 

Pelo menos durante esse período de quarentena, com a pandemia do Covid-19, os motociclistas estão vivendo uma condição inédita de cidades praticamente vazias e apenas as motos em circulação. Surgiram várias ações espontâneas para ajudar e melhorar a vida dos motoboys. Alguns shopping centers permitiram o funcionamento de restaurantes para atendimento delivery e liberaram a entrada apenas de motos.

No centro de São Paulo os estacionamentos, que normalmente não aceitam motos, abriram as portas para os motociclistas cobrando valores simbólicos. Prédios residenciais que antes proibiam a entrada de motos já estão permitindo. A concessionária Honda Remaza manteve parte da oficina atendendo basicamente motofretistas e ofereceu sistema de entrega de peças aos clientes. Além de uma campanha nas mídias apoiando o trabalho destes profissionais. Até a imprensa, que normalmente costuma massacrar os motoboys, passou a mostrar reportagens positivas.

Ou seja, toda a cidade está percebendo a importância da moto como ferramenta de mobilidade quando todo mundo está parado. Só faltou mesmo um pouco de sensibilidade por parte do CET e Detran que poderiam liberar as motos novamente nas marginais e até estacionamento nas calçadas.

Conversei com vários motoboys durante esse período. Sem anotar nomes, apenas um bate-papo entre um farol fechado e outro. O que ouvi foi basicamente que estão trabalhando mais, porém com menos pressão, mas que o excesso de gente no ofício fez cair a rentabilidade individual. Mas todos foram unânimes em afirmar que o trânsito sem carros ficou uma maravilha!

Qual seria o melhor cenário? Que ao fim dessa pandemia a população continuasse a olhar para estes profissionais com o mesmo respeito e carinho. Claro que existem os maus, mas é assim em qualquer atividade, da medicina à engenharia, passando por todas as áreas. Isso é da condição humana.

Mas lembro um conselho que aprendi com um adestrador de cães. Trate com carinho que receberá carinho de volta. Trate com brutalidade e vai levar uma mordida! Isso funciona com gente também!

A história da Geni e o Zepelim termina quando ela salva a cidade, mas no dia seguinte toda a população acorda e volta a desprezá-la e humilhá-la. Não deixe isso acontecer com os motoboys. Respeite, agradeça e ajude os motoboys, porque você vai continuar precisando deles.

* Geni era a personagem da peça Ópera do Malandro, escrita por Chico Buarque. Nesta fábula existia uma cidade onde todos desprezavam e humilhavam a Geni por ser uma prostituta que se deitava com qualquer um. Mas quando a cidade foi ameaçada por um comandante doido em um zepelim cheio de bombas quem salvou foi a Geni, por quem o comandante se apaixonou e desistiu da ideia de destruir a cidade. A letra começa com todo mundo jogando pedra na Geni, repetindo a frase “maldita Geni”. Mas quando ela salva a cidade mudam a estrofe para “bendita Geni”. O que pouca gente sabe é que na versão original Geni era um travesti, mas a censura da época não permitiu.

Para conhecer a música Geni e o Zepelim clique AQUI.

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História da foto: a dor e amor dos testes 24 Horas

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Teste da Kawasaki ZX-7R: uma superbike no quintal de casa.

Como eram os testes 24 Horas que encantavam os leitores

No começo dos anos 1990 houve uma mudança importante no jornalismo especializado: a Editora Três, dona do título Motoshow, decidiu que o mundo das motos era pequeno demais para as ambições dos diretores – o que era totalmente correto – e mudou o nome para Motorshow, incluindo um “R” no meio e voltando 90% do conteúdo editorial aos automóveis.

Na minha passagem pela Motoshow, nos anos 80, percebi que a equipe era diferente: gente da minha idade, totalmente loucos por motos, beirando a doença mental mesmo, uma enorme paixão pelo trabalho que faziam e o gosto pelas competições, mesmo que isso não representasse um centésimo a mais no porcentual de leitores. Mas a paixão era 100% por moto, carro era meio de transporte.

Quando a Motoshow mudou o conteúdo o pessoal da equipe decidiu cair fora e fazer a própria revista. Assim nasceu a Revista da MOTO!, assim mesmo, com exclamação, projeto ousado, moderno e inovador. Nesta época eu estava (de novo) na redação da Duas Rodas.

Por ser uma equipe jovem e ousada, a revista da MOTO! lançou no Brasil o Teste 24 Horas. Que consistia em pegar uma moto – de preferência esportiva – ir para uma pista e ficar 24 horas moendo a pobrezinha. O primeiro deles foi justamente no dia 1º de maio de 1994. Essa data te lembra alguma coisa? Além de feriado foi o dia que ficamos órfãos do Ayrton Senna, abrindo uma cicatriz no coração dos brasileiros. Eles levaram logo de cara uma Kawasaki Ninja 900, um sonho de consumo! Mais do que isso, no autódromo de Interlagos, palco sagrado das glórias do Ayrton.

Lembro que peguei a revista e morri de raiva e de inveja. Que FDP, pensei, fizeram um troço super legal e eu aqui sentado atrás de uma mesa!

Este ano marcou minha promoção para editor-chefe da revista Duas Rodas, cargo que eu jamais quis porque passava mais tempo dentro da redação do que na rua testando motos. Um tédio da p***. Mas era o plano de carreira natural de um jornalista com a minha experiência.

Também foi nesta época que minhas filhas se mudaram para a Alemanha e essa separação me consumiu emocionalmente. Um dia acordei esquisito, fui na sala do diretor e anunciei:

– Estou indo embora.

E ele argumentou:

– Mas já, são três da tarde, fica até as cinco pelo menos!

– Não, chefe, tô indo embora pra Alemanha!

E fui mesmo. Não para morar, mas fiquei mais de um mês matando a saudades das filhas, viajando por aquele país e me metendo em muitas situações esdrúxulas que renderiam um show de stand-up comedy!

Quando voltei estava desempregado e sem muita vontade de arrumar um trabalho normal. Fiz uns bicos de assessor de imprensa (horrorosos, por sinal), fui editor da Revista Racing (de automobilismo) até que surgiu o convite para integrar a equipe da revista MOTO! com a promessa de não ficar só atrás de uma mesa. Fui voando!

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Uma moto esportiva, uma pista só nossa e liberdade para acelerar.

24 Horas nele!

Eu já conhecia todo mundo daquela equipe. A redação ficava no coração da Vila Madalena – a Montmatre de São Paulo – cheio de botecos em volta. A equipe só tinha maluco por motos e outras coisas impublicáveis. Revista legal, pessoal legal, no bairro mais cool de SP, tudo para dar certo. Para completar fui para o meu primeiro teste 24 Horas, algo que todo leitor babava, os concorrentes invejavam e a gente nem dormia (mesmo) de ansiedade.

O primeiro não lembro qual foi, mas serviu para ver que era um pouco menos glamoroso do que eu imaginava. Na verdade, para fazer um teste 24 Horas, entre produção, teste e desprodução a equipe ficava mais de 36 horas acordada!!! Dormir durante o teste era quase impossível. Imagine o que é pilotar um turno de uma hora, descer da moto, pegar no sono com a adrenalina a mil, nas condições de um acampamento de escola e acordar a tempo de vestir o equipamento, comer alguma coisa, subir na moto para mais um turno. Isso dava mais ou menos uma hora de sono a cada três de intervalo.

 

Só que essa dormida era mero eufemismo. Imagine uma equipe de homens que nunca passaram da adolescência, tudo quinta série raiz, juntos num evento sem limites para zoar. Era impossível ter um sono tranquilo sabendo que a qualquer momento alguém poderia jogar uma lagartixa no seu travesseiro, tocar a buzina de ar comprimido na orelha, amarrar os pés ou as mãos, passar pasta de dente em locais recônditos do corpo e coisas piores!

Assim, do primeiro 24 Horas que foi super legal, fui pro segundo já não tão empolgado. E veio o terceiro já de saco na lua e depois peguei ódio visceral! Era cansativo, repetitivo, arriscado e inútil. Sim, essa era a pior constatação: os testes serviram muito mais para atrativo comercial, porque em termos de avaliação de produto não fazia nem cócegas nas motos. Só que as fábricas adoravam! E faziam fila pra gente testar as motos.

Não sei contabilizar quantos testes 24 Horas eu fiz, mas nos últimos eu já entrava em TPM na reunião de pauta! Vou tentar resumir como era o cronograma:

Dia anterior: reunir todo material e socar numa van: (equipamento dos pilotos, pneus, instrumentos de medição e controle, galões de gasolina, tendas, cadeiras, colchonetes, bla bla bla e mais bla).

Primeiro dia: acordar cedo e viajar para o local do teste. A maioria destes eventos foi feita no campo de provas da Pirelli em Hortolândia, SP, a 100 km da Capital. Montar toda estrutura, preparar a moto, fazer um briefing e o piloto saía para o primeiro turno. Geralmente era eu.

Segundo dia: encerrar o teste, carregar a van e os corpos destruídos dos pilotos e voltar pra SP.

Terceiro dia: arrumar a zona toda e trabalhar normalmente!

No começo éramos em quatro jornalistas/pilotos, assim cada um pilotava uma hora e “descansava” três. Mas com o tempo esses testes foram se tornando um sucesso no mercado e começamos a aproveitar para fazer o chamado “marketing de relacionamento”, introduzindo a figura do “convidado especial”.

 

Para os pilotos habituais isso foi um alívio porque a cada novo integrante significava mais tempo de descanso. Até que em alguns testes cheguei a ficar seis horas sem atividade. Quer dizer, sem pilotar porque numa estrutura pequena quem não estava pilotando tinha de cronometrar, buscar comida, comprar gasolina, abastecer etc. Imagine eu que não fui escoteiro, nem fiz exército vivendo como se fosse num quartel!

O que pouca gente sabe é que tivemos nossos dias de motoboys também, quando fizemos um comparativo 24 Horas com uma Honda CG 125 e Yamaha YBR 125. Um evento estranho porque foi na pista particular do Dimas de Melo Pimenta, na fazenda dele. E justamente as motos pequenas eram as mais fáceis de acidentar porque a baixa velocidade convidava a fazer mais merda. Quase todos os pilotos caíram e o teste serviu também pra descobrir que essas motos são inquebráveis.

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Nosso ônibus urbano de Curitiba parecia uma caravana de doidos.

Motor homeless

À medida que os testes foram ganhando projeção recebíamos convites para fazer em outros Estados. Com isso fizemos testes no saudoso circuito de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, em Brasília, DF e em Goiânia, GO. Além de dois fora de estrada no interior de SP.

Mas para levar a estrutura era preciso um veículo que comportasse a tralha toda mais as pessoas. Um belo dia surgiram com uma improvável solução: um motor home! Claro que numa realidade onde sobrasse dinheiro isso seria uma solução até lógica, mas no nosso caso foi o começo da fase mais tragicômica dos testes.

