A foto de página dupla da abertura mostra a imensidão do deserto diante de dois ingleses corajosos.
Viajar de moto hoje em dia é tão aventureiro quanto 40 anos atrás?
Recentemente recebi uma mensagem pelo Whatsapp sobre uma palestra de um motociclista para ensinar a viajar de moto. Oi? Pensei, as pessoas hoje em dia precisam “aprender” a viajar de moto? Com toda tecnologia ao alcance de um smart phone, mapas, GPS, endereço de hotel, restaurante, borracheiro, oficina, farmácia a pessoa ainda precisa de alguém para dar dicas de como viajar? Hoje? Século 21! estradas perfeitas, guincho à disposição, comida da melhor qualidade pelo caminho. Ah não, né? Pega a moto e vai!
Quando foi a última vez que alguém deu dicas de “como viajar de carro”? A pessoa faz 18 anos, tira habilitação, pega o carro, abastece, calibra os pneus e tchau! Por que pra viajar de moto precisa ter um “professor”? Menos, pessoal, menos. A humanidade evoluiu a ponto de hoje em dia ter tutorial até pra abrir tubo de pasta de dente!
Na minha infância motociclística não existia revistas de moto no Brasil. Se eu quisesse ler alguma coisa sobre motos tinha de ir no Aeroporto de Congonhas e comprar revistas gringas, de preferência italianas ou francesas que eu conseguia ler alguma frase inteira. A parte que eu mais gostava era dos relatos de viagens. Tremendas aventuras pela África, Ásia, norte da Europa, sempre com roubadas cinematográficas, risco de todo tipo, conflitos armados, assaltos, doenças etc.
Então, em 1975 surgiu a primeira revista brasileira de motos, a Duas Rodas e uma das editorias era “Aventura”, nome que se mantém até hoje. Nela eu li relatos de viagens – em português, viva! – que reforçaram minha vontade de ser um desses aventureiros.
Quis o destino que um dia eu estaria sentado na redação da revista Duas Rodas, recebendo e escrevendo os relatos de viagens desses aventureiros. Algumas memoráveis, como a de um senhor que, em 1966, saiu de São Paulo e foi até a Bolívia, numa Jawa 175cc dois tempos, só porque não acreditou quando a professora disse que a água do lago Titicaca era salgada! Nunca mais esqueci desse homem, porque ele, já idoso, foi pessoalmente na redação me contar essa história, ilustrada por fotos coloridas feitas em Ecktachrome (slide).
A segunda página da dupla de abertura.
Estes dias, pensando nisso, achei uma das primeiras Duas Rodas, mais precisamente número 18, de outubro de 1976, com uma aventura marcante: dois ingleses foram da cidade do Cabo, África do Sul, até a Inglaterra, passando pela África e Índia, em um roteiro de sete meses. Sem GPS, acampando no meio do nada, passando por conflitos armados, enfrentando um inferno de burocracia em cada fronteira, doenças e mal chegaram já embarcaram em outra aventura. Não precisaram de tutorial, nem de “aulas” de como viajar de moto. Montaram nas motos e foram. Trocaram pneus, abriram motor, rebocaram a moto, mas não desistiram.
O jornalismo naquela época era diferente. As pessoas queriam mais ler e menos ver. Os textos eram enormes: 32.000 caracteres hoje em dia é livro! Mas a leitura é imparável. Quase nenhuma foto, porque naquela época dava-se a volta ao mundo e tudo era registrado em 40 ou 50 fotos. Hoje a pessoa vai até a padaria e faz 125 fotos. Depois desta, pretendo resgatar outras aventuras de verdade para fazer você levantar dessa cadeira, subir na moto e pegar a estrada. Boa leitura.
* Importante: o texto foi mantido integralmente, apenas algumas correções de ortografia. Os valores estão em Cruzeiros, para converter para Real multilique por 25,3%.
O mundo é pequeno para quem sonha grande.
