O futebol perdeu para a paixão por esta moto...
O que eu fiz nestes últimos 50 anos com relação à Copa do Mundo
Ninguém nasce Tite por acaso. Esse não é meu nome de batismo, mas só fiquei sabendo disso com seis anos de idade, ao entrar na escola. Depois de uma semana reclamei pra minha mãe:
- A professora não fala meu nome na chamada! chama todo mundo, menos eu! Mas tem um tal de Geraldo que nunca vai na escola!
- Esse Geraldo é você, seu nome é Geraldo Simões.
Nunca me recuperei desse choque de me chamar Geraldo.
O apelido Tite nasceu comigo porque meu pai foi jogador de futebol, na época que futebol era uma paixão. Não teve uma carreira longeva porque num dado momento a vida o colocou diante de uma encruzilhada: ser jogador ou sustentar a família. Naquele tempo o futebol ainda não era uma caixinha de dólares e ele decidiu pela segunda opção. Mas o amigo dele seguiu carreira, se tornou até uma celebridade no Santos FC e em homenagem a ele eu virei Tite. E filho de um ex-jogador de futebol.
Já sentiu a carga de responsabilidade?
Cresci vivendo, respirando, almoçando e jantando futebol. Meu pai me levava aos jogos e quando o Corinthians fazia gol ele me jogava pra cima umas três vezes e até hoje lembro do frio na barriga a cada voo. Ganhei dezenas de bolas de futebol. Assistia jogos em estádios desde que me conheço por gente e minha casa era frequentada por jogadores de futebol. O primeiro contrato de publicidade do Pelé foi com uma cachaça! Isso mesmo, a Caninha Pelé e quem redigiu o contrato foi meu pai, então recém-formado em contabilidade.
Percebeu a minha situação? Mas... o futebol não pegou na minha veia. Nunca consegui jogar e até minhas primas jogavam melhor que eu!
Minha primeira Copa do Mundo depois de nascido foi 1962, mas juro que não lembro de nada, só tinha três anos. Depois a de 1966 lembro vagamente do meu pai de orelha colada no rádio de pilha, xingando e gritando. Mas aí veio 1970 e tudo mudou!
Até hoje lembro a alegria ao ver um aparelho de TV Telefunken entrando em casa. Meu pai apertou um botão e... ooohhhh televisão a cores! (eu ainda não sabia do meu probleminha com as cores... só descobri com 12 anos).
Tínhamos TV a cores, uma seleção com jogadores amigos do meu pai em campo e uma euforia deliciosa pelas ruas. Aí sim fui contaminado. Fizemos bandeiras enormes com resto de tecido, enfeitamos o carro, pintamos as ruas, bandeirolas, foguete, festa e o climax: Brasil tri-campeão! Acertei o resultado contra a Itália e ganhei o único bolão da minha vida. Todo dinheiro virou carrinhos Matchbox.
O futebol me pegou com tudo. E acho que toda geração que viveu o Tri foi contaminada.
Pena que durou pouco. Apenas dois anos depois meu pai apareceu com uma novidade que mudaria minha vida: comprou uma moto! uma Suzuki A 50II e o futebol - e todo resto - desapareceu do meu pensamento. Foi amor ao primeiro cheiro de óleo dois tempos. Adiós futebol!
As outras copas
A única coisa que me lembro da Copa de 1974 é que o Pelé não jogou, mas o Rivelino jogou e só sei disso porque ele também era amigo do meu pai. De resto nem sei onde foi realizada.
A de 1978 eu já trabalhava como redator publicitário em uma agência de propaganda. Tinha uma Honda CB 400Four e vida de mauricinho. Nesta copa os jogos eram realizados no horário do expediente, como a de hoje e os chefes nos dispensavam pra ver os jogos, só que tínhamos de voltar.
A partir de 1977 meu interesse por futebol sumiu de vez porque entrou a gasolina
Como eu não fazia a menor questão de ver jogo algum, reparei que uma bela diretora de arte também não saía pra ver os jogos e aproveitava para "adiantar o serviço". Eu também tratei de adiantar o meu serviço, entrei de sola e descobrimos que tem coisa muito mais legal pra fazer em 90 minutos de folga no trabalho...
Lembro que no jogo do Brasil x Argentina fomos almoçar numa cantina italiana e, claro, só tinha o casal de pombinhos arrulhantes, para desespero dos garçons extremamente mal humorados. Acho que todos cuspiram na minha comida, sem falar em coisa pior, porque, se não me falha a memória, o jogo acabou empatado. E eu fui despedido porque não sabia que a diretorinha de arte era reserva de mercado do dono da agência.
Já a copa de 1982 passou batida mesmo, não lembro nem sequer onde foi, quando foi e quem ganhou. Mas tudo começou a mudar em 1986...
