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O cocô, a política e o trânsito

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Eu estaciono onde quiser, vocês não me importam...

Qual a relação entre esses três elementos 

Já começo pedindo desculpas pelo tema, porque falar de cocô é um tabu, apesar de ele fazer parte de nossas vidas do nascimento até a morte. Mas não se costuma falar em cocô a menos que seja em livros de medicina. E um dos motivos é por ser um assunto muito pessoal: cada um cuida do seu! Ou melhor, do seu e dos animais de estimação. 

Moro no mesmo endereço há 45 anos. No começo era um bairro tranqüilo, afastado do centro de São Paulo e com poucos moradores. Hoje faz parte da super populosa zona sul, que cresceu de forma exponencial, sem planejamento. Continua um bairro de classe média, Z1 (só para casas), mas não existem mais áreas verdes, parques, campos de futebol. Virou tudo casa, calçada e asfalto. 

Quase todos os dias encontro cocô de cachorro na calçada bem em frente ao portão. Ou cocô de gato na minha garagem, no carpete ou no jardim. Só que eu não tenho gato, nem cachorro!

 

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Quem picha uma obra de arte respeita a sociedade? 

O mundo mudou muito em 45 anos, algumas coisas para melhor, como a medicina, a eletrônica e a tecnologia; mas outras para pior, como a educação do ser social. E aqui começa a relação entre cocô, política e trânsito. 

Em pleno século 21, ano de Olimpíadas, ainda tem gente que vive como se estivesse na Idade Média. Naquela época não havia banheiro nas casas. Usava-se penico, onde os moradores faziam as necessidades, iam até a janela e jogavam aquela sujeira na calçada, bem na frente das casas. Imagine cidades grandes como Paris e Roma com montanhas de fezes e urina nas ruas. Isso provocava um mal cheiro, chamado na época de mal aire, palavra que deu origem ao nome da doença malária. 

Passaram-se 1.100 anos e as grandes cidades ganharam redes de esgoto, mas ainda tem gente que joga cocô nas ruas como se vivessem no século 10.

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Olha como era o banheiro na Idade Média! 

Doença social

Tem nome: chama-se sociopatia. O sociopata é um doente, mas como a maioria dos doentes comportamentais ele não sabe, ou acha que doentes são os outros. O cara que sai de casa com o propósito de pichar uma parede, monumento ou fachada de prédio quer dar o seguinte recado para a sociedade: vocês são tudo um monte de cocô. O sujeito que deixa o cocô do cachorro na porta da casa de alguém acha que esse alguém é menos importante do que meio quilo de cocô. 

Se ele age assim com as fezes do seu cachorro, pode até ser que no ambiente de trabalho seja um chefe exemplar, um funcionário dedicado, mas duvido. Essa falta de educação social se reflete em todo relacionamento. Provavelmente são pessoas que se comportam como bons cidadãos até o garçom demorar para trazer seu pedido. 

Essa dupla personalidade fica muito evidente no trânsito. O pai, ou mãe, que para em fila dupla na porta da escola para deixar ou buscar o filho está pouco se lixando para os outros motoristas e pedestres. É uma pessoa para a qual os outros valem menos que o cocô de cachorro. O motociclista (ou motoqueiro, que é a mesma coisa) que roda a 90 km/h no corredor entre os carros, tocando a buzina ou acelerando um escape aberto é outro que coloca nos outros a mesmo importância que dá ao cocô do cachorro. Idem o pedestre que decide atravessar por baixo de uma passarela (construída para salvar a vida dele), ou o ciclista que ignora todas as regras de trânsito, que estão nem aí para os outros, quer apenas andar como e onde bem entende. 

Aí está a grande dificuldade em trabalhar com mobilidade urbana: cada um quer fazer apenas o que é melhor para si, sem dar a mínima para os outros. Ora os outros, pra eles deixam o cocô do cachorro. Por isso é tão difícil tratar do assunto “educação de trânsito”, quando se tem um público que já não tem nem a educação mais elementar. 

E a política?

Uma organização social é pautada em leis. E quanto mais insensata for uma população mais leis serão necessárias. Porque onde impera a sociopatia quem faz o papel de educador social é o poder executivo. Em uma sociedade avançada o papel de educador social é feito pela família, que passa os conceitos como generosidade, respeito e altruísmo de pai para filho como se fosse uma carga genética. 

