Reduzir a velocidade é apenas uma das medidas
Agora que a cidade de São Paulo vive alterações profundas no plano da mobilidade urbana, algumas medidas que deveriam ter sido adotadas mais de 30 anos atrás começam a pipocar de forma apressada e desnorteada. Não vou citar a redução da velocidade como forma de proteger pedestres e ciclistas porque esse tema me causa engulhos, mas vou sugerir – gratuitamente – uma espécie de consultoria na área de segurança viária para que a Prefeitura, o CET, as escolas, os especialistas e quem mais quiser possam usar à vontade sem pagar nenhum centavo de direito autoral.
Antes de mais nada é preciso entender de uma vez por todas que trânsito não é uma engrenagem mecânica, mas uma organização social. Ou seja, tem pessoas envolvidas por todo lado e depende 100% do COMPORTAMENTO. Baixar decretos, criar leis, mudar a configuração das ruas são medidas paliativas que podem amenizar, mas sem mudar o comportamento das pessoas tudo isso se perde em pouco tempo. Vide aumento das multas e Lei Seca: o efeito na redução de acidentes foi momentâneo, porque logo depois voltou ao mesmo patamar de antes. Também queria alertar que não sou contra a redução da velocidade como forma de reduzir os acidentes, mas sou visceralmente contra a redução da velocidade como ÚNICA medida para redução de acidentes.
Imagine uma escola que não consegue um bom índice de aprovação de seus alunos. Ela pode investir em professores mais bem qualificados, material, laboratórios etc. Ou pode rebaixar a nota média de aprovação de 7 para 5, por exemplo, aumentando o número de aprovados, mas sem mexer na estrutura da escola. Pois reduzir a velocidade como forma de reduzir acidentes é rebaixar a nota média de aprovação. Não resolve o problema, mas apresenta resultados. Certamente a redução da velocidade vai refletir nos números de vítimas, mas o paciente continuará doente, em estado terminal... E se não funcionar? Reduz para 30 km/h, até o dia em que não teremos mais motoristas mal educados, apenas pessoas sem educação.
Reduzir a velocidade como forma de minimizar as lesões em caso de atropelamento me faz lembrar a frase de um político: “Estupra, mas não mata”.
Por isso vou dar aqui minhas humildes e nada técnicas sugestões que podem ajudar a reduzir o número de atropelamentos de pedestres nesta e em outras cidades grandes. São Paulo é uma espécie de laboratório, mas não pense que tudo que funciona nesta cidade serve para outras. Brasília, por exemplo, tem características totalmente diferentes e exigem um estudo muito particular.
O desafio é: como morrer menos pedestres e ciclistas sem demonizar os veículos motorizados?
- Faixa de pedestre– Parece que existe uma cegueira geral que impede os órgãos de trânsito de perceber que as faixas de pedestres precisam de mais atenção e análise. Já houve um enorme avanço ao instalar luzes sobre as faixas, mas ainda se limitam a algumas mais movimentadas. Nas ruas de menor movimento elas não são usadas.
As campanhas dirigidas aos pedestres e motoristas passaram o conceito de priorizar sempre quem está na faixa, mas faltou explicar que o conceito de prioridade é diferente de exclusividade. Alguns pedestres se lançam na faixa acreditando fielmente que os motoristas irão parar, mas o pedestre tem de se fazer visível antes de se jogar. No espaço urbano tem vários pontos cegos que escondem facilmente o pedestre. Até uma árvore, um poste, um carro mal estacionado, placa de propaganda, guarita de guarda noturno, além das colunas “A” dos carros que formam os pontos cegos.
Minhas sugestões para aumentar a eficiência das faixas de pedestre seriam:
- Proibir o estacionamento de qualquer veículo (inclusive os carros-fortes de transporte de valores que tem carta branca para estacionar onde quiser) antes e depois de cinco metros da faixa de pedestre.
- Podar, ou se for o caso, remover, árvores muito próximas das esquinas, para limpar o campo de visão da calçada.