De moto através da Índia, Paquistão, Afeganistão, Turquia, até a Europa
A incrível viagem de Rodney Fors e John Carter, com uma Honda 350 e Triumph 650, através de desertos, guerrilheiros, calor...
Rodney For e John conheceram-se na Cidade do Cabo – África do Sul – numa companhia de construções, onde trabalhavam como engenheiros. Nenhum dos dois tinha moto. Mas Rod vivia falando de uma viagem que queria fazer até a Inglaterra, quando seu contrato terminasse. John já fizera uma viagem semelhante – da Inglaterra à Cidade do Cabo – num jipe Land Rover, e não queria voltar pelo mesmo caminho. Depois de muita conversa, ficou decidido que comprariam as motos. Rod comprou uma Honda CB350,1971, usada, e John uma Triumph 650, também 71 e usada.
Em seguida, decidiram o roteiro. Sairiam da Cidade do Cabo e iriam até a Inglaterra através da Índia, Paquistão, Afeganistão, Turquia e finalmente a Europa, antes que o inverno começasse. A viagem durou sete meses até a casa de John, em Coventry, uma cidadezinha da Inglaterra. A quilometragem total não é exata: "talvez uns 30.000 km" diz Rod, sem se preocupar muito com este detalhe uma vez que, depois da Inglaterra e de um telefonema internacional para o Canadá, onde moram os pais de Rod, os dois combinaram vir do Canadá para a América do Sul, com duas Norton 850, novinhas.
Rod e John chegaram a São Paulo, no começo de junho, depois de seis meses de viagem, onde estão descansando e trabalhando, para logo em seguida, eles sabem quando, saírem para um novo roteiro "talvez até Manaus". O relato da viagem pela Índia, Paquistão e Afeganistão até a Inglaterra é feito por Rod. Começou num domingo, 14 de março de 1973:
Tínhamos duas mochilas e duas caixas de metal na traseira das motos; numa levávamos peças e ferramentas e na outra comida. Saímos da Cidade do Cabo em direção a Johannesburg. Precisávamos ir primeiro para Botswana pois os documentos das motos, tirados na África do Sul, não serviam para os países da África do Oeste. A viagem durou uma semana em estrada pavimentada, sem nenhum problema mecânico ou de abastecimento. As estradas, de cascalho e areia, que atravessam Botswana, (cerca de 400/km) eram muito difíceis para andar com as motos. Assim que nos acostumamos com a pavimentação, depois de um tombo cada um podíamos andar a 80 km/h. Atravessamos vilarejos e duas pequenas cidades. Os nativos tratavam-nos entre curiosos e amigáveis e estavam sempre prontos para dar qualquer tipo de ajuda.
De Botswana à Rodésia levamos apenas meio dia. O primeiro vilarejo chamava-se Bullawan e possuía estradas muito largas, devido ao grande número de carros de bois cada uma tinha parelhas de até 8 bois que precisavam de espaço para fazer retornos ou virar para alguma estrada. A pé demorávamos quase cinco minutos para atravessá-las. Ficamos dois dias e seguimos para Salisbury, a capital, uma boa cidade com grandes árvores jacarandás – dentro da cidade. Passamos uma semana acampando e admirando grandes montanhas de pedras. Era interessante admirar pedras enormes "balançando-se" sobre outras. De Salisbury precisávamos ir até Malawi, mas para isso tínhamos de atravessar o norte de Moçambique que, nesta época, estava tentando sua emancipação de Portugal.
Para atravessarmos 200 km, levamos cinco dias. Um dia da fronteira até Tete – a cidade mais velha da África – considerada a capital do Norte de Moçambique - onde existe uma hidroelétrica imensa. Fomos escoltados pelo exército até Tete, onde esperamos dois dias por um outro comboio que nos escoltaria até a fronteira do Malawi. Esses comboios eram necessários devido ao grande número de guerrilheiros que controlavam determinadas regiões, fora das cidades que eram controladas pelos portugueses.