Aqui começa o descontrole quando se trata de países socialmente atrasados. Quem cria e aprova as leis são os políticos eleitos pela população (em uma democracia). São vereadores, deputados estaduais, deputados federais, senadores e até o presidente da república. E quem são essas pessoas? São pessoas comuns, que pode ser um cientista político, com curso superior, pós-graduação, escritor de teses sobre sociedade ou... um cidadão que leva o cachorro para passear e deixa o cocô na porta da casa do vizinho. 

Políticos não vem de Marte, não são entidades sobrenaturais, não nascem com super poderes, são pessoas comuns que podem ser talhadas para a vida pública ou apenas o ex-participante de um Big Brother da vida. Porque quem elege também pode ser alguém engajado com as questões sociais ou um sociopata que estaciona em fila dupla. 

Como se vê, tudo gira em torno do ser social e quando esse ser está doente toda a sociedade adoece junto. E é por isso que às vezes a gente acorda e descobre que foi aprovado um projeto de lei completamente maluco, que dificultará muito a sua vida. Quem criou e quem aprovou são pessoas comuns, doentes, que pensam primeiro em si ou na sua corporação e não na maioria. 

O mais estranho é que as relações pessoais regrediram na medida direta da evolução tecnológica. Quanto mais as pessoas se comunicam e se expõem pela internet nas redes sociais, tentando passar uma imagem de descolado e antenado, mais vemos casos de pancadões madrugada a dentro, motos com escape direto e motoristas que simplesmente desprezam os sinais de trânsito. 

Existe uma preocupação evidente de se mostrar um caráter publicamente, mas praticar outro tipo de comportamento – geralmente pior – no mundo social. Talvez o ser humano tenha desaprendido a viver em sociedade. Enquanto os povos primitivos precisavam viver em sociedade como forma de sobrevivência, hoje parece que as pessoas vivem em sociedade como forma de penitência. “Eu sou obrigado a agüentar esse meu vizinho, mas minha vontade era matar esse desgraçado”. Ou, “esse miserável me impediu de andar mais três metros com meu carro, desgraçado, vou buzinar até ele se sentir atacado”... 

Nossa pena maior é saber que essa tendência de incentivar e valorizar o indivíduo acima do social não tem perspectiva de regressão e também não é regional. Ela atinge as sociedades modernas de forma endêmica, sem distinguir religião, etnia, posição social, localização geográfica. OK, tem sociedades onde essa tendência é menos evidente, mas faça uma pesquisa no Youtube e repare que os filmes que trazem situações constrangedoras ou de acidentes superam em muito as visualizações quando comparados com filmes que mostram qualidades humanas dignificantes. 

Como melhorar os índices de acidente de trânsito se o principal agente modificador está piorando? Participei de uma palestra com o espanhol Jesus Gonzalez, da Fundación Mapfre, que mostrou um dado estatístico já conhecido de qualquer especialista: o fator contribuinte para o acidente de trânsito é o comportamento, com 75%. 

Segundo o especialista, o que ajudou a reduzir enormemente o número de acidentes na Espanha foi uma soma de medidas, sendo que em primeiro lugar veio a educação e mais 144 medidas de ordem técnica e comportamental. Em suma, não existe UMA medida milagrosa, como a redução pura e simples da velocidade nas vias, por exemplo, mas uma enorme quantidade de medidas que sejam criadas em conjunto com vários setores da sociedade. Uma delas, (que por sinal defendo há 15 anos), foi incentivar as empresas a incluírem no desenvolvimento do profissional, como ferramenta de recurso humano, a disciplina “Comportamento no Trânsito”, que inclui todos os atores, desde pedestre, passando por ciclistas, até motociclistas, motoristas e caminhoneiros. 

Mas quando vou a uma empresa propor uma ação de conscientização de segurança no trânsito sou recebido como um marginal vendedor de droga a fim de tomar uma grana deles! 

Para que isso dê resultado o elemento chave ainda é o ser humano. Mas enquanto tivermos na sociedade um número cada vez maior de gente que trata o outro como se fosse apenas uma calçada suja de cocô não há esperança.

 

* Nota: Os números de acidentes com vítimas caiu nos últimos dois anos, aqui no Brasil, especialmente em São Paulo. Alguém poderia acreditar que foi reflexo de algumas medidas técnicas incluindo a redução da velocidade. Mas na verdade é um efeito colateral da crise financeira: a venda de veículos novos caiu em média 30% no período e muitos brasileiros trocaram o carro pelo transporte público ou simplesmente não tem grana pra comprar um carro ou uma moto. Quando mal interpretada, a estatística é uma ficção matemática

 


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