Encontraram um ônibus que atenderia perfeitamente nossas necessidades, não fosse por um detalhe quase imperceptível: era um ônibus urbano de Curitiba! O ônibus urbano – com uns 10 anos de uso – não passava de 70 km/h, tinha câmbio automático (duas velocidades: lenta e quase parando) e as portas eram muito altas porque em Curitiba os passageiros usam plataforma. Para subir e descer era um sufoco e pior ainda para carregar tudo. Ah, claro, ele seria usado em estradas! Antes de enfrentar os 1.000 km para Brasília tivemos o bom senso de alterar a relação de transmissão para conseguir um pouco mais de velocidade e deu certo: chegava a 90 km/h, na descida!

Para nossa primeira viagem deixamos apenas seis fileiras de bancos comuns, literalmente jogamos as tralhas todas dentro, uma Triumph 955i e tocamos para a capital federal. Foi a estreia do Eduardo Zampieri, popular Minhoca, que se tornaria meu parceiro de trabalho e de vida. O ônibus era tão lento que a todo momento éramos ultrapassados por CGs 125. Era tão zoado que não tinha cinto de segurança, o extintor de incêndio era do prédio da editora e não havia o menor sinal de estepe.

Obviamente que a cada viagem a Polícia Rodoviária Federal nos parava. Na primeira vez o policial quis ver o tacógrafo, mas quando abriu as peças saíram voando e o equipamento literalmente desmanchou na frente dele! Sempre nos liberavam porque não havia talão de multa suficiente para autuar tudo que aquele veículo tinha de errado.

Nesta primeira viagem, para melhorar meu conforto, levei uma rede e foi a melhor ideia possível, porque o balanço do ônibus era perfeito para embalar meus sonhos. Só o cheiro de gasolina, pum, pão com mortadela e óleo diesel é que embrulhava o estômago.

O único com habilitação D era nosso mecânico e só ele poderia conduzir o ônibus, mas todo mundo queria dirigir um pouquinho. Inclusive eu que nos primeiros quilômetros quase joguei uma motorista pra fora da estrada. Esqueci que na hora de ultrapassar, depois que passa a cabine, tinha mais 10 metros de ônibus pra trás!

A segunda cagada foi no pedágio. Quando vi as cabines de longe não conseguia ver qual estava com a luz verde ou vermelha, por conta do meu probleminha com cores. E, claro, cada um gritou uma diferente só de sacanagem e acabei metendo o ônibus no vão entre duas cabines causando um reboliço e uma bronca (mais uma) da PRF.

Mas não acabou. Quando entramos na cidade cada vez que alguém fazia sinal pro ônibus achando que era um “de verdade” eu parava só pra ver a cara de espanto das pessoas! Até que me tiraram da direção!

Rodamos uns 5.000 km com esse ônibus absurdo pelo Brasil. Numa viagem pro Rio a PRF mais uma vez nos parou. Dessa vez o policial ficou furioso ao ver a quantidade de irregularidades. Os cintos de segurança eram feitos com as cintas de prender as motos. Tinha gasolina a bordo, gente viajando deitada em colchonetes e eu na rede. Dessa vez achamos que iria todo mundo pra cadeia até que o agente viu o adesivo MOTO! e fez a pergunta ingênua:

– Vocês são da revista MOTO!?

Diante da afirmativa ele tirou fotos, nos liberou mas avisou:

– Se outro policial parar vocês não digam que me conhecem!

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23 horas de chuva no teste da Kawasaki ZX-12R

Entre tapas & beijos

Especificamente este teste no Rio de Janeiro praticamente selou o fim da minha paciência. Das 24 horas de atividade choveu 23 horas sem parar. A quantidade de pernilongo por centímetro quadrado era maior do que qualquer parte do planeta. Era impossível dormir. A cada novo turno tínhamos de vestir o macacão, capacete, luvas e botas, tudo molhado. Como choveu não apareceu nenhum “convidado” e ficamos em cinco pilotos nos revezando em uma Kawasaki ZX-12R que tinha quase 200 cavalos, sem controle de tração, numa pista alagada.

No meu caso estes testes serviam como um treino a mais porque eu estava participando do campeonato brasileiro de motovelocidade na categoria 125 Especial, com uma moto dois tempos, totalmente diferente. Mas como dizia meu pai, jogador de futebol, “pra treino até bola de meia serve”. E servia mesmo, porque depois desse teste na chuva eu fui correr na mesma pista e adivinhe: choveu!

O grande problema destes testes era conseguir reunir todas as condições perfeitas para um belo evento. Nem sempre era possível. Quando tínhamos uma moto sensacional como a Yamaha YZF 1000 R1 a única pista disponível era a da Pirelli, com pouco mais de 1.500 metros, duas curvas e uma frenagem tão forte que apelidei de vasectomia. Era tipo como saltar de paraglide da mesa da sala. Ficava torturante para quem pilotava e para a moto porque moía os freios.

Aos poucos esses testes passaram de divertidos para experiências tensas e começou a pintar um clima ruim até que, em 2002, por razões exclusivamente pessoais decidi sair da revista e iniciar uma carreira solo. Foram anos de muito aprendizado e diversão, mas houve um desgaste natural da convivência e um pouco da minha necessidade de alçar voos mais altos.

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Suzuki GSX-R 750: freios superaquecidos e duas saídas da pista.

Melhores & piores momentos

Foram milhares de ótimos momentos. Na média foram mais momentos bons do que ruins, só que o excesso de convivência cobra um preço alto e os maus momentos pesam mais na balança.

Alguns desses gols da rodada:

Havia uma preocupação muito grande em não destruir a moto antes de terminar os testes, afinal tínhamos de apresentar um relatório de consumo de pneus, freios, gasolina etc. Mas quando se junta pilotos (alguns aposentados e outros em atividade), homens, moto esportiva e pista, ah, estava formado o cenário ideal para competição. Claro que rolava uma disputa pela melhor volta do teste, principalmente quando estavam em cena pilotos com história no motociclismo como Santo Feltrin e Milton Benite.

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Normalmente eu fazia o primeiro turno para fazer um check-down na moto, passar os pneus e ditar um ritmo. Depois os outros pilotos deveriam ficar dentro desse ritmo para não consumir demais todos os itens. Cada troca de pneus demorava muito e algumas motos faziam consumo de 7 km/litro. Para que o turno completasse uma hora era preciso maneirar.

Na teoria era lindo, mas bastava montar na moto pra socar o gás e danem-se os consumos. Na maioria das vezes eu fazia a volta mais rápida porque já tinha mais km de experiência e usava um truque simples: dava algumas voltas em ritmo mais lento para deixar tudo nos parâmetros normais de temperatura e aí caprichava numa volta voadora. Dava certo. Ou então eu pegava o último turno e aí ninguém mais teria chances de abaixar o tempo!

Dos causos engraçados, entre milhares, alguns foram memoráveis.

Teste 24 Horas da Triumph 955i no autódromo de Brasília. A pista tem um traçado maravilhoso, mas o asfalto era o mesmo desde a inauguração em 1975!!! Ou seja, a camada de betume já estava quase toda gasta e a pista era praticamente de pedra. Parecia uma lixa e consumia pneu atrás do outro. No meio da pista tinha um auto-cine. Pra quem não lembra, auto-cine era um cinema a céu aberto que a pessoa entrava com carro e tudo. Ótimo para uns amassos, mas péssimo porque o som era pior que rádio de pilha e não podia chover.

No meu turno noturno eu saí da curva 1 e vi a cabeça enorme do Tom Cruise no meio do nada! Quase enfartei, achando que estava alucinando. Na volta seguinte vi de novo o Tom Cruise enorme no meio do escuro e não aguentei. Parei nos boxes e comentei:

– Ou estou louco ou acabei de ver o Tom Cruise flutuando no meio do nada!
Foi então que o fotógrafo avisou sobre o auto-cine. O filme era Missão Impossível e coincidentemente o Tom Cruise usava uma Triumph 955!

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Situação que terminou o pneu traseiro no último turno em Goiânia.

Teste 24 Horas da Kawasaki ZX-6R em Goiânia. O melhor autódromo do Brasil para moto! Eu adorava aquela pista – mesmo sendo sentido horário – e só tive ótimas corridas lá. Nesse teste nós conseguimos uma moto com o dono da concessionária Kawasaki que, como agradecimento, foi convidado a participar. Grande erro!

Como sempre, fiz o tradicional check-down e percebi um problema no freio. Um leve empenamento que comprometia a frenagem no final da reta. Tentamos alinhar, mas sem as ferramentas necessárias não deu. Combinamos de maneirar o ritmo para não destruir as pastilhas, mas a cada frenagem forte quase arrancava minhas obturações de tanta vibração. Depois dos pilotos “de verdade” foi a vez do convidado, dono da concessionária e da moto. Avisei sobre os freios, expliquei tudo umas 100 vezes. Ele deu umas 10 voltas e... pimba! Chão! O cara caiu com a moto depois de cerca de seis horas de teste!

Na pressa de chegar no local da queda nosso fotógrafo também caiu, se ralando todo. Tínhamos um fotógrafo ralado, uma moto destruída e eu só pensava que tinha viajado umas 15 horas naquele maldito ônibus pra nada! Não era justo!

A moto não tinha como prosseguir porque tinha comprometido freios, rodas, alinhamento etc. Até que o dono da concessionária pegou o telefone, falou umas palavras mágicas e apareceu outra Kawasaki ZX-6R novinha! Assim, o que era pra ser um teste 24 horas virou nosso primeiro teste 30 Horas!

Combinamos de economizar ao máximo para reduzir as demoradas trocas de pneus. Foi assim que eu pilotei no último turno com os pneus literalmente no aço. O pneu gastou mais do lado direito, então nas curvas para a esquerda eu entrava normal, mas nas para direita eu fingia que estava chovendo. E parecia mesmo porque o pneu deslizava no metal. Essa se tornou uma das fotos mais sensacionais dos testes 24 horas, porque dá pra ver o brilho do metal e eu estou contornando a curva como se estivesse tudo certo. Depois levamos uma bronca do fabricante de pneu que explicou que podia ter explodido em plena reta.

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Sucesso estampado na capa.

Neste mesmo teste eu resolvi encerrar de forma descontraída para relaxar o clima. Estava perto da hora do almoço e os caras da equipe montaram uma churrasqueira, abriram um monte de cerveja e cada vez que eu passava em frente aos boxes eles mostravam os espetos. Fazia um calor de uns 35ºC e não aguentei. Precisava dar o troco. Parei no meio da pista, tirei o macacão, luvas e passei na reta só de capacete e cueca!

Eu não participei como piloto dos testes 24 horas fora de estrada porque já previa um sufoco. Se no asfalto era desesperador, imagine na terra, poeira e lama! Mas num destes testes, numa pista de cross abandonada, o diretor de arte levou uma fantasia de esqueleto e se escondeu no meio do mato. Quando o piloto se aproximou, o maluco pulou na frente achando que o piloto levaria um baita susto. Levou mesmo, mas por garantia achou melhor “matar” a criatura e passou com a moto por cima do coitado! Ambos sobreviveram.

Apenas duas motos deram problemas nestes testes. A Husqvarna TE 610 desse teste off-road fantasmagórico teve uma pane elétrica (novidade...) e a Triumph 600 que fundiu o virabrequim. Não sei se foi culpa nossa, mas logo depois a Triumph parou a produção desse motor 600 de quatro cilindros e lançou a 675 com motor de três cilindros.