Na viagem até a fronteira do Malawi, a estrada era muito ruim, pois era impossível o governo mantê-las em bom estado devido aos constantes ataques dos guerrilheiros da Frelino que, durante a noite, minavam toda a estrada. Assim, pessoas iam na frente, a pé, com detectores, durante os 80 km que faltavam. Tínhamos de andar entre 6/8 km/h, o que nos deixava um pouco preocupados com o motor, pois o calor era muito forte.
Depois de meio dia de viagem, o carro militar, que ia a uns 100 metros à frente, passou sobre uma mina e explodiu. Tivemos muito medo, mas não saímos dos nossos lugares pois se afastássemos um centímetro da trilha feita pelos carros, que já havia sido detectada, talvez pisássemos noutra mina. Depois do estouro, que destruiu totalmente o veículo, tivemos de dormir na estrada pois, para desimpedi-la, demoraram mais de três horas. Às cinco horas da manhã, o comboio a avançar e viajamos até as sete horas da noite para chegarmos na fronteira de Malawi Cinco quilômetros antes começou a chover e logo tínhamos quase 30 centímetros de lama para vencer e 30 colinas, atrás de uma fileira de caminhões, com constantes falhas na minha Honda que tinha as velas molhadas com a chuva.
Depois de atravessar o território entre Moçambique e Malawi, tivemos que trocar as placas e os documentos das motos pois, acima de Malawi, ninguém mais iria aceitar os documentos da África do Sul. Com tudo trocado, preparávamo-nos para ir até a próxima cidade quando o fiscal da imigração nos chamou a um canto: Seus cabelos estão muito compridos.
Tivemos que cortá-los porque é contra a lei em Malawi, país governado por puritanos, onde as mulheres não podem usar calças compridas e vestidos curtos. Segundo eles, isto ajuda a manter a país tranquilo e longe dos hippies que pretendem se dirigir para lá. Com a luz da moto, pois não havia luz elétrica, e uma pequena tesoura, cortamos nossos cabelos.
Depois de cinco quilômetros, numa estrada totalmente escura, avistamos uma placa. Bar, e bem ao longe um pequeno ponto de luz. Dirigimo-nos para lá e encontramos uma casa de família com uma boa sala de estar, excelente cerveja, e onde os viajantes podiam ficar à vontade. Depois das cervejas armamos nossa barraca ao lado da casa e dormimos até às 10 horas da manhã seguinte, quando saímos rumo a Blantyre, que não é capital, mas é a maior cidade de Malawi, e onde estão localizadas muitas fábricas de tecidos. Em Blantyre aproveitamos para fazer turismo em volta da cidade, cercada de plantações de cânhamo. Ficamos hospedados em casas e apartamentos, construídos pelo governo em vários pontos do país para turistas, pagando em média 10 cruzeiros (duas pessoas) por pernoite.
De Blantyre fomos para Zamba, capital do Malawi, no centro do país, uma pequena cidade onde fica a residência do presidente e dos ministros. Perto de Zomba atravessamos um planalto 1.000 metros acima da capital, durante a noite, onde vimos muitos leopardos atravessando as tortuosas estradas 3 ou 4 metros distantes de nós. Em Zomba, John teve um pequeno problema. Quando passeava pelo mercado municipal foi parado por um policial que, discretamente chamou-o de lado e o levou para a prefeitura. O oficial pediu para que ele cortasse os cabelos, mas John não entendeu por que teria que fazê-lo novamente. "Aqui - disse o oficial - é necessário o corte; senão deixe o país imediatamente". John dirigiu-se ao barbeiro- que existem em grandes quantidades, lado a lado, no mercado e cortou-os tão rentes que mal dava para perceber que ele os tinha na cabeça.