- Instalar obstáculos que impeçam qualquer veículo de estacionar a menos de cinco metros das esquinas. Já existe uma lei no CTB que proíbe estacionar próximo às esquinas, mas ora, as leis são feitas para trouxas e vivemos em uma sociedade de espertos. A opção pode ser a já adotada expansão das calçadas próximas às esquinas, que também funciona para que o percurso do pedestre seja menor.
- Transferir a faixa de pedestre do ponto mais tangente do cruzamento para cerca de 2 metros antes. Esta é uma medida que merece estudo porque hoje motorista, ciclista e motociclista ficam expostos a uma colisão quando ficam parados esperando a travessia dos pedestres, especialmente em vias expressas. Como motociclista confesso que evito parar e tento projetar o percurso do pedestre antes de chegar na esquina. A preocupação com o pedestre é válida e necessária, mas tem de avaliar o conjunto e proteger um pode desproteger outro. A mudança da faixa de pedestre diminui a chance de um carro ou moto serem atingidos por trás.
- Padronizar, limpar e manter as calçadas. Aqui sim é o grande desafio de uma cidade como São Paulo. Para começar já deu para perceber que cimento não é a melhor matéria-prima do mundo. Trinca, é frágil e sempre que alguma prestadora de serviço (água, gás, telefone) precisa fazer manutenção quebra tudo e nunca volta ao normal. O ideal são os bloquetes usados há séculos em cidades europeias. Além de facilitar muito a manutenção dão boa aderência e permite equalizar o piso sem formar os degraus que existem aos montes. Mas nada disso adianta se mantiverem as guaritas, raízes expostas de árvores etc. Sem falar em carros, caminhões e motos que usam calçada como estacionamento.
Acima, como é a faixa de pedestre, perto da esquina e com elementos que encobrem a visão
Como deveria ser: faixa afastada da esquina, livre de obstáculos
- Fiscalização– Não adianta criar leis, mexer nas placas de trânsito se a cidade é como uma sala de aula sem professora: cada um faz o que quer. Quem já não respeita uma velocidade continuará desrespeitando outra qualquer. Mas tudo que os burocratas conseguem enxergar em termos de fiscalização é um número: velocidade! Todo o resto é deixado de lado. Sou 100% favorável à volta da inspeção veicular, mas não essa fajuta que mede o quanto um carro zero km emite de fumacinha. Quero uma inspeção de fato, que avalie apenas itens fáceis de medir visualmente ou com aparelhos simples e baratos, tais como as condições dos pneus, emissão de ruído e, aqui sim um desafio dos grandes, a película solar!
Isso vale uma explicação mais comprida. Quando foi criada, a película solar – popularmente chamada de Insufilm, tinha como objetivo a saúde do motorista, com a redução de incidência de raios uv na pele. De boas intenções o inferno está cheio. Bastou chegar na terra sem lei para que ela se transformasse em um item de segurança contra roubos e sequestros. Além disso, dos 25% de restrição da luz nas películas originais, hoje temos algumas com até 75% de opacidade. Justamente as mais usadas. Nesse buraco sem lei chamado Brasil itens como esse não são colocados na conta dos fatores contribuintes para acidentes, pois existe uma espécie de acordo silencioso para que alguns detalhes não sejam investigados. Como controlar o uso da película se os agentes que deveriam fiscalizar são usuários e incentivadores. O delegado de trânsito, a família dele, filhos, esposa, pais, todos rodam em carros, oficiais ou não, com a película mais escura do mercado como forma de se proteger dos bandidos, mesmo que à noite essa película tire quase totalmente a visão dos motoristas, mas isso é besteira...
É cada vez maior o uso da película também no vidro dianteiro, apesar de proibida por lei. Mais uma vez chegamos no mesmo ponto: ora, a lei, quem fica em silêncio se a sala de aula está sem a professora?
