O que muda quando se roda a 100, 200 ou 300 km/h
A internet está aí para nos ajudar a adquirir conhecimento e encurtar as distâncias. Hoje uma descoberta em um laboratório no Canadá pode chegar ao conhecimento de um estudante em Caxias do Sul em questão de segundos. Esse é o lado bom. Mas tem o lado ruim: da mesma forma que expande os conhecimentos, também aumenta a velocidade de divulgação do que não presta.
Está se tornando rotineiro abrir as redes sociais na segunda-feira e descobrir uma grande quantidade de acidentes graves envolvendo motociclistas. Assim como se espalham filmes e fotos de painéis de moto atingindo a marca de 299 km/h, maior registro permitido pelos velocímetros, embora as motos passem dessa velocidade.
Nos anos 80 o grande barato era romper a marca dos 200 km/h. Hoje é 300 km/h. Parece uma espécie de condecoração pela bravura. Tem até comunidades que incentivam esse limite, com nomes sugestivos como “Clube dos 300”, ou “299 Racing” etc.
Por trás dessa atração pelos 300 km/h está uma justificativa que soa tão infantil que chega a ser ofensiva à inteligência. Segundo os defensores dessas altas velocidades está a frase ridícula: “quem compra uma moto esportiva é porque quer passar dos 300 km/h”. Então quem compra uma arma de fogo para se defender precisa matar alguém para justificar a existência do arsenal?
Pode-se comprar uma moto esportiva de 180 CV pela atração do estilo, pelas curvas da carenagem, a beleza das linhas e até o ronco do motor, mas não com o objetivo tácito de romper a barreira dos 300 km/h. Nem mesmo dos 200 km/h!
Imagine o que é frear uma moto a 200 km/h ou a 300 km/h. (Foto Lygia Takayama)
Veja alguns dados. A 100 km/h uma moto de caráter esportivo consegue frear em aproximadamente 35 metros. É uma distância razoável e pode até ser reduzida com um piloto bem treinado e saudável. Só que a 100 km/h a moto percorre 27,7 metros por segundo. Já começa a ficar no limite perigoso. Na verdade é pior, porque todo mundo esquece do “tempo de reação” que é o tempo entre o nosso cérebro perceber uma situação de emergência e o freio começar a atuar. Em pessoas saudáveis esse tempo de reação é de aproximadamente um segundo. Ou seja, numa matemática bem simples, a 100 km/h a moto terá percorrido 27,7 metros ANTES de o freio começar a atuar. Mais os 35 metros do espaço de frenagem é igual a uma baita pancada!
Agora imagine o que acontece a 200 km/h. A primeira lição de Física é com relação ao espaço de frenagem. Muita gente acha que é uma simples regra de três: se a 100 ela para em 35 metros, a 200 vai parar em 70 metros. Certo? Errado...
A frenagem nada mais é do que uma aceleração negativa e a unidade de grandeza que mede aceleração é metros por segundo ao quadrado. Portanto é um dado exponencial e não absoluto. A 200 km/h uma moto precisa de 150 metros para se imobilizar. Mas vamos mais além. A 200 km/h a moto percorre 55,5 metros por segundo. Portanto o espaço necessário para imobilizar uma moto a 200 km/h é de 200,5 metros.
Tente imaginar tudo isso a 300 km/h!!! A essa velocidade, a moto percorre 83,3 metros por segundo. Ou seja, mesmo que o motociclista seja um excelente piloto, ele vai percorrer mais de 80 metros antes de o freio começar a fazer efeito e mais uma eternidade para parar efetivamente. Não sei quantos metros a moto precisa para frear a 300 km/h porque esse teste eu nunca fiz nem sei de ninguém que tenha feito (e sobrevivido). Mas não é só isso!
Já expliquei algumas vezes que a área de pneu que encosta no asfalto é muito pequena. Uma moto a 100 km/h em linha reta encosta uma área de aproximadamente 8 cm2 somando os dois pneus. Lembre-se que em linha reta é a posição que menos os pneus tocam no asfalto. Mas quando aumenta a velocidade os pneus deformam com a centrifugação (ou “centripetação”) e se expandem, o que faz a área ser ainda menor. Tente imaginar o que significa frear uma moto a 300 km/h, apoiada em poucos centímetros de borracha! No momento da frenagem o pneu dianteiro deforma e aumenta a área de contato com o solo, mesmo assim não é grande coisa.
Lugar de correr é na pista! (Foto: Lygia Takayama)
Esses dados são apenas para mostrar que a mesma alta velocidade que fascina as pessoas também deixa a moto instável e muito vulnerável. Correr a esta velocidade na estrada é um atestado de insanidade e defendo uma fiscalização severa com a perda sumária da habilitação, além de processo civil, criminal e o que existir de cassação dos direitos civis, porque uma moto a 300 km/h é praticamente um míssil.
Recentemente, em uma estrada do Paraná, um motociclista em alta velocidade atingiu um carro em um cruzamento de nível (outra aberração das nossas estradas). O impacto foi tão violento que praticamente partiu o carro ao meio e ainda matou o motorista. O motociclista estava trajando camiseta, bermuda, tênis e capacete. Morreu no local. Os peritos da polícia chutaram uma velocidade aproximada de 150 km/h, e causou aquele estrago. Imagine se estivesse no dobro dessa velocidade!
Enquanto a sociedade discute se deve ou não liberar a venda de armas de fogo, tem muita gente que já tem uma artilharia pesada às mãos, mas pensa que é espoleta!