Depois de Zomba fomos para Lake Malawi, 300 Km adiante, um lago imenso e uma pequena vila. Até agora, as motos tinham se comportado muito bem. Encontramos alguns americanos que viajavam de carona e tinham feito amizade com nativos. À noite, nos divertíamos alimentando hipopótamos, que saíam do lago e chegavam até ao lado do hotel onde estávamos acampados. Durante o dia, íamos ver uma infinidade de peixes tropicais no lago e que podiam ser vistos da superfície com diferentes tamanhos e cores. Passamos uma semana na tranquila no lago e seguimos para Zâmbia, numa viagem sem problemas, em estradas pavimentada até a capital, Usaka, onde no acampa.
mento encontramos um jipe Land-Rover com seis pessoas que estavam vindo da Africa do Sul e se dirigiam à Inglaterra. Ficaram muito assustados quando dissemos que também íamos para lá, de motocicleta. Dizíamos que não tínhamos medo, mas não dissemos que percebemos que eles estavam ficando irritados, entre eles, e que estavam mais assustados que nós com seis pessoas apertadas dentro de um jeep.
Em Usaka, tive o primeiro problema com minha moto: a articulação da balança traseira se gastara e fazia a moto balançar muito. Tive sorte em encontrar a peça, pois em Usaka não existiam peças para motos acima de 350 cc. Depois da troca, nos preparamos para enfrentar 1.000 Km, sem postos de gasolina, até a fronteira da Tanzânia. Procuramos latas de óleo com capacidade para cinco litros em firmas de petróleo e conseguimos oito latas. Nosso problema agora era trocar os passaportes pois o que tínhamos era da Africa do Sul e este também não servia nos países da África do Leste. Troquei meu passaporte no Consulado do Canadá, pois John já havia trocado o seu em Botswana. Saindo de Usaka, fomos até o último posto da estrada, a 100 Km, e enchemos as latas.
Na primeira noite, descobrimos que duas latas estavam vazando: perdemos 10 litros de gasolina. No dia seguinte chegamos a outro posto e enchemos os tanques. No terceiro dia foi a vez dos abutres. Estávamos com fome e resolvi come-los. Acelerei a moto a uns 80 Km/h e saí em perseguição do bando. Consegui matar um com uma capacetada mas, infelizmente não consegui comê-lo pois a chuva que começou a cair não deixava acender o fogo, John ria o tempo todo.
No quarto dia atravessamos a fronteira com a Tanzânia, sem problemas, com a gasolina quase no fim e sem perspectiva de encontrar um posto por perto. Depois de trinta quilômetros acaba a gasolina de John e eu segui mais uns vinte km para achar gasolina. O problema no vilarejo onde encontrei gasolina foi como pagá-la, uma vez que ninguém conhecia o dinheiro chamado dólar. Depois de muita conversa consegui trocá-lo numa das lojas da vila. John, que esperava perto de uma ferrovia que estava sendo construída por chineses, foi confundido por eles como espião. Através de um nativo, ele conseguiu se explicar e os chineses levaram-no até um posto oficial onde lhe arranjaram um pouco de gasolina. O problema agora era que os chineses não tinham lata apenas uma bateia rasa que, quando cheia precisava de muito malabarismo para despejar a gasolina no tanque. Mas, assim mesmo, quase toda a gasolina era derramada sobre a moto e muito pouco ia para o tanque.
Continuamos até a capital da Tanzânia, Dar El Salam por uma estrada de terra conhecida como "Estrada do Inferno”, que ligava o porto até Usaka, sem nenhuma variante, onde durante 24 horas por dia o trânsito era de caminhões pesados. Os motoristas dos caminhões causavam muitos acidentes esta época pois segundo seus contratos com ss companhias, quanto mais trabalhavam mais ganhavam. A estrada era quase toda pavimentada e havia muitos problemas políticos entre a Rodésia e Zâmbia: a fronteira estava fechada e o trânsito era intenso, com muitos caminhões carregados de cobre vindos de Zâmbia. De vez em quando apareciam grandes buracos na pista que deixaram as molas traseiras das motos mais fracas ainda, pois tínhamos muito peso nas bagagens.
O incrível Taj Mahal
A estrada atravessava uma reserva florestal com muitos animais desde elefantes e girafas até tigres e leões. Resolvemos acampar no parque pois soubemos que chovia muito adiante. Fizemos fogo para o jantar e dormimos. Durante a noite acordamos com um barulho, provavelmente de um leão, arranhando uma das caixas da motocicleta onde havia comida. Ficamos quietos com medo de que o leão descobrisse que dentro da barraca havia comida melhor.