Mas tivemos também algumas contestações. Por exemplo, no teste da Suzuki GS 500 o consumo de óleo foi de mais de 900 ml para cada 1.000 km. Quase um motor dois tempos! A representante contestou o teste e enviou um relatório para a Suzuki do Japão, que por sua vez nos pediu todos os dados do teste. Depois de um tempo veio a resposta do Japão: está certo, nesta condições o consumo de óleo é esse mesmo.

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Pista travada exigia demais das motos e pilotos.

Os testes na pista da Pirelli eram os mais exaustivos pela característica da pista: travada, estreita e com uma frenagem kamikaze de quase 200 km/h para 45 km/h. Nas noites quentes os freios superaqueciam e no teste da Suzuki GSX-R 750 Srad o Minhoca passou reto, andou uns 200 metros na grama até parar quase fora da pista. Levou um esporro de todo mundo, claro. Algumas horas depois foi a minha vez de varar a curva e também quase sair voando.

No teste da BMW R 1150 R descobrimos que dava pra raspar a tampa dos cabeçotes nas curvas. Claro que todo mundo queria dar uma raspadinha e tudo caminhava pra abrir um buraco enorme na tampa do cabeçote quando o engenheiro da BMW apareceu e acabou com a nossa farra! Eu queria ver o óleo quente escorrendo pela moto toda!

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Teste da BMW R 1150R: brincando de gastar os cabeçotes.

O teste da Honda CB 500 foi feito na pista do CETH da Honda em Indaiatuba. Foi o melhor em termos de conforto porque tínhamos dormitório, chuveiro, banheiro limpo, rango de primeira, uma maravilha. No meio da noite um dos pilotos convidados passou dos limites da pista e caiu num barranco. Sumiu! Ninguém viu ele saindo da pista e foi uma correria pra achar o cabra no meio da escuridão até que uma buzina soou ao longe. Ele estava uns 200 metros além do local que estavam procurando. Não fosse pela buzina estaria lá até hoje.

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Teste da Honda CB 500: o piloto sumiu no meio da escuridão.

Claro que teve muitos outros casos curiosos, violentos e engraçados, mas a maioria não dá pra publicar sem correr risco de processo. Garanto que me diverti mais do que sofri. A decisão de acabar com estes testes teve um pouco a ver com a situação do mercado em geral que começou a viver uma das várias crises. Mas quando paramos de publicar esses testes, ao contrário do que se poderia imaginar, ninguém reclamou. Sinal de que a fórmula já estava desgastada. Bons tempos.

 

 

 

 

A História da Foto: como eram feitos os testes de moto

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Teste a 240 km/h na estrada: susto e uma cueca a menos no mundo. (Foto: Mario Bock)

Improviso e precisão, os testes de motos nos anos 80 e 90

Quando a primeira publicação especializada em motos surgiu no Brasil, em 1974, foi natural pegar carona na principal e mais respeitada revista de carros da época, a Quatro Rodas. Assim nasceu a revista Duas Rodas. Uma sacada genial, motivo de muita raiva na poderosa Editora Abril, que tentou – e perdeu – várias vezes “recuperar” esse título.

Fazer uma revista de moto naquela época foi uma tremenda ousadia porque o mercado de motos ainda era embrionário e vivia das poucas unidades importadas. Honda e Yamaha já tinham escritórios em São Paulo iniciando as operações que levariam, dois anos depois, ao nascimento da indústria nacional.

Neste período os testes de carros eram feitos com um equipamento pesado, gigantesco e trabalhoso chamado “quinta roda”. Como o próprio nome diz, era instalada uma balança no para-choque traseiro, com uma roda de bicicleta. Nela eram instalados velocímetros e cronômetros que davam a velocidade real instantânea, aceleração, frenagem e retomada de velocidade.

Mas era inviável instalar aquela trapizonga numa moto. Então as medições de moto eram feitas de uma forma muito rudimentar na base da trena de 100 metros, cronômetro e calculadora. Pense num trabalhinho de corno! Eu não sei como eram feitos até eu chegar nessa vida. Mas posso dizer como era depois que aprendi.

Meus professores de “medição de motos” foram o Expedito e Gabriel Marazzi, pai e filho, que sabiam tudo de moto, carro e matemática. O Expedito chegou a fazer uma fórmula da aderência! Ele era super meticuloso e passou essa doença pro filho, Gabriel, que por sua vez me ensinou mais um monte de coisa.

Nos testes de carro, o piloto era acompanhado de um “Zequinha” que anotava tudo. Essa tal “quinta roda” era tão sofisticada que imprimia uma fitinha com os resultados!

Mas os primos pobres das motos tinham de fazer tudo sozinhos. Na maioria das vezes levávamos alguém pra ajudar, mas foram inúmeros testes que fiz sozinho mesmo.

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A tabela com as medições da Yamaha RD 350 na fase Marazzi. (Foto: Mario Bock)

As medições seguiam o seguinte padrão:

1) Aferição do velocímetro (Velocidade real) a 20, 40, 60, 80, 100, 120, 140 km/h.

2) Velocidade máxima nas marchas (até o conta-giros atingir a rotação de potência máxima). Graças a Deus esse teste foi retirado da pauta assim que cheguei, porque era um porre dozinfernos

3) Velocidade máxima feita em quatro medições, duas em casa sentido para anular a ajuda do vento. Anotávamos a maior velocidade e a média das quatro passagens.

4) Retomada de velocidade, variava conforme a potência da moto. Aqui o padrão era 40-60; 40-80; 40-100; 40-120; 60-80; 60-100; 60-120; 80-100; 80-120 e finalmente 100-120.

5) Aceleração, sempre saindo de 0 até 40 km/h; 60; 80; 100, 120; 100 metros e 400 metros.

6) Frenagem a 40; 60; 80; 100 e 120 km/h

7) Consumo de combustível em velocidade constante a 40; 60; 80; 100; 120, média geral durante o teste; média urbana e média na estrada.

Sangue, suor e borrachudo

Era mais ou menos assim. Pegávamos a moto e levávamos para o litoral norte de São Paulo onde hoje é a a praia de Guaratuba. Neste trecho a estrada BR 101, conhecida como Rio-Santos, tinha uma reta de mais de seis quilômetros, plana e ao nível do mar. Era o sonho de todo engenheiro de indústria porque representava a tal CNTP – Condições Normais de Temperatura e Pressão – que raramente se via em outras estradas.

Cada uma daquelas medições que está descrita lá em cima era feita três vezes. Então descartávamos o resultado mais estranho e fazíamos a média das duas. Tente imaginar isso numa temperatura amena de uns 35ºC, umidade relativa do ar de uns 85% e vestido com um macacão de couro, botas, luvas e capacete. Imaginou? Então piore mais um pouco porque nós, os pilotos de motos não tínhamos como levar um guarda-sol, nem mesinha, nem cadeirinha.

Tudo começava pela aferição do velocímetro. No caso dos carros, a tal quinta roda já tinha um velocímetro que bastava andar e marcar os 100 metros que ela fazia todas as contas sozinhas.

Na vida de corninhos testadores de moto pegávamos a trena de 100 metros, um rolo de fita crepe (ou tinta branca spray) e fazíamos a marcação no asfalto de exatos e precisos 100 metros. Então a gente pegava um cronômetro (no começo era um super preciso Heuer de ponteiro!) e fixava no guidão perto do dedão. Aí o piloto encaixava uma velocidade fixa no velocímetro, dedão no cronômetro, disparava na entrada e fechava na saída. Parava no acostamento, anotava no papelzinho, guardava tudo de novo e repetia a medição mais duas vezes. Para cada uma daquelas velocidades lá em cima.

Ao final de todas as medições, parávamos e fazíamos as contas para descobrir a velocidade real. Aí vinha uma parte bizarra: com um pedacinho de fita crepe a gente “calculava” onde ficava a velocidade real no velocímetro da moto para só depois fazer as outras medições. Uma aula de precisão!

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Como ficava o velocímetro depois da "aferição". Os engenheiros piram. (Foto: Tite)

Agora imagina o piloto fazendo uma retomada de velocidade de 40 a 80 km/h por exemplo. Precisava vir em velocidade constante com o ponteiro do velocímetro certinho no ponto da fita crepe, um olho no velocímetro, outro no cronômetro e quando chegava a 40 km/h tinha de girar o todo o acelerador de uma vez para cronometrar quantos segundos demorava até chegar nos 80 km/h. Parava no acostamento, anotava, guardava o caderninho e repetia cada medição mais duas vezes.

Já cansou de ler? Então tenta imaginar como era FAZER isso num calor saariano, todo equipado e levando picada de borrachudo em cada centímetro de pele que ficou exposta. Aí passava os pilotos de teste de carro com o ar-condicionado no talo e eu só imaginando “deve ser beeeem melhor fazer teste de carro!”.

As medições que eu mais gostava eram frenagem e, claro, velocidade máxima. Frenagem porque era a chance que eu tinha de fazer várias experiências e não precisava cronometrar. Velocidade máxima porque era a mais emocionante e também porque ventilava até o furico.

O que eu mais odiava era o teste de consumo em velocidade constante que, pra minha imensa sorte, só o Gabriel Marazzi fazia porque ele tinha um frasco graduado que só ele sabia manusear – e eu nunca quis aprender!

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Turma de testadores de motos. O Gabriel Marazzi está de macacão vermelho. Ao lado dele o santo Ricardo Ghigonetto.

Susto a 246 km/h

Vou contar um segredo, mas você não conta pra ninguém: algumas motos pequenas, com velocidade máxima de até 130 km/h, nós chegamos a fazer as medições algumas poucas vezes na Marginal Pinheiros, à noite, no trecho da raia olímpica da USP, que era plana, larga e não tinha radar. Mas só dava pra fazer num sentido. Mas isso é lenda urbana, não acredite!

Quando o Gabriel Marazzi saiu da revista Duas Rodas fiquei desesperado. Ela era meu revisor e eterno consultor. Sem ele eu tive de me virar, literalmente. Minha primeira iniciativa foi comprar um cronômetro digital com memória. A segunda foi simplesmente eliminar o teste de consumo em velocidade constante. Uma vez perguntei pro Gabriel qual motivo daquele teste se ninguém anda a 40 km/h constante na estrada. Ele explicou:

– No dia que estiver acabando a gasolina e o posto mais próximo estiver a 80 quilômetros você vai entender a importância dessa medição.

Confesso que entendi, mas eliminei ele assim mesmo porque eu simplesmente odiava – e odeio até hoje – me lambuzar todo de gasolina, com macacão de couro, num calor infernal.

Para compensar comprei também um decibelímetro que só serviu para saber se uma moto era mais barulhenta do que outra porque, na prática, a medição de ruído requeria um ambiente muito mais controlado.

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Teste na minha gestão: menos itens, mais simples e com decibelímetro. (Foto:Tite)

Mas a principal mudança introduzida na minha gestão foi o super sofisticado e à prova de erros gravador portátil Sony cassete! Ah, com microfone! Olha só a descoberta do século. Eu fixava o gravador K7 portátil Sony no tanque da moto. Passava o fio do microfone por dentro do macacão e grudava o na queixeira do capacete – por dentro, claro. Então quando passava nas marcações de entrada e saída dos 100 metros eu dava um berro (o segundo berro uma oitava acima para distinguir) e depois me sentava calmamente no primeiro boteco que abriu naquele inferno, rebobinava a fita e cronometrava cada passagem. Enquanto os bebuns em volta achavam que eu era algum marciano falando com a minha nave.