Não, eu não passei a gostar de futebol, mas depois daquela experiência alternativa de 1978 com a diretora de arte comecei a entender que copa do mundo era sinônimo de horas de tranquilidade, vários dias. Essa copa ficou marcada para mim porque a Honda lançou a CBX 750F, a maior moto comercializada no Brasil da época, pelo menos à venda legalmente!
O Brasil iria jogar contra a França já na fase de mata-mata. Olhei pra garagem da editora na qual trabalhava, vi a CBX 750F preta implorando por um passeio e decidi que o dia certo era esse, assim pegaria a estrada vazia e sem polícia! Olhei pro mapa e pensei: "puxa, não conheço Brasília!"...
Graças à minha sorte, o jogo teve prorrogação, disputa de pênaltis, par ou ímpar, batalha naval e demorou uma eternidade pra acabar. Nunca Brasília foi tão perto, tudo por conta daquela velha equação de espaço sobre tempo etc. Se aquele motor não fundiu nesse dia nunca mais. Mas como sempre fui um cara que preza os próprios ovos, quando pra abastecer perguntava o placar, assim controlava o quanto de estrada livre teria. Até que um caminhoneiro deu a notícia: o Brasil foi eliminado. Decidi parar no primeiro hotelzinho e dormir porque sabia que a ressaca seria brava e a estrada estaria cheia de bebuns!
(A título de curiosidade, no dia seguinte o Ayrton Senna venceu o GP dos Estados Unidos de F-1 e para responder aos franceses da Renault exibiu uma bandeira do Brasil após a bandeirada e isso viraria moda em outras modalidades).
E chegou 1990 e mais uma vez dei a mínima pra Copa do Mundo e confesso que nem sei onde foi realizada, mas em épocas de Google fui lá pra saber: foi na Itália. Bella roba!
Até que veio 1994 e algo de mágico aconteceu...
Interlagos todo meu...
O ano de 1994 foi um marco na minha relação com o futebol. Novamente os jogos foram em um horário que permitia ser despachado pra casa. Eu era editor da revista Duas Rodas e com uma equipe reduzida tinha de me desdobrar para fechar as edições no prazo. Por isso lembrei daquela diretora de arte e aproveitava os dias de jogos do Brasil para ficar sossegadão, sozinho, adiantando meu lado, sem telefone tocando nem ninguém pentelhando. Uma beleza.
Só ficava eu e o diretor de redação, Josias Silveira, outro que estava nem aí pro futebol. Ele sabia que eu estava lá na redação todo tempo, sem TV nem rádio ligado e isso funcionava muito bem.
Além disso, era colaborador da revista Auto Esporte e recebi uma ligação do fotógrafo Luca Bassani, outro futeboless que teve uma ideia genial: precisávamos fotografar uma moto esportiva, a Yamaha R1 e seria ótimo aproveitar a cidade vazia!
- Boa, respondi, mas tenho uma ideia melhor: vamos pra Interlagos!
Depois da reforma que picotou o circuito de Interlagos sobraram algumas curvas do circuito antigo e eu costumava usar esses trechos para as produções de foto. E lá fomos nós!
O dia era 9 de julho, jogo do Brasil x Holanda. Assim que parei no portão do autódromo com a R1 e vestindo o macacão de couro o porteiro quase enfartou:
- Aaaaaaaahhhh não, hoje não! Hoje tem jogo do Brasil.
Fiquei lá argumentando, conversando e o tempo passando e o porteiro desesperado pra vazar e ver o jogo. Até que ele pegou a chave do cadeado, me entregou e despediu-se com um:
- Só me faz um grande favor: não morre nessa merda hoje!
Bom, atendi o pedido, mas imagine o que significa receber a chave de Interlagos por duas horas inteiras! Assim que passamos pelo portão o Luca falou:
- Pô, pra que usar a pista velha se estamos sozinhos e com a chave de casa! Vamos usar a pista toda!!!
Olha, eu não morri, claro, mas se você quiser saber como é o paraíso passe duas horas dentro de Interlagos com uma Yamaha R1 debaixo do braço sem ninguém pra lhe aperrear!
As fotos ficaram maravilhosas porque o Luca é artista e louco. Nos tempos da câmera analógica, filmes cromo, sem os mecanismos de gripar máquina como hoje, nós prendíamos a máquina usando pedaços de tripés, rolos de silver tape e nenhum juízo. A máquina tinha acionamento por controle remoto e o Luca ia correndo a pé, ao lado do asfalto, disparando as fotos. Uma comédia.
E eu gastei um par de pneus sem o menor remorso. Cheguei a fazer várias voltas no sentido contrário só pra ver como era. Interlagos todo meu, nunca mais tive isso na vida!
Mas a grande revolução seria no último jogo, a final do Brasil X Itália. Ali tudo iria mudar... pra sempre!
Uma das pautas da Duas Rodas era o teste de uma Yamaha TDM 900. E o fim de semana de 16 de julho seria perfeito, porque a previsão de tempo era céu claro, zero de chuva e no domingo seria a final da Copa do Mundo. Ótimo, ninguém nas ruas e estradas...