O animal, no entanto, conseguiu abrir a caixa e nossa barraca não estava totalmente fechada havia apenas uma tela, para proteção contra insetos, de onde pudemos vê-lo, na penumbra, passar três ou quatro vezes na nossa frente. Segurávamos as nossas facas, prontos para defender do ataque, pois estávamos seguros de que o faria, mas ele virou-se e foi embora. Não dormimos mais aquela noite, nem abandonamos nossas facas.
De manhã, descobrimos que não era um leão e sim uma hiena que, na realidade, é animal muito mais perigoso. E de nada nos adiantava uma arma de fogo pois teríamos que atravessar muitas fronteiras e se fossemos descobertos armados, certamente seríamos presos como contrabandistas ou guerrilheiros.
Chegamos a Dar El Salam. onde acampamos numa praia muito bonita, a 20 quilômetros, ao Norte da cidade. Encontramos novamente os dois Americanos que viajavam de carona e passamos, os quatro, muitas noites perto do porto onde havia muitos marinheiros, prostitutas a 50 e cerveja a três cruzeiros o litro. Quando cansamos deste programa resolvemos partir rumo ao Kilimanjaro, distante dois dias. Nessa parte da África existem muitas tribos de negros Masai, considerados, antigamente, como os melhores guerreiros africanos, com altura média em torno de dois metros. Avistei três deles na estrada e parei a moto para fotografá-los. Depois eles vieram e queriam cobrar, com o que não concordei. Tive que sair acelerando o máximo que podia, embaixo de uma chuva de pedras. Chegamos numa aldeia aos pés do Kilimanjaro e por três dias fizemos os preparativos para a subida. A aldeia ficava a 2.000 metros, a estrada ia até os 3 mil e a montanha até os 7 mil e tanto.
Subimos os 3 mil metros, por uma estrada ruim e cheia de pedras grandes, e deixamos as motos numa pequena aldeia. Fomos até o último refúgio a 5 500 metros de altura, em três dias, e a cada passo a escalada ficava pior por causa do frio e das constantes dores de cabeça, provocadas pela altitude e pela rarefação do ar. Do último refúgio até o topo foram mais cinco horas de caminhada difícil, enfrentando constantes quedas de barreiras. Somente John conseguiu chegar ao topo, pois eu parei na metade do caminho com fortes dores de cabeça. Depois de um belíssimo nascer do sol, demoramos dois dias para descer e mais duas semanas no vilarejo, para recuperar o fôlego.
Havíamos subido com nossas mochilas, roupas e comida, mas é possível alugar guias e carregadores para fazer esse serviço. Encontramos um guia que já havia subido 125 vezes até o topo. Mas nós fomos sozinhos pois as trilhas são muito fáceis de serem encontradas e nenhum momento fogem aos pés. Os carregadores chegam a levar 40 quilos de bagagem na cabeça, até o último refúgio, e nunca se sentem cansados de fazê-lo.
Neste vilarejo, aos pés do Kilimanjaro, encontramos novamente as seis pessoas que viajavam no Land Rover. Deixamo-los seguimos para Nairobi, com quatro ou cinco dias de viagem sem ter nenhum problema até 30 km antes de chegar: furou o pneu de minha moto. Consegui consertá-lo e enchê-lo com uma bomba e, depois de 10 km. furou novamente. Consertei e depois de 10 km furou novamente. John não aguentou mais ficar me esperando consertar pneu e seguiu adiante para arrumar acampamento. Cheguei às 9 horas da noite e depois de alguns problemas com o trânsito, estava no acampamento conseguido por John, num grande parque de Nairobi, parecido com o Ibirapuera, onde havia muitos viajantes acampados e diversos veículos: ônibus, jipes, Volkswagen e nossas duas motos. Estavam ali também os dois americanos que viajavam de carona e as seis pessoas do Land-Rover.