Com esse simples avanço tecnológico consegui reduzir muito o tempo das torturantes medições. E sofistiquei mais ainda: pegava meu super Opala Comodoro coupé, engatava a carreta e montávamos uma mega estrutura com cadeiras de praia, mesinha, geladeira de isopor, Coca-Cola gelada, guarda-sol e o Joca Finardi de ajudante.

Ficamos tão frescos que na volta ainda parávamos no Guarujá para almoçar no elegante Il Faro. Altos rangos patrocinado pela editora.

Tudo corria super bem até que em 1992 começaram a chegar as motos esportivas importadas e as velocidades ficaram cada vez mais altas. E tive missão de testar dois foguetes: as Honda CBR 600F e CBR 1000F. Dessa vez preferi ir rodando com as motos porque o Opalão velho de guerra não aguentaria subir a serra puxando quase 500 kg.

Para esta missão convoquei o meu fiel vizinho, motociclista experiente, Daniel Carneiro e assim que subimos nas motos avisei:

– Olha, estas motos são da fábrica, placas de teste, não podemos tomar multa. Vamos a 120 km/h na boa!

Realmente fomos super comportados como duas freirinhas maristas.

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Eu e Daniel (à direita na foto), ainda vivos e amigos até hoje. (Foto: Daniel Carneiro)

Na hora das medições estava indo tudo normal até chegar o momento da velocidade máxima. Eu já tinha testado motos que passavam de 200 km/h, mas era só um tiquinho a mais. Na primeira passagem da CBR 1000F já deu mais de 240 km/h e fiquei meio apreensivo (pra não dizer cagado). Na segunda passagem eu estava acelerando tudo, enfiado atrás da bolha da carenagem e avistei o que achei ser uma perua Kombi vindo no sentido contrário. Pensei “bom a estrada, tem mais de 12 metros de largura, não tem erro”.

Só que o motorista da Kombi decidiu entrar num condomínio e cruzou a estrada. Eu já estava acelerando na velocidade máxima por uns 5 segundos e quando dei conta da situação cheguei a ler os letreiros do meu filme da vida, porque ia acertar a Kombi a meia-nau. Como Deus protege os bêbados, as crianças e os pilotos de teste, numa reação meio sem noção fui pro acostamento do sentido contrário, passei entre a Kombi e outro carro qualquer e saí ileso. Quer dizer, eu estava ileso, porque a cueca... esta não se salvou.

Quando minhas pernas pararam de tremer cheguei no Daniel, branco que nem uma tapioca, e falei “vamos embora daqui”. Foi o último teste que fiz na estrada.

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Neste teste decretamos o fim dos testes na estrada. (Foto: Mario Bock)

Pensa que acabou? Na volta ainda estava prevalecendo o acordo de ir devagar. Até que chegamos no alto da serra do Mar, na Imigrantes, um maluco colou na minha traseira com um Mitsubishi Eclipse e começou a me empurrar. Pensei, “mas o que esse cara com esse carro de cantor de churrascaria quer? Vou mostrar uma coisa”. E... acelerei! E o Daniel acompanhando. Adivinha? Passamos os três num radar a mais de 200 km/h.

Logo depois de dispensar o Eclipse, já na velocidade normal, olhei o que pareciam homens no meio da estrada. Fui chegando mais perto e percebi que estavam armados. Mais perto e vi que estavam armados, furiosos e apontaram uma coisa comprida, cheia de cano, calibre 12 bem na minha cara!

– Desce da moto, fica de joelho e mão na cabeça!

Quando estava nessa posição esdrúxula, com um cano na minha cabeça, vi o cantor de churrascaria passar com o Eclipse a 80 km/h. Devia estar com sapato bicolor, aquele desgraçado.

O esporro foi aos costumes: ameaça de perder a habilitação, cadeia, pena de morte, tudo de ruim. Apreenderam as duas motos e mandaram eu ligar pro advogado. Quando eu já estava – de novo – todo cagado parou uma picape Ford e desceu dela ninguém menos que Ricardo Ghigonetto, assessor de imprensa da Honda que identificou as motos pelas placas.

Mesmo se apresentando e se responsabilizando por nós dois o Ricardo não conseguiu livrar a nossa barra até que teve o brilhante insight de perguntar ao “maior patente” se ele tinha filhos. Ao confirmar ele perguntou:

– Ele gostaria de assistir o Mundial de Motovelocidade em Interlagos?

Com dois convites para arquibancada VIP todas as multas e minha pena por passar num radar a 200 km/h desapareceram milagrosamente. Santo Ricardo!

Para comemorar saí do posto policial num wheeling de uns 800 metros!

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À toda prova

Nesta fase de piloto de teste eu também trabalhei na revista Motoshow, levando comigo toda bagagem de medições. Mas na Motoshow tínhamos mais equipamentos e, glória máxima, uma picape!

Os testes na estrada foram limitados às motos pequenas porque o risco de se arrebentar na estrada estava cada vez maior. Um dia percebi que resultados dos testes das grandes motos importadas publicadas nas revistas gringas eram praticamente iguais aos feitos por nós aqui no Brasil e sem precisar me matar do coração. Comparei os resultados das medições que tinha feito com uma Kawasaki ZX-6R lá na estrada com o teste realizado por uma revista italiana e as diferenças eram desprezíveis que podiam ser creditadas ao tipo de gasolina, altitude, condição de piso etc. Por isso nos limitamos a medir apenas motos que chegavam ao máximo de 150 km/h. As outras eu copiava dos colegas gringos.

Outra conquista nessa época da revista Motoshow foi um avanço tecnológico que facilitaria muito a nossa vida: um kit de fotocélula com cronômetro digital da Heuer. Ele servia para aferir o velocímetro e medir a velocidade máxima, mas as retomadas de velocidade e acelerações continuavam a ser feitas no velho gravador K7.

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Teste da Honda CG 125 com aparelhos fornecidos pela Honda: mesmos resultados! Foto: Mario Bock.

A vida corria tranquila até que a Honda questionou nossa “metodologia” dos testes. Ligaram na redação e perguntaram qual aparelho eu usava para fazer as medições. E respondi: um mini áudio-medidor angular rotativo de velocidade com captura de dados por fita magnética, ou seja, nosso velho e bom gravador K7 portátil. Segundo os engenheiros da Honda esse método permitia vários erros que começavam na carga das pilhas, passando pelo desgaste da correia do gravador, pela espessura da fita cassete e bla-bla-bla e mais bla!

A treta ficou séria e foi lançado um desafio: os técnicos da Honda montariam todo aparato de teste que eles mesmo usavam para comparar os resultados que obtivemos com nosso imponente gravador Sony.

Lá fomos nós para a infernal BR 101 munidos dos mais modernos ímetros, ômetros e ógrafos japoneses para avaliar a nova Honda CG 125 Today. Montaram as fotocélulas, aparelhagem super sofisticadas e refizemos todas as medições. De posse dos resultados fomos comparar com os obtidos no velho Sony e... tará: todos os resultados ficaram dentro da mesma casa centesimal! Em alguns casos os números batiam até três casas depois da vírgula! O velho Sony deu um ipon nos japoneses da Honda! Eu ria de me acabar, quando ninguém estava olhando, claro!

Nunca mais nossos testes foram contestados.

Hoje em dia.

Felizmente a chegada do século 21 trouxe um monte de tecnologia e exigências legais. Pelo nosso Código de Defesa do Consumidor os fabricantes são obrigados a declarar dados de consumo e desempenho feitos por uma entidade idependente, particular, credenciada, dentro das normas brasileiras.

Para melhorar ainda mais, aplicativos de celular fazem tudo que aquela montoeira de equipamento fazia, mais fácil, preciso e rápido. Também o padrão do consumidor mudou. Hoje em dia esses dados pesam muito pouco na decisão pela compra. Os dois dados que ainda mexem com os motociclistas são consumo e velocidade máxima.

Desde sempre eu achei uma tremenda bobagem certas medições como aceleração de 0 a 40 km/h. Pra que cáspita alguém quer saber isso? Além disso tivemos brigas homéricas com fabricantes e leitores por conta desses resultados. Lembro de um teste que ficou famoso ainda na época da Motoshow, quando a Honda lançou a CBR 450R e fizeram um comparativo com a Yamaha RD 350R. Mais uma vez a Yamaha entregou uma moto bichada que apresentou um rendimento ridículo. Pela política da revista se recusaram a “acertar” a moto e os resultados foram publicados assim mesmo. Isso rendeu a fama de que a Honda “comprava” os testes de todas as revistas. Coisa que escuto até hoje! Na verdade, a Yamaha que vacilava demais!

Uma das primeiras decisões que tomei quando assumi a edição da revista MOTO! foi acabar com essa chatice. Os testes deveriam expressar o máximo possível a personalidade da moto, sua aplicabilidade, quais sensações oferece e trazer o leitor pra cima do banco de cada moto.

Hoje, quando saio pra testar alguma moto os únicos números que apresento são exatamente os declarados pelos fabricantes. Mais do que ninguém eu sei como são feitas essas medições. O único que acrescento por conta própria é a rotação a 100 ou 120 km/h em última marcha. Pra que serve isso?
Ah, você vai ter de esperar o próximo post.

A História da Foto: perdidos nas trilhas (de novo!)

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É pra ir devagar! Ahãm! Dois loucos à solta nas trilhas. (reprodução Motoshow)

Como eram feitas as viagens-testes nos anos 80

Produzir revista nos anos 1980 era um sufoco danado. Era um negócio complexo e arriscado porque as revistas especializadas não se sustentavam com a venda em banca, mas com verba de publicidade por meio de anúncios.

No caso das revistas de motos ainda tinha mais um complicativo: a falta de modelos de motos para testar, por isso tínhamos de usar a criatividade para criar pautas que chamassem a atenção de quem passava pela banca de jornais.

As principais revistas do setor eram Duas Rodas e Motoshow. Trabalhei nas duas e conheci bem como funcionavam os “bastidores”. A Duas Rodas era feita por empresários com experiências no mundo corporativo. Eles pensavam como uma empresa, visando o máximo de lucro. A Motoshow era feita numa empresa ainda maior, mas a equipe tinha autonomia total. E a equipe era composta por jovens, vidrados em motos, super criativos, com salários fixos e estavam pouco preocupados com lucro.

Por isso as pautas da Duas Rodas eram muito mais comerciais, enquanto as pautas da Motoshow eram mais emocionais (que depois conduziu a linha editorial da revista MOTO!).

Comecei na Duas Rodas em 1981, ou 1982, não sou bom com datas, pegando pequenas reportagens, mas nada de testes, editoria filé mignon comandada por Josias Silveira e Gabriel Marazzi, dois monstros da área. Cheguei de mansinho e aos poucos fui aprendendo tudo e o resto é história que você já está conhecendo aos poucos.