Peguei a moto com a pretensão de moer a bicha, ver se ela era realmente uma fun-bike e se enfrentaria uma estrada de terra. Monte Verde, na divisa de SP e Minas parecia perfeito porque tinha estradas de asfalto com muitas curvas e uma estradinha de terra honesta.
Como previ, domingo amanheceu ensolarado, mas estranho. Ninguém nas ruas e o jogo também demorou muito, com prorrogação, pênalti, jogo da velha, dardo etc. Passei o tempo todo rodando de moto e fotografando sem nem uma viv'alma por perto. Quando estava já escurecendo começou a bagunça: o Brasil tinha conquistado o título depois de um jejum de 24 anos. Imagine a festa!
Parei na vila e as pessoas estavam enlouquecidas mesmo! Mas um estava especialmente doidão. Um suíço, dono de um bar, pirou o cabeçote totalmente. No maior pileque do mundo - e devo dizer que donos de bares não devem ficar de pileque - ele beijava todo mundo, chorava de alegria e porque todo bêbado chora. Até que tomou a pior das decisões, subiu numa mesa e gritou com o sotaque alemão:
- Tzô tzanto feliz que agorra é open-bar! Podem beber o que quiserrem, non preziza pagar nada! É tudo por minha conta... e capotou!
Só pra conferir chamei o cabra de lado e perguntei:
- Spinnst du? Alles frei?
- Jaaaaa, mund frei!
Se tem uma palavra que vale a pena saber em vários idiomas é "grátis"...
Desnecessário dizer que foi um dos maiores porres da minha vida. Misturei tudo que era líquido e engarrafado. Acho até que tomei um gole de querosene! De repente me dei conta que não era o mundo que estava girando, mas eu mesmo. Por mais que me agarrava à mesa ela continuava girando que nem um carrossel. E percebi que a TDM estava lá fora, me esperando pra voltar pro hotel. Mein Gott!
Olhei pra moto e pensei: estou perto do hotel, conheço bem o caminho, acho que dá pra pilotar. Assim que conheci a TDM xucra, porque eu subia de um lado e caía do outro. Num frio de lascar, tremendo, percebi que não teria outro jeito senão voltar a pé, quer dizer, a pé, de joelhos, rastejando, de qualquer forma, mas a moto ficaria ali mesmo, no estacionamento do das boteken!
Não me pergunte como cheguei ao hotel, mas tinha terra até no ouvido. Ainda consegui tomar banho, deitar na cama e... nunca mais acordar!
Pela segunda vez na vida tive aquela sensação da alma saindo do corpo, conversar com Deus, ter visões de minhas vidas passadas etc, mas era só ressaca mesmo. Quando o mundo parou de girar olhei pro relógio: era 13:00 horas da segunda-feira e meu fígado nunca mais esqueceu desse dia... Eu levantava da cama e capotava de novo. Foi assim até as 15:00 horas...
Enquanto isso, na redação da Duas Rodas todo mundo estava preocupadíssimo, porque todos os fanáticos foram trabalhar, menos o agnóstico de futebol. E tinha viajado de moto!
- Morreu, decretou Josias Silveira! Esse FDP morreu na estrada, deve ter rolado um barranco e ninguém viu o corpo. Só vão achar quando ele apodrecer! Como vou avisar a família?
Mais uma vez não morri, mas cheguei bem perto disso, porque viajar 220 km, de moto, com uma ressaca dos infernos é o mais perto que alguém chega da morte. Só apareci na terça-feira, amarelo, com a moto toda suja e quando eu pensava que ia levar o maior esporro o Josias me abraçou, quase me beijou:
- PORRA, VOCÊ ESTÁ VIVO!!!
So what?
Não foi a ressaca, nem a minha experiência de quase morte, nem o Galvão Bueno gritando éééeéé teeeeeeeeeetra, nem a festança que tomou conta do Brasil. O que me fez, depois de 26 anos, voltar a me interessar por futebol foi a alegria das minhas filhas.
Elas acompanharam os jogos, torceram, sofreram e se alegraram e o pai delas estava nem aí, passeando de moto. Não estava sendo justo com elas. Todos os filhos viveram aquela conquista abraçados aos seus pais, como eu vivi em 1970 e meu pai me jogava pra cima a cada gol do Brasil. Não podia tirar das minhas filhas o direito a um pai normal.
E foi assim, no outono de 1994, que passei a gostar de futebol, sem fanatismo, sem exageros, nem conhecimento - até hoje não entendo o impedimento. Procurei cumprir a minha divina função de pai e de filho e passei a acompanhar os jogos só para mostrar o interesse ao meu pai e não podar esse prazer das minhas filhas. Se me pego discutindo futebol é por mera inércia e se até alimento alguma simpatia por um time ou pela seleção brasileira é pouco ou nada a ver com fanatismo ou paixão, mas posso dizer que é simplesmente por amor e respeito às pessoas que gostam.