Ficamos ali um bom tempo, trocando informações sobre estradas com nossos amigos viajantes. Tentei comprar um par de amortecedores para minha moto, mas desisti, quando me pediram 50 dólares por um par. Consegui então, mais barato, um par de amortecedores e molas de uma Triumph 650, por 40 dólares. A suspensão era mais dura, mas com o peso da bagagem ela logo ficou boa. Ficamos duas semanas em Nairobi. Havíamos saído da Cidade do Cabo com 3 500 dólares – eu com 1 500 e John com 2.000 – e recebi mais 1 500 vindos do
Canadá, porque já não tinha mais um centavo.
Depois de dois dias de viagem, saindo de Nairobi, chegamos a Mombassa, no litoral do Quênia, uma cidade repleta de histórias da civilização africana. Havia muitos turistas alemães, italianos e portugueses por lá. Procuramos um lugar para acampar e só conseguimos depois de um dia de procura. Os campings na África são muito bons e cobram uma diária de cerca de 6 cruzeiros por estada. Nosso camping ficava num lugar chamado Kanami – com muitos trailers e barracas – pertencente ao World Churchil Organization, a uns 20 quilômetros ao Norte de Mombassa, perto de uma vila de pescadores. Do outro lado, a 1.500 metros da praia onde estávamos, ficava o hotel onde havia excelente cerveja. O local era muito agradável, gramado, com muitos coqueiros, de onde víamos, quando a maré baixara, mais de 2.000 metros de coral. Um viveiro enorme de espécimes marinhas. Passamos três semanas acampados, esperando um barco que nos levaria para Bombaim, na Índia.
O barco chamava-se State of Haryana e a única comida que se poderia encontrar nele, durante os oito dias de travessia, era curry, uma comida típica, servida duas vezes por dia. Os turistas que desembarcaram em Mombassa nos aconselharam a levar comida diferente, pois o curry é muito forte e, fatalmente, não iriamos aguentar. Levamos cocos, queijos e biscoitos. Pagamos um total de 170 dólares pela passagem e tivemos que nos acomodar nos bancos que ficavam ao lado do barco, junto com umas 1.500 pessoas. A maioria era hindus, que voltavam da África onde tinham ido visitar parentes. Não havia muitos banheiros, uns quinze talvez, de maneira que quando tínhamos que tomar banho havia pelo menos cem pessoas juntas.
Por oito dias não fizemos absolutamente nada. Havia só uma única diversão: frequentar o bar onde, pelo menos, podíamos beber cerveja. No quinto dia vimos um eclipse da lua. Chegamos em Bombaim no dia 2 de julho, durante as monções, época em que chovia tanto que não dava para acreditar. Passamos pela alfândega e pegamos um táxi para o hotel, que custava cerca de 7 cruzeiros a diária, sem refeição. Tivemos três dias de muito trabalho com papéis e documentos para retirar as motos, o que só conseguimos depois de mais de 100 carimbos e conversar com umas 40 pessoas. Demorei para fazer a moto pegar, enquanto a Triumph de John pegou na primeira. Em Bombaim pensei em trocar os pneus de minha moto, que eram muito estreitos, por outros mais largos. 300 x 18, mas não consegui, uma vez que na Índia não existe importação de motocicletas. Existem apenas duas marcas de motos: Jawa e Royal Enfield. Tive que viajar toda a Ásia com os pneus estreitos mesmo.
Na última noite em Bombaim, caí de cama: fui tantas vezes ao banheiro que não tinha mais nada para deixar lá. De manhã estava muito fraco, mas seguimos assim mesmo porque não aguentávamos mais ver chuva. No primeiro dia chegamos a Poona, no outro dia Sholapur e no terceiro, Hyderbad. As estradas eram pavimentadas mais muito estreitas e cheias de caminhões, que retardavam e impediam que fossemos mais rápidos. Íamos devagar, com medo dos motoristas loucos que mal sabiam onde estava a direção do caminhão. Hyderbad fica no planalto central da Índia, onde não chovia há três anos. O lugar era bem ruim, com um povo muito miserável. Lá discutimos o caminho que iriamos tomar. John queria ir para o Ceilão, mas eu estava mais preocupado com a distância entre Hyderbad a Inglaterra, pois estávamos no meio de julho e eu não queria chegar à Europa durante o inverno.