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Viagem na terra com a Honda XLX 350R em abril de 1989. (reprodução Motoshow)

Aventura-teste

Quando a Duas Rodas surgiu as importações de motos ainda eram permitidas. Eu tenho até hoje a edição com o teste comparativo da Honda CB 400Four com a Suzuki GT 380 que fez meu pai decidir pela compra da Honda. Que ficou comigo por 10 anos e 160.000 km (a moto).

Pouco mais de um ano depois do nascimento da revista Duas Rodas o Brasil fechou os portos para veículos e proibiram a importação de motos e carros! Imagina o que representou para as revistas que viviam disso?

Mesmo em 1981, quando cheguei na revista, a indústria nacional ainda não tinha tanta moto pra testar e precisávamos produzir uma revista de 66 páginas todos os meses. Como a parte industrial da revista consumia muito tempo, na prática tínhamos duas semanas por mês para produzir todas as fotos e textos da revista. Uma semana para montar tudo e mais uma semana para rodar e distribuir.

Com poucas motos e muitas páginas para encher de fotos e letras tínhamos de ser criativos e com isso surgiram pautas menos tradicionais. Uma delas – que teve minha participação direta – foram as crônicas. Naquela época eu ainda não sabia que sofria de TDA (transtorno de déficit de atenção) e não conseguia parar quieto um segundo. Ficava na redação o dia inteiro falando mais que o homem da cobra, andando pra cima e pra baixo e contando casos. Um dia o Roberto Araújo, bem de saco cheio, me puxou pelo pescoço, me jogou na frente da máquina de escrever e berrou no meu ouvido:

– Já que você não para de falar, escreve essas histórias, quem sabe a gente publica!

Pronto, agora você já sabe como me tornei um cronista na base do pescotapa!

Também foi nessa fase que me tornei o responsável pelas as matérias de segurança de trânsito, que contribuíram para eu me tornar um especialista no assunto até hoje. O Roberto me enchia de pautas pra eu parar quieto por algumas horas. Algumas nem sequer foram publicadas, mas serviram pra me manter parado.

Mas e os testes? Eu queria testar moto! só pegava pautas de mercado, segurança, comportamento, competição, crônica, mas nada de testes. Fiquei nessas pautas um tempão até que finalmente comecei a testar, mas não lembro qual foi o primeiro. Só lembro que gostaram e não parei mais.

Tínhamos basicamente os seguintes testes:

– Avaliação: era tipo “impressões ao pilotar”, sem medições de desempenho, frenagem, nada. Só consumo (chutado) e velocidade máxima, quando dava.

– Teste completo: era a avaliação, mas com os dados de consumo, performance, frenagem que você já viu como era feito neste POST.

– Teste comparativo: a gente pegava duas ou mais motos no mesmo padrão de preço, posicionamento de mercado, desempenho etc e comparava entre elas. Era o teste que dava mais treta entre leitores e fabricantes.

– Teste dos 10.000 km: esse era nossa garantia de ter motos de graça por uns quatro meses! Depois dos 10.000 Km levávamos a moto para uma oficina e desmontava inteirinha de ponta a ponta para medir cada desgaste. Pensa num dia infernal. Eu tive de aprender a usar os ímetros, ômetros e ógrafos para conferir cada pecinha. Graças a Deus eu não montava! Tem uma história curiosa desses testes. Rodamos 10.000 km com a Honda XLX 350R. Na noite anterior à desmontagem a moto foi roubada! Tivemos de rodar mais 10.000 km com outra num ritmo muito mais frenético!

– Aventura-teste: ah, esse era o grande barato da edição. Todo mundo queria viajar com motos novinhas, despesas pagas e ainda licença para criar pautas criativas. Os roteiros incluíram Transamazônica, países da América do Sul, muito Rio de Janeiro e, meu prato favorito, milhares de quilômetros de estradas de terra. As mais famosas foram a inesquecível viagem de Manaus a São Paulo de Honda CG 125 feita pelo Josias Silveira; a Porto Alegre-Manaus de MZ 250 feita pelo Josias e Gabriel Marazzi e aquela da Honda CBX 750F e Yamaha RD 350LC comigo e o Gabriel. O Gabriel ainda fez uma viagem memorável de Vespa PX 200 de São Paulo ao Rio de Janeiro debaixo de chuva!

A aventura-teste era a melhor forma de traduzir o que era uma motocicleta. Nela a gente se tornava um usuário nas condições reais de uso. Bem diferente, por exemplo, dos testes 24 Horas que traduziam muito pouco da moto no dia a dia.

Aproveitávamos essas aventuras para escolher o roteiro do nosso agrado. Conheci boa parte do Brasil em cima de uma moto por conta dessas viagens. Com a vantagem de sempre estar pilotando motos novas e sem preocupação com o estado que elas terminariam a viagem. Na Duas Rodas fiz várias dessas viagens sozinho ou acompanhado e quando cheguei na Motoshow nós implantamos estes testes de longa duração para concorrer com a Duas Rodas mas, principalmente, pra gente se divertir!

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Perdidos na trilha, de novo!

Na equipe da Motoshow o clima era bem diferente. Moto era curtição, paixão e não um negócio. Toda a equipe era de motociclistas, desde o diretor de arte (um doido) até o comercial. A gente respirava moto 24 horas por dia, de segunda a sexta e ainda cobria as competições nos fins de semana.

O pessoal da redação tinha tesão especial por corrida, de qualquer tipo, em qualquer piso. E pelo menos dois participavam de competições fora-de-estrada: eu e o Quinho Caldas. Quando não tinha corrida a gente pegava as motos de trilha para curtir o fim de semana na terra.

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Duas motos concorrentes frente a frente em 600 km de terra. (Reprodução Motoshow)

Por isso nossas viagens-testes eram preferencialmente por estradas de terra e aqui começa a minha segunda perdida em estradas de terra. A primeira foi com Mário Bock em São Tomé das Letras.

Tínhamos de fazer um comparativo da Honda XLX 350R e Agrale Elefantré 30.0. Duas motos de uso misto, bem ao nosso estilo. Mais uma vez eu fui responsável pelo roteiro e dessa vez me inspirei numa viagem feita pelo colega jornalista Jorge de Souza, de picape 4x4 para a revista Quatro Rodas. Ele publicou o roteiro detalhado e era simplesmente um delírio: começava em Mairiporã (SP), passava por Campos do Jordão (SP), Visconde de Mauá (RJ) e terminava em Angra dos Reis (RJ). Quase 90% do percurso por estradas de terra, delícia! (Hoje está quase tudo asfaltado).

Nestas viagens fora-de-estrada sempre fazíamos as fotos primeiro perto de SP enquanto as motos estavam ainda inteiras. Depois partíamos para a viagem com todo material fotográfico, equipamentos, roupas, capa de chuva etc. Instalei uma prancheta no guidão da XLX 350 para colocar o mapa e poder pilotar sem parar o tempo todo e começamos a viagem.

Ao contrário do Mário Bock, que não tinha experiência em pilotagem na terra, o Quinho era mega experiente, por isso fizemos um trato de cavalheiro de “não provocação”. Ou seja, eu ia na frente com o mapa e ele comportadinho atrás sem forçar meu ritmo, nem ultrapassar. Afinal tínhamos uma previsão de rodar mais de 1.000 km por estradas de terra.

Deu super certo... nos primeiros 20 km de estradas. Bastou uma reta de uns 800 metros, com um salto bem no meio, para nosso acordo de cavalheiro ir pro vinagre e estabelecermos um novo roteiro “Paris-Dakar” das Mantiqueiras. Sem o menor vestígio de juízo aceleramos como dois retardados que éramos e milagrosamente chegamos vivos, inteiros e sem nenhuma queda em Campos do Jordão para o primeiro pernoite.

Pilotar por estradas de terra é um desafio tremendo porque nunca se sabe o coeficiente de atrito na curva seguinte. Mesmo assim eu não queria tirar a mão de jeito nenhum pra não ser ultrapassado. Fizemos curvas em parede, saltos, mergulhamos em poças d’água, voamos por mata-burros e não tiramos a mão por nada. Difícil acreditar que não caímos!

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Tudo estava dando certo até começar a dar errado. (Foto: Tite)

No segundo dia fizemos novamente o mesmo trato: nada de acelerar, vamos respeitar os limites do bom senso etc e tal, bull shit! Bastou chegar numa serra cheia de curvas para os dois novamente esquecer todas as regras e começar outro pega no meio do nada. Um acidente naquelas condições, sem telefone celular, entre nada e coisa alguma, teria consequências bem graves. Mas isso só passava pela minha cabeça quando via o abismo a poucos centímetros da minha pedaleira.

Comecei a sentir a XLX 350R meio estranha, a traseira afundava demais na recepção dos saltos e já não obedecia meus comandos. Mesmo assim não desacelerei até que fui conferir o mapa e... ele tinha sumido! Parei a moto e fiquei pensando num jeito amigável de dizer que tinha perdido o mapa. O Quinho era conhecido por ser tão amável quanto um pitbull esfomeado, por isso falei quase em tom angelical:
– Você viu algum papel voando? Tipo assim, colorido, parecido com um mapa?

Ele olhou bem na minha cara e respondeu com a habitual calma e tranquilidade:

– VOCÊ PERDEU O MAPA???

Sem aquele mapa a gente estaria literalmente perdidos, porque tinha um zilhão de entroncamentos, bifurcações, estradinhas e trilhas. Começamos a voltar para tentar achar o mapa. Voltamos quilômetros e nada. Eu já estava preparado para um esporro quando vi ao longe uma picape Rural F-75 cheia de gente na caçamba. Ela não tinha a grade frontal e quando olhei pro radiador lá estava ele:

– O MAPA! Gritei pro Quinho – faz essa Rural parar, o mapa está preso no radiador!

O motorista da Rural achou que era assalto e não queria parar de jeito nenhum. Eu gritava, me esgoelava pra ele parar porque meu mapa estava preso no radiador, mas ele continuava acelerando. Na caçamba os “passageiros” não entendiam nada, mas mostravam as enxadas e foices.

Fui ficando mais desesperado até que vi um mata-burro adiante, acelerei a moto, parei, desci e fiquei na frente da Rural tipo um extraterrestre apontando uma pistola de raio laser. O motorista freou, meti a mão no radiador, puxei o mapa, montei na moto e saí correndo antes das enxadas e foices descerem da caçamba!

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Um problema no espaçador superaqueceu e fundiu o espelho do freio traseiro (reprodução Motoshow)

Assim, depois deste pequeno incidente diplomático entre motoqueiros e trabalhadores rurais, chegamos a Visconde de Mauá (RJ) mais uma vez inteiros, com as cabeças sobre os pescoços, sem quedas, mas as motos já davam sinais de fadiga de material. A suspensão traseira da XLX tinha arriado de vez. Ficou tão comprometida que nos saltos o pneu estava pegando por dentro do para-lama. A Agrale 30.0 não aguentou o peso da bolsa do Quinho, quebrou o bagageiro e arrancou a lanterna traseira. E ainda estávamos na metade da viagem.

O que pode piorar?

O terceiro dia de viagem amanheceu frio e cinzento, típico das montanhas, o que nos obrigou a ficar mais tempo debaixo das cobertas. Além disso queríamos chegar na divisa com Minas Gerais só pra poder escrever que “cruzamos três Estados”, mesmo que um desses Estados estivesse a menos de 10 km de distância. Fizemos as fotos em Mirantão (MG) e começamos o trecho até Angra dos Reis.