Ainda dentro do item “fiscalização” urge a criação (ou volta, ou incremento) da polícia de trânsito. Uma equipe que não seja formada por militares-quebra-galhos, mas por servidores treinados para não apenas fiscalizar, mas EDUCAR motoristas, pedestres, ciclistas e motociclistas. Hoje os policiais militares que patrulham o trânsito têm medo de falar com um motorista infrator achando que pode ser processado por abuso de autoridade. Os agentes da CET são aplicadores de multas que raramente se dão ao trabalho de ajudar a travessia de pedestres, organizar um cruzamento ou orientar o fluxo quando quebra um semáforo. Não é possível que apenas eu e alguns cidadãos civis somos capazes de ver o absurdo – e cada vez maior – número de motoristas que dirigem usando celular! Uma cidade com seis milhões de veículos e fiscalização quase zero! É a receita para dar tudo errado, mas o foco recai sempre na velocidade!
Só um exemplo banal: se o motorista rodar aos 40 km/h determinado pela nova legislação, ele percorre 11,11 metros por segundo. No ato de pegar o celular, ler uma mensagem e responder o motorista leva cinco segundos. Ele percorre 55,55 metros SEM ENXERGAR NADA!!!
Claro que se ele atingir um pedestre nessa velocidade o estrago é menor do que a 60 km/h, mas eu luto e trabalho há 25 anos para EVITAR O ACIDENTE e não para reduzir os danos causados. Não atropelar é o objetivo!!! E não reduzir os ferimentos, isso é secundário. A ambulância de resgate custa para o município cerca de R$ 8.000 cada vez que remove um paciente, seja por politraumatismo ou um tornozelo quebrado. Meu objetivo é fazer a ambulância sair menos, porque esse custo tem de ser pago por alguém. Adivinha quem? O custo dos acidentes recai nos tributos e no seguro obrigatório, ou seja, você mesmo! O meu trabalho é para reduzir estes custos para que todo mundo pague menos.
Por fim, impor um clima de guerra contra a corrupção na emissão de carteiras de habilitação. Como confiar a sua vida e de seus filhos a uma pessoa que comprou a habilitação? Responda: quem compra uma carteira de habilitação respeita lei de trânsito? Faz diferença a velocidade?
- Educação– Entregue uma calculadora para um semialfabetizado e peça para construir um prédio. Ué, engenharia não é apenas cálculo? Pois se você achou essa comparação absurda é isso que está sendo feito hoje com motoristas e motociclistas aqui mesmo nesse país. Engatar a primeira marcha, dar marcha à ré e estacionar já qualificam uma pessoa a dirigir qualquer coisa, sem levar em conta mais nada. Estamos há décadas criando uma geração de motoristas desqualificados em todos os sentidos, mas mais especificamente na matéria mais importante: CIDADANIA. Trânsito é vida em sociedade e pessoas sociopatas não obedecem nada nem ninguém. Sejam quais forem as regras. Hay regras, soy contra!
O que reduz acidentes é motorista educado: forçar o pedestre a usar a rua é quase um atestado de sociopatia crônica.
Se o departamento de trânsito quisesse mesmo reduzir o número de atropelamentos e acidentes investiria na qualificação de motoristas, motociclistas e ciclistas. Começando com uma devassa dentro do próprio departamento de trânsito para acabar com a produção em série de habilitação. E não adianta aumentar a carga horária, porque isso equivale a dar mais do mesmo. O Denatran precisa rever o processo todo, desde a base e investir tempo, pessoal e dinheiro para que as futuras gerações sejam de pessoas melhores.
Se houvesse um pouco mais de bom senso não seria necessária tanta regra. Um sociopata não se cura apenas olhando para uma placa de velocidade. Precisa de um investimento lá na raiz. E, por favor, não venham com a ideia anacrônica de aulas de trânsito nas escolas, porque esse não é o papel da escola. Quem deve fazer isso é o departamento de trânsito, que recebe anualmente uma quantia estratosférica de dinheiro, mas não consegue explicar nem justificar a destinação dessa verba.
Uma pedagoga de Mossoró, RN, fez uma interessante pesquisa e descobriu que as crianças sabem as leis de trânsito e até reconhecem quando os pais desobedecem. ESTE é o verdadeiro drama que vivemos: a educação deixou de ser um papel da família, que entregou seus filhos aos professores na crença ingênua e até sacana de que vai receber de volta um cidadão bem educado.