Viramos à esquerda, rumo Norte. Os primeiros dias foram bons, sem muito calor e sem chuva, mas depois de três ou quatro dias tivemos que atravessar três afluentes do rio Yamuna, normalmente quase secos, mas que naquela época estavam transbordando. A ponte do primeiro afluente estava submersa meio metro. Quando chegamos, vimos um ônibus atravessando e resolvemos fazer o mesmo, seguindo seu caminho. John foi primeiro, acelerando bastante a moto para que a água não entrasse no cano de escape. Na metade da ponte, como a correnteza estava muito forte, a moto de John parou com água no sistema elétrico. John desceu e foi empurrando, e eu resolvi fazer o mesmo enquanto esperava John fazer a moto pegar, o rio subiu mais uns 30 centímetros.
O segundo rio não tinha ponte e tivemos que proceder da mesma maneira, empurrando. O terceiro passava dentro de uma cidadezinha e também
não tinha ponte por que normalmente estava seco. John novamente foi na frente, empurrando, mas num lugar bem fundo. Vendo o seu esforço, desci uns 30 metros pela margem procurando um lugar mais raso. O fundo era cheio de pedras escorregadias e quando cheguei ao meio, a correnteza começou a empurrar violentamente. Nunca fiz tanta força na vida, mas, consegui chegar ao outro lado, onde John, calmamente, observava todo meu esforço. Às suas costas uma multidão de pessoas simplesmente olhava, de braços cruzados.
O meio de transporte mais usado na África naquela época.
Quanto a isso, a Índia é diferente da África, onde as pessoas sentiam um grande prazer em nos ajudar. Nesta noite chegamos a Jhansi, completamente cansados e molhados e onde passamos dois dias descansando e secando. De lá fomos para Agra, onde durante quatro dias visitamos o mais famoso monumento hindu, o Taj Mahal, construído para ser um túmulo de um grande sultão. O monumento demorou vinte anos para ser construído e nele trabalharam mais de vinte mil pessoas. Sobre o caixão do sultão há uma tampa de mármore, de uns quinze centímetros de espessura, que fica transparente quando se coloca uma luz embaixo. Visitamos o Taj Mahal num dia de lua cheia e, embaixo de toda aquela luminosidade, é a coisa mais impressionante que se pode ver em qualquer lugar do mundo.
Em Agra trocamos alguns travellers-cheek por rúpias, moeda nacional. A transação demorou um dia inteiro e por isso achamos os hindus os mestres
da burocracia internacional. Saímos para Delhi, capital da Índia, em meio dia, acampando dentro da cidade. Fizemos a manutenção da moto e John aproveitou para pegar novos travellers-check, uma vez que os seus haviam sido roubados. Essa transação demorou dois dias. Em Delhi encontramos muitos europeus pedindo esmolas nas ruas para poder comprar drogas, que na Índia são baratas e fáceis de encontrar. Durante mais ou menos uma semana, em Delhi. o tempo esteve bom e quando começou a ameaçar chuva partimos para Panipat, 90 quilômetros adiante. Passamos aí a noite e na manhã seguinte seguimos para Chandigarh, uma cidade previamente projetada, como Brasília. Um contraste dentro da India. Não gostamos da cidade e resolvemos seguir para Kashmir que, politicamente, pertence à Índia, mas seu povo diz pertencer ao Paquistão. Isto tem causado muitas brigas.