Claro que perdemos tempo demais com essa besteira de “entrar em Minas” e quando escureceu ainda estávamos numa estrada de terra, em qualquer lugar do Estado do Rio de Janeiro e eu comecei a sentir a XLX meio “presa”. Além disso o freio traseiro estava estranho, duro e sem ação.

Mais alguns quilômetros e senti um cheiro de queimado. Mais um pouco e comecei a escutar os gritos do Quinho:

– Paaaraaaa, sua roda está pegando fogo!

Soltei a mão do acelerador e a moto parou na descida sem usar o freio, que nem um carro com o freio de mão puxado. Desliguei a moto e subiu uma fumaça com cheiro de alumínio queimado. Desci e vi que o cubo da roda (que chama cubo mas é um cilindro, vai entender) estava incandescente e a roda não girava mais. Estávamos quebrados no meio do nada, à noite, sem telefone, sem ninguém por perto e eu tive a sensação de já ter visto aquela cena antes!

Mecânico experiente o Quinho matou a charada: um dos espaçadores da roda traseira tinha se desgastado, o cubo da roda desalinhou e a lona de freio ficou encostando até superaquecer. Esquentou tanto que fundiu o espaçador no espelho do freio e seria preciso uma verdadeira operação para consertar: tínhamos de esperar esfriar, tirar a roda, arrancar aquele espaçador fundido, achar uma arruela que pudesse servir naquele lugar, soltar a lona de freio, montar tudo, alinhar e continuar a viagem. Fácil! Tínhamos apenas as ferramentas originais das motos, sem lanterna e estava escuro. Felizmente as ferramentas da Agrale eram ótimas, mas mesmo assim foi um sufoco para conseguir soltar a porca da roda depois de dilatar tudo com o superaquecimento.

No meio daquela situação, olhei pro céu e despejei minha fúria:

– Oooh meu Deus, o que mais falta acontecer?

Imediatamente Deus me respondeu na forma de uma tempestade!

O Quinho olhou na minha cara, com uma chave 22 mm apontada pro meu nariz e só falou num tom tradicionalmente calmo:

– Dá pra você não falar mais nada até o fim da viagem?

E foi chuva de gente grande. Com direito a trovões e vento. Claro que não tínhamos capa de chuva e a temperatura caiu em segundos. Olhei aquela XLX com a roda desmontada, o Quinho ensopado, os dois tremendo de frio e do nada lembrei que tinha um ilhós da mochila que poderia ter o mesmo diâmetro daquela arruela fundida. Experimentamos e... bingo! Deu certo!
Montamos tudo e seguimos para Angra dos Reis, chegando na luxuosa recepção do hotel Angra Inn, ensopados, sujos de lama, que nem dois bonecos de voodoo.

No dia seguinte o plano era voltar pra São Paulo passando por Cunha, Natividade da Serra e Paraibuna para completar os 1.000 km de estradas de terra. Mas o asfalto liso, seco e macio da Via Dutra foi mais convincente e voltamos pelo asfalto, sãos, salvos e limpinhos.

*Para os manicacas de plantão, seguem abaixo os dados das duas motos.

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A História da Foto: minha estreia com uma Yamaha RD 350 roubada

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No velho Interlagos de oito quilômetros com uma RD 350 "emprestada". (Foto: Aldemir Donini)

Como foi minha estreia na motovelocidade com uma moto surrupiada

Apesar de ter competido de kart nos anos 1970, meu grande sonho era mesmo correr de moto! Ganhei minha primeira moto com 12 anos e assim que dei as primeiras voltas percebi que o negócio ficava bem mais divertido em alta velocidade. Só que eu era menor de idade e meu pai não permitia, mas minha mãe – fanática por motores e corridas – deu um jeito e me matriculou numa escolinha de kart pra ver se eu desistia da ideia de correr de moto.

Corri de kart por dois anos, com relativo sucesso, mas a vontade era mesmo correr de moto. Tenho até uma história já publicada com Ayrton Senna, que a gente subia no mudo do kartódromo pra ver as corridas de moto!

Sem patrocínio pra continuar no kart descobri as provas de moto fora-de-estrada, montei uma Yamaha DT 180 (que confisquei do meu irmão) para as provas de enduro e de certa forma consegui satisfazer minha vontade de correr de moto. Na verdade era meio frustrante, porque eu queria mesmo era a motovelocidade, porém os custos eram bem maiores, a começar pelas motos.

Birigui, amigo e meu professor de pilotagem. (Foto: Tite)

Convivi com essa frustração por um bom tempo, até que o piloto e meu amigo pessoal José Xavier Soares Neto, o Birigui, e o Milton Benite, o pressão, montaram uma escola de pilotagem com as Yamaha RD 350 importadas do Japão. Fui um dos primeiros a me matricular e fiz o curso em Interlagos, na velha e boa pista de 7.960 metros. Não lembro a data com precisão, mas acho que foi no final de 1986.

O curso só serviu pra aumentar ainda mais minha vontade de correr de moto e isso foi me dando um comichão interno tipo coceira num lugar que não se pode alcançar.

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Começo no kart, mas queria mesmo era correr de moto!

Até que a oportunidade surgiu na forma de uma Yamaha RD 350LC estacionada na garagem da revista Duas Rodas, justamente numa sexta-feira, véspera da terceira etapa do Campeonato Paulista de Motovelocidade. Olhei para aquela moto ali, branquinha, tristonha, com a traseira baixa que nem um pastor alemão com displasia e pensei: “pow, pra quem alugava carro no aeroporto pra correr em Interlagos, pegar a moto da Yamaha ‘emprestada’ só para uma corridinha, não é nenhum pecado venial”.

Na minha mente ingênua achava que ninguém iria descobrir, bastava cobrir a placa com fita, colar uns números na carenagem, tirar espelhos retrovisores, os cavaletes e piscas e alinhar pra largada. Não precisava mais da autorização do meu pai, eu já era grande! Nada podia dar errado.

No caminho pra Interlagos passei numa papelaria, comprei Contatct para fazer os números e escolhi 77 em homenagem ao Emerson Fittipaldi, que correu de moto com esse número. Óbvio que escolhi o número sem perguntar se podia e, claro, não pôde porque já tinha um desgraçado com esse número. Foi assim que o 77 virou 177. Foi o primeiro sinal de que eu estava me metendo numa enorme roubada.

Shimmy a 180 km/h

As coisas começaram a desandar quando fui passar a moto na vistoria. Teria de retirar o farol e lacrar todos os bujões e pinças de freio, instalar um reservatório para respiro dos líquidos e mais um monte de coisa.

– Sim, expliquei pro fiscal, mas a moto não é minha, é da Yamaha, não posso simplesmente meter a broca e sair furando tudo!

Como eu conhecia 100% das pessoas que trabalhavam na organização joguei o velho xaveco de que estava fazendo uma matéria sobre o campeonato, que iria sair na Duas Rodas (e saiu mesmo) e um monte de papo furado. Colou e me liberaram, só que perdi o primeiro treino livre e fui direto para a classificação.

BRA Interlagos 7960m.gif (628×378) | Autodromo de interlagos ...

Interlagos de gente grande com os nomes de todas as curvas pra você acompanhar.

Toda a preparação da moto se resumiu a:

1) Colar os números

2) Calibrar os pneus – com a calibragem original pra rua!!!

Não sabia nada de suspensão, pressão dos pneus, posição de pedaleiras, nada, sobre nada, elevada a décima potência! Era um estreante no mais stricto sensu. Meu macacão de couro era o mesmo que usava nos testes, o famoso amarelo do Capitão Gemada, sem os sliders no joelho porque eu jamais me atreveria a raspar os joelhos no asfalto. Aquilo era coisa de piloto de verdade e eu era um solene cabaço.

Saí dos boxes para a tomada de tempo, dei a volta de instalação avaliando se tinha algum problema na pista e quando passei na reta da cronometragem estava acelerando tudo, a 10.000 RPM, veio a placa de 200 metros e continuei acelerando, a de 150 e mão no fundo, afinal eu já tinha feito as curvas 1 e 2 fletado na escola do Birigui. Veio a placa de 50 metros e meu senso de preservação da espécie falou mais alto. Aliviei um tiquinho de nada o acelerador e literalmente dropei pra curva 1.

No meio da curva a moto balançou prum lado, balançou pro outro, meu coração quase saiu pela boca, olhei pro velocímetro e estava nos 190 km/h e só pensava na possibilidade de me estabacar e na bronca que iria levar dos meus chefes na Duas Rodas, sem falar no pedido de prisão que a Yamaha apresentaria na segunda feira. A diferença entre as RD 350 da escola do Birigui para essa que eu estava pilotando é que as primeiras estavam totalmente preparadas para pista porque foram usadas na primeira Copa RD. E a “minha” era original.

Saí inteiro da curva 1 e aos poucos fui me familiarizando com a RD 350 com pneus meia vida e pressão de rua. Na segunda volta me sentei mais perto do tanque, finquei a força nos semi guidões e consegui fazer as curvas 1 e 2 sem morrer do coração, mas aliviando mais ainda o acelerador.

Eu achava que estava super rápido, era o cara mais rápido da pista! Tinha certeza que tinha ficado entre os três primeiros. Terminei o treino, corri pra Torre de Cronometragem pra pegar o mapa dos tempos e sofrer uma enorme decepção. Tinha feito o 15º tempo de um total de 18 motos! Ah, as três atrás de mim era RD 135! Na categoria Estreantes e Novatos do Campeonato Paulista de Velocidade largava tudo junto e misturado: RD 350, CB 450, RX 180, RDZ 135 era uma salada mista. E eu estava apenas à frente das motos 135cc!

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Aprendizado na marra

Fiquei ali zanzando pelos boxes me achando o mais salame dos mortais quando um piloto do interior, colega de box, me reconheceu e veio trocar umas ideias. Primeiro eu estava com os pneus com umas 10 libras a mais do que deveria. Segundo que eu precisava abaixar uns 2 cm a frente para eliminar esse shimmy nas curvas 1 e 2. Por último que eu TINHA de fazer as curvas 1 e 2 sem aliviar porque isso melhorava mais de um segundo por volta.

OK, fiz todas as “alterações” proposta pelo colega e voltei pra casa. Mas como conseguir dormir com todas essas informações na cabeça?

Passei a noite me revirando na cama que nem filé na frigideira. Fiquei repassando cada curva, cada frenagem, cada centímetro daqueles quase 8 km. Eu fechava o olho e só via conta-giros, Curvas 1 e 2, Retão, Curvas 3 e 4, vai tudo pra esquerda, passa o calombo, freia, reduz três marchas, faz a Ferradura, sai da curva, engata quarta, quinta, reduz pra quarta e sobe a Curva do Lago sem frear (ai Gizuis), entra na Reta Oposta, acelera a quinta até 11.000 RPM, engata quinta e a sexta, se prepara para reduzir duas marchas e fazer a Curva do Sol em duas tomadas, acelera em quarta até quase explodir o motor e aí vem a freada mais forte da pista, na Curva do Sargento. Era uma curva tão inclinada que meu joelho raspava no asfalto mesmo sem abrir tanto a perna e fez uma marca preta no meu macacão. Saindo do Sargento, engata uma marcha e vai pra Curva do Laranjinha, depois freia e reduz para a entrada do S, mantém a marcha na curva do Pinheirinho, sobe para o Bico de Pato, engata uma marcha só por poucos metros porque tem de reduzir pra segunda para fazer o Bico de Pato. Depois passa duas marchas e mergulha (literalmente) para a Curva do Mergulho, reduz uma marcha para fazer a Junção e a curva do Café, passando um monte de marcha até engatar a sexta, manter o acelerador todo aberto, não desacelera na 1 e 2, continua aberto até a frenagem da Curva 3.

Pronto, estava tudo decorado, só faltava dar certo!

De onde saiu tanta gente?

No treino livre de domingo (warm-up) percebi que a moto tinha melhorado bastante. Eu também. Sentia dor no corpo todo, inclusive em músculos que nem sabia que eram usados pra correr de moto. Não vi meu tempo nesse treino, por isso não soube que tinha melhorado tanto que me daria uma posição entre os 10 primeiros fácil.

Todo tranquilão fui bater um rango por volta do meio-dia porque a largada seria às três da tarde. Quando estava com a barriga cheia de Coca-Cola e misto Afonso (uma delícia feita de massa folhada que nunca mais comi na vida), meu colega de box passou voando por mim gritando:

– O que você está fazendo? A nossa largada é daqui 10 minutos!!!

– Não, é só às três da tarde – respondi com a certeza dos ignorantes!

– TREZE, É ÀS TREZE HORAS!!!

Olhei pro relógio: era 12:50!

Corri de volta pro box, desesperado, me vesti voando, subi na moto e consegui passar pela cancela dos boxes faltando um minuto pra fechar a saída. Na volta de apresentação percebi que meu almoço começou a conversar comigo. NUNCA, repito NUNCA coma, vista um macacão de couro e deite em cima de um tanque de gasolina a 190 km/h. Não faça isso!

Quando parei no grid de largada na penúltima fila parecia que tinha uma ratazana no meu esôfago. E daquelas cheias de unhas e pelos. Era minha primeira largada de moto, meu coração disparado e precisava brigar pra manter uma argamassa com Coca-Cola dentro do meu aparelho digestivo. Que estreia!

Olhei a arquibancada cheia de gente e achei melhor fechar a viseira do capacete pra evitar expor meu almoço ali pra todo mundo. Pelo menos ficaria dentro do capacete.

Quando acendeu a luz verde tudo isso passou. Foi todo mundo pra esquerda pra evitar a ultrapassagem, mas eu fui pra direita e passei um monte de gente na Curva 1. No final do Retão passei mais alguns. Pensei “será que esse povo está tudo de RD 135?”. Não era. Eu que estava rápido de verdade.

Fiz a primeira volta e já conseguia ver os primeiros lá na frente. Entre eles e eu tinha um monte de moto. “De onde saiu tanta moto?”, pensei, mas eu não tinha ideia da posição que estava.

Meu almoço se estabeleceu em algum lugar entre o esôfago, estômago e duodeno e só dava sinal de vida na frenagem do Sargento. E foi bem lá que eu quase terminei a corrida estampado no guard-rail.

Na metade da corrida eu já estava entre os seis primeiros (mas não sabia) quando saí da Curva do Sol, peguei um pedacinho da lavadeira na saída da curva, a RD 350 deu uma chacoalhada que um touro chucro, estabilizou e quando fui frear pro Sargento cadê o freio? A RD tinha um projeto meio esquisito e os freios dianteiros eram fixos (e não flutuantes). Quando a frente balançava, os freios torciam levemente e empurravam as pastilhas de freio. Na hora de frear a manete ficava xoxa e não freava nada, precisava bombear a manete que nem a DKW Vemaguet do meu pai.

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Eu sentado na Vemaguet do meu pai: só parava se bombeasse o pedal do freio. (Foto: Pai)

Ninguém tinha me contado nada sobre esse detalhezinho e por isso passei muito o ponto de freada, alarguei o máximo a curva do Sargento, vi o guard-rail crescer na frente do meu nariz, lembrei do almoço ainda ali prestes a chegar ao cólon, alinhei a moto e saí ileso, mas passou um monte de gente por mim!

Segredo revelado

Depois desse susto ficava com um dedinho na manete de freio sempre ali, testando se estava tudo no lugar. A cada volta eu melhorava um pouco, deitava mais nas curvas e comecei a raspar os joelhos no asfalto. Como o macacão não tinha slider abriu um buraco e percebi que era meu joelho mesmo que estava raspando no asfalto. Já tinha ido a epiderme, a derme e falta pouco para a hipoderme.

Tive de controlar a inclinação nas curvas de baixa velocidade, mesmo assim consegui passar mais um monte de piloto (parecia que tinha 200 motos na pista) e quando recebi a bandeirada não tinha ideia da minha posição. Sabia que estava entre os 10 primeiros, mas fui pro box preparado pra me arrumar e vomitar.

De repente ouvi meu nome sendo chamado pelos alto-falantes. Pensei, “pronto, descobriram que roubei a moto da Yamaha, estão atrás de mim”. Mas na verdade era pra subir no pódio porque eu tinha chegado em quinto lugar!!! Jamais imaginaria que isso fosse acontecer com uma moto sem preparo e um piloto totalmente inexperiente. Recebi um troféu, levei um banho de champanhe e saí de Interlagos com a certeza que tinha nascido um novo futuro campeão mundial!

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Dez anos depois foi a minha reestreia com uma Honda RS 125.

Depois dessa estreia, montei toda a Yamaha RD 350 de volta, apaguei os vestígios da minha “apropriação indébita” e devolvi pra Yamaha como se nada tivesse acontecido.

Logo depois eu saí do jornalismo e fui trabalhar na Philips do Brasil. Não consegui ficar muito tempo no mundo corporativo, mas com o dinheiro poupado comprei uma RD 350 só pra mim. Levei pro amigo e preparador Renato Gaeta que deixou a moto realmente acertada. Entrei de novo no Campeonato Paulista e consegui uma pole-position, dois quarto-lugares e um quinto. Com estes resultados eu estava em terceiro no campeonato, super animado para fazer a temporada toda e cheio de planos para disputar o título quando veio uma crise braba e o campeonato foi interrompido!

Só voltaria a correr de moto 10 anos depois, já na categoria 125 Especial, de Honda RS 125, mas isso é outra história. O melhor vem agora.

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Com a minha RD 350 comprada fiz mais três corridas sempre entre os primeiros.

Passei anos achando que a Yamaha nem imaginava que eu tinha corrido em Interlagos com a moto deles, até que, quase 20 anos depois, em um evento da Abraciclo, sentei numa mesa cercado do amigo e ex-gerente da Yamaha, Ryo Harada e o Wilson Yasuda, então executivo da Honda. De repente o Yasuda vira pra todo mundo, aponta pra mim e solta a bomba:

– Aqui está o homem que roubava moto da Yamaha pra correr em Interlagos!

Fiquei chocado e perguntei:

– Como você sabe disso?

– Todo mundo sabia disso, no momento que você pisou em Interlagos, até o presidente da Yamaha já estava sabendo!

Virei pro Harada, que era gerente da Yamaha nessa época e perguntei se era verdade. Ele explicou:

– Sim, todo mundo sabia. Quando você chegou em Interlagos o fiscal que fazia vistoria era um técnico da Yamaha, que reconheceu a moto e me ligou. Eu liguei pro Zampa (Marcus Zamponi, assessor de imprensa da Yamaha), falei que tinha um jornalista correndo em Interlagos com a nossa moto de teste e perguntei o que fazer. Ele só respondeu:

– Reza pra esse filho da puta não morrer!

Pensa numa reza boa!

A História da foto: uhuuu, Interlagos é nosso!

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133 cavalos à disposição numa pista inteirinha só pra mim (Foto: Luca Bassani)

Como foi passar mais de três horas sozinho dentro de Interlagos

Nesta semana, dia 12 de maio, Interlagos comemorou 80 anos de vida. Desses 80 eu participei de 55. Minha primeira vez em Interlagos foi aos seis anos, levado pelo meu irmão mais velho e a molecada do bairro... de bicicleta! Pulamos o muro, cheguei perto da grade na reta dos boxes bem na hora que passou um carro de corrida muito barulhento. O som atravessou meu plexo braquial, atingiu o coração e assim fui inoculado pelo vírus da velocidade. Depois desse dia Interlagos passou a ser meu parque de diversões favorito. Até quando não tinha corrida eu entrava na pista e ficava andando a pé, recolhendo pedaços de carros de corrida para retirar os adesivos. Pense numa infância feliz!

Além de frequentar Interlagos nestes 55 anos, também corri de carro e moto nas duas versões da pista. Participei de centenas de eventos, fotografei F-1, Mundial de Motovelocidade, vários latino-americanos, sul-americanos, de todas as modalidades possíveis. Só não fui em show de música nem missa!

Mas teve uma vez que Interlagos, com seus um milhão de metros quadrados foi inteirinho meu por uma tarde inteira. E melhor: com uma Suzuki GSX-R 750 e o fotógrafo totalmente descompensado, louco, histérico e super criativo Luca Bassani. Antes de contar como isso aconteceu, deixa explicar como é o Luca.

Nos meus quase 40 anos de jornalismo tive a chance de trabalhar com dezenas de ótimos fotógrafos. O meu histórico de fotógrafo – com experiência em competições – ajudava bastante porque eu conseguia entender exatamente o que o fotógrafo queria e ainda dava vários pitacos. Com o Mário Bock rolava uma interação tão grande que a gente terminava tudo bem rápido para ficar mais tempo perambulando pelas ruas sem ter de voltar à redação. E sempre ficava ótimo!

Aprendi demais com artistas como Marco de Bari (in memoriam), Ricardo Bianco, Saulo Mazzoni, Roberto Agresti, Mario Villaescusa, Fábio Arantes (meu filho adotivo), Idário Café, Norberto Marques e muitos outros que peço desculpas se não lembrei. Mas foi com o Luca Bassani que fiz as loucuras mais ousadas.

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Nossa parceria nasceu nos corredores da revista Auto Esporte, quando ainda era publicada pela editora Efecê. Os editores eram meus amigos Caio Moraes e Eduardo Dória que me davam total liberdade para criar e ainda imploravam para eu manter o Luca o máximo de tempo fora da redação, porque ele também sofria do mesmo mal que eu, o bichus cullus, que nossos avós chamavam de bicho carpinteiro* e os psicólogos chamam de TDA.

Já conhecia o Luca de outros carnavais, mas começamos a trabalhar juntos por volta de 1996. Ele adorava fotografar moto porque podia pirar à vontade. Ele me falava:

– Seguinte, a revista Auto Esporte é de carro. A moto é uma intrusa na pauta, então a gente tem de ser diferente das revistas de moto. Temos que fazer as fotos mais doidas para atrair o leitor que só gosta de carro.

Daí nasceram pautas e fotos memoráveis.

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Comportadinho na BMW R 1100GS para bons moços (Foto: Luca Bassani)

Mein Gott

Uma dessas pautas foi da BMW R 1100 GS que chegou nas minhas mãos com pouco mais de 100 km rodados. Uma moto linda, icônica, um sonho de consumo de todo motociclista estradeiro. Eu principalmente. Mas era uma moto caretona, que não inspirava muitas ousadias. Quer dizer, até entrar o Luca em ação.