No segundo dia, depois de Chandigarh e depois de viajar por estradas tortuosas nas montanhas, passamos através de um túnel de 3.000 metros, completamente escuro. Mesmo com o farol aceso não conseguíamos ver quase nada. Saímos do túnel e demos de frente com o vale de Kashmir, um lugar tão impressionante quanto o Taj Mahal, um verdadeiro horizonte perdido. Entramos no vale e depois de uma hora chegamos a Srinigar, capital do Kashmir. Sabíamos que havia um camping municipal e fomos procurá-lo. Em Srinigar, os turistas procuram sempre as casas, que ficam sob barcos para alugar e que custam, com criados e dois quartos, cerca de 60 cruzeiros por dia. Essas casas são muito procuradas, de maneira que, quando fomos pedir informação sobre o camping, eles sempre queriam alugar uma dessas casas. Certa hora paramos numa esquina e, de repente, havia mais de trinta pessoas a nossa volta gritando preços de casas de todos os tipos, chegando a causar um pequeno congestionamento na cidade. Por coincidência depois de rodarmos a cidade em todos os sentidos, achamos o tal camping. Ficamos dez dias visitando o vale, que é muito fértil, cheio de canais onde plantam arroz. Os muitos lagos não passavam de dois metros de profundidade. Na parte baixa das montanhas, que cercam o vale, ficam os pomares com várias qualidades de frutas. Entre as montanhas, vales escarpados e ovelhas pastando. Mais acima, os picos cobertos de neve.
Pretendíamos sair de Kashmir diretamente para o Paquistão, através de uma boa estrada, mas não deu porque, com os problemas existentes entre os dois países, a fronteira estava fechada. Voltamos então para Amritsar e atravessamos a fronteira até Lahore. Na fronteira encontramos um americano que havia feito uma viagem pelos EUA, alguns anos atrás, com uma Harley Davidson: tinha gostado da experiência, mas não podia falar o mesmo da moto, que havia tido muitos problemas.
Gostamos mais do Paquistão que da Índia, pois é um país mais moderno e nos parecia mais familiar. Havia uma boa variedade de motos e carros e as pessoas eram mais amigáveis. Os hindus são curiosos, mas não gostam de perguntas ou conversas.
De Lahore seguimos para Rawalpindi, onde passamos a noite num hotel que cobrava seis cruzeiros a diária, por duas pessoas. Os quartos eram bem pequenos, as paredes não iam até o teto. Mas, por este preço era melhor que qualquer Holliday Inn. A cerveja, entretanto, era cara demais, cerca de 14 cruzeiros, porque os paquistaneses são muçulmanos e a religião não permite a bebida no país. No dia seguinte estávamos em Peshawar, tentando conseguir vistos de entrada para o Afeganistão, mas foi muito difícil consegui-los porque o país estava atravessando uma revolução. Conseguimos os vistos depois de dois dias. O calor era muito forte, apesar do tempo úmido. Qualquer movimento mais exagerado e desprendíamos suor em abundância. A primeira cidade que chegamos foi Kabul, depois de passarmos por Khyber Pass, um lugar famoso no país por ser um centro histórico cheio de fortificações inglesas.
Esse era o único caminho possível para se atravessar a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. As outras regiões são de desertos e ninguém se aventura atravessá-los. Nessa passagem, cerca de 20 km, existem muitos bandidos de tocaia e a travessia só pode ser feita durante o dia, pois à noite a passagem é fechada pelo exército, que também não se atreve atravessá-lo. Os monumentos al não são muito impressionantes, mas, logo depois, encontra-se o desfiladeiro de Kabul, onde a estrada sobe em zigue-zague pela montanha, uma visão deslumbrante pois o caminho passa quase por cima de si mesmo, durante cerca de 25 quilômetros mais ou menos.
Kabul é a capital do Afeganistão que, nesta época, estava cheia de militares por causa da revolução e do governo que tinha acabado de ser constituído. Não tivemos problemas com eles e fomos bem recebidos pela população. Em Kabul, comemos nosso primeiro bife de carne de vaca desde que havíamos entrado na Índia, pelo qual pagamos 20 cruzeiros. Durante todo esse tempo havíamos comido só curry (peixe, frango ou carne de ovelha arroz). Tivemos muita vontade de comprar