Fomos para a praça Charles Miller, no Pacaembu, bem perto da redação da Auto Esporte e o Luca falou:

– Temos de inventar algo diferente, vamos fotografar essa moto de tiozinho como se fosse uma esportiva radical?

Topei na hora e foi um festival de burn-out, empinadas, curvas raspando pedaleiras, tudo que um verdadeiro cavalheiro não deveria fazer com uma 1100 GS. Eu estava adorando porque era uma moto pesada, com um baita motorzão gigante, mas empinava como se fosse uma leve motocross dois tempos. Me diverti horrores, terminamos as fotos, cada um foi pra sua casa e continuei minha existência normal até a revista ser publicada e eu receber uma ligação do editor Caio Moraes.

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Borrachão de BMW? Nein, isso não se faz, der prezidenten não gosta! (Foto: Luca Bassani)

Segundo ele, o presidente da BMW viu as fotos e rodou das baianen. O executivo subiu nas tamancas, ligou na Auto Esporte e pagou geral. Falou bem assim:

– Ezze Gerraldo Zimöes está fica broibido de teztar os nossos motorrad BMW, Mein Gott Immer Fix Halleluja Nochmal!

Ao que o Caio, na macheza característica da família Simões, respondeu que então não haveria mais matéria com BMW porque o Geraldo Simões é nosso piloto de teste, punto & basta! Peitou o alemão!!!

Para nossa sorte – minha, do Caio e do departamento comercial – este presidente foi enviado para a Argentina (bem feito) e o novo era bem mais legal, inclusive acho que está até hoje.

O que pouca gente sabe é que em um teste para outra revista esta mesma BMW 1100 teve um pequeno problema técnico: o cardã explodiu que nem uma bolacha cream-cracker. Dizem que encontraram um pedaço de alumínio na ponta do Obelisco, no Parque Ibirapuera. Fico só imaginando a cara do der Prezidenten recebendo a motorrad despedaçada com óleo até no documento!

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Onde está o fotógrafo? (Foto: Luca Bassani, de dentro do bueiro)

No buraco

Nesta época já tínhamos as câmeras digitais (caríssimas), mas ainda pesadas e com lentes igualmente pesadas. O Luca não economizava em equipamento e socava tudo em uma VW Santa Quantum. O porta-malas enorme vivia carregado de máquinas, lentes, tripés, flashes, parecia um estúdio ambulante. Para evitar que ele ficasse zanzando pela cidade com dezenas de milhares de dólares eu pegava as motos e ia até a casa dele, num condomínio elegante de Jundiaí que já servia como locação para várias de nossas fotos.

Naquela euforia de fazer fotos diferentes o Luca desmontava os tripés e criava suportes para gripar a máquina fotográfica em alguma parte das motos, criando as tais fotos subjetivas. Hoje em dia isso é moleza, tem centenas de modelos de grip à venda no Aliexpress. Ou os recursos do Photoshop que faz qualquer moto fotografada em estúdio aparecer voando no meio de uma praia havaiana. Mas em 1996 era tudo feito na base do improviso e alguns quilômetros de silver tape.

Uma vez, fotografando uma moto custom no condomínio dele, o Luca viu um bueiro sem tampa. Na hora teve a ideia de se enfiar no buraco para eu passar bem perto. O resultado foi uma foto de um ângulo totalmente diferente, que desafia qualquer pessoa a descobrir onde raios está o fotógrafo ou a máquina fixada.

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Interlagos ao contrário vira Sogalretni. (Foto: Acul Inassab))

O nosso Interlagos

Mas a grande obra-prima da dupla Luca-Tite aconteceu em Interlagos, com data e hora. Foi no dia 7 de julho de 1998, plena Copa do Mundo de Futebol, jogo na fase de mata-morre (não se deve usar mata-mata porque se os dois morrem ninguém passa de fase, alguém tem de viver!), jogo decisivo da semi-final entre Brasil e Holanda.

Como a moto era uma Suzuki GSX-R 750 achei que seria perfeito fotografar em Interlagos. Quando liguei pro Luca comentei que durante a semana eu costumava fazer fotos nos trechos velhos de Interlagos, especialmente na curva do Sargento, ainda preservada, e que os administradores liberavam na boa. Já tínhamos feito fotos da Honda CBR 1000XX nesse local e deu super certo.

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Uma das mais lindas fotos que participei, onde está a máquina? (Obra de arte: Luca Bassani)

Como nenhum de nós curte futebol nem nos demos conta que era justamente esse dia de jogo da Seleção Brasileira e chegamos no portão do autódromo logo depois do almoço, faltando uns 15 minutos pro juiz apitar o começo da partida.

O vigia olhou pras nossas caras e perguntou:

– O que vocês estão fazendo aqui a essa hora?

Expliquei a situação, falei as palavras mágicas que abriam as portas de Interlagos (jornalista, amigo do administrador da pista, bla bla bla e mais bla bla). O vigia estava numa sinuca, porque se ele proibisse a nossa entrada poderia levar uma comida, mas se liberasse ele teria de nos acompanhar até acabar as fotos.

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"Vai lá a voa na zebra!" OK, pediu, nóis faiz. (Foto: Luca Bassani)

O tempo foi passando, o jogo já pra começar e ele tomou a decisão mais inesperada. Foi até o portão, abriu o cadeado, fechou o portão mas não fechou o cadeado, virou pra gente e disse:

– Olha aqui, vocês vão entrar, fotografar, fazer o que bem entender, não tem ninguém na administração, nem médico, ambulância, nada. Só vou te pedir UMA coisa: não morra nessa merda!

Que chato essa coisa de toda hora pedirem pra eu não morrer!

Passamos pelo portão, chegamos na reta dos boxes, olhamos um pra cara do outro e tivemos uma crise de riso quando gritei:

– PORRAAAA, INTERLAGOS É TODINHO NOSSO!!!

Dois loucos à solta dentro de Interlagos! Ligamos o rádio pra controlar o tempo de jogo e foi uma maravilha: o jogo empatou nos 90 minutos, foi pra prorrogação, disputa de pênalti, par ou ímpar, cara ou coroa, a porra do jogo não acabava mais! Tivemos Interlagos a tarde inteira só pra nós!

Com todo tempo do mundo o Luca decidiu inventar. Ele gripou a máquina na lateral da Suzuki com pedaços de tripé e quilos de silver tape e enquanto eu pilotava ele acompanhava de carro, disparando a máquina por controle remoto. O dia estava lindo, aquele sol tímido de inverno, a luz perfeita, céu azul, tudinho estava perfeito demais. Nada pode ser assim tão perfeito, alguma coisa iria dar errado a qualquer momento. E deu!

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Revista Auto Esporte na época que publicava testes de motos.

Empolgado com a pista inteira só pra mim comecei a pirar, deitar loucamente nas curvas e esqueci da máquina gripada na lateral. De repente, no Pinheirinho, inclinei demais, a câmera raspou no asfalto e saiu voando! Quando vi pelo retrovisor a máquina rolando pensei:

– MeeeeooooDeooossss, o Luca vai me matar, esquartejar, jogar o corpo no Lago e criar um álibi!

Fiquei um tempo parado, olhando aquela cena. O Luca estático. Eu branco. O Brasil empatado com a Holanda. O ar parado. Nenhuma folha se mexia. Tudo ficou silencioso, só o rádio do carro anunciando que haveria prorrogação. Deixei a moto ligada e engatada para o caso de uma fuga.

O Luca foi caminhando calmamente até a máquina, pegou, olhou, olhou, eu com a moto ligada, primeira engatada, pronto pra correr, até que ele virou e falou:

– Ah, relaxa, tenho outra na mala!

Foi até a Quantum, abriu o porta-mala, pegou outra câmera e fez sinal para eu continuar andando. Finalmente pude relaxar o esfíncter, mas não por muito tempo.

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O mago, paciente e louco Luca Bassani.

Estávamos tão à vontade que eu ficava pilotando nos dois sentidos pro Luca fotografar sem ter de esperar dar a volta inteira na pista. Até que ele fez o sinal positivo indicando que tinha acabado.

Bom, eu estava numa Suzuki GSX-R 750 SRAD, 133 cavalos, sozinho em Interlagos. Tinha passado horas controlando a velocidade para as fotos, quando ele me liberou pensei no silêncio do meu capacete:

– É hoje! Hora de se divertir!

Comecei a dar voltas mais feliz que criança em loja de doce. Cada vez que passava no Retão olhava pro velocímetro a estava lá 250, 260, 270 km/h. Na Subida do Café eu via as marcas deixadas pelo pneu traseiro e pensava “nossa, sou eu mesmo que estou fazendo isso!” Dei um zilhão de voltas, aumentando o ritmo, tentando manter um resquício de juízo, afinal estávamos sozinhos sem ninguém pra socorrer em caso de acidente. E eu tinha prometido não morrer.

Foram tantas voltas que uma hora começou a ficar chato e então tive a ideia cretina do dia: rodar no sentido contrário!

Se você nunca pilotou em Interlagos no sentido contrário não sabe o que está perdendo. É outra pista! Demorou um tempão pra decorar as frenagens, as curvas, o que era subida vira descida e vice-versa. O S do Senna fica perigoso porque a moto saía já a uns 180 km/h passando pertinho do guard-rail. Deu um nó na minha cabeça e precisava esquecer que aquela pista era Interlagos.

A Subida do Café vira Descida do Café e foi bem lá que eu quase quebrei a promessa de ficar vivo. Com a calibragem original a moto escorregava de traseira, de frente, nas duas rodas, parecia que a pista estava úmida só onde eu passava. Fazer a curva do Café ao contrário é uma sensação muito louca porque se torna uma curva cega, em descida e com uma baita frenagem para a Junção, na descida, com inclinação negativa.

Claro que me empolguei e quando encostei o dedo na manete do freio dianteiro, para fazer a Junção (ou a Oãçnuj) a frente criou vida própria e foi embora! O pneu dianteiro não aguentou tanto desaforo e decidiu me largar na mão. Senti a frente derrapar, derrapar e derrapar mais um pouco, e eu só pensando na manchete dos jornais no dia seguinte: “jornalista invade Interlagos em dia de jogo e se espatifa no guard-rail”. Rezei pra Nossa Senhora da Aderência, virei os semi-guidões pro lado a favor da derrapagem, a moto levantou, o pneu ganhou tração, a moto foi direto pro enorme gramado e fiz um grass-track a uns 140 km/h. Se tivesse um guard-rail naquele ponto ei teria quebrado a promessa que fiz pro vigia.

Quando vi que estava inteiro aliviei (de novo) o esfíncter e fui encontrar o Luca Bassani, pianinho. Falei pra ele:

– Acho melhor a gente ir embora. Enquanto ainda estou vivo!

 

* Só por curiosidade a expressão “tá com bicho carpinteiro” na verdade é “está com bicho no corpo inteiro”, para representar a criança que não parava quieta, como se tivesse o corpo cheio de bichos. Mas algum mineiro ouviu e traduziu pro idioma exclusivo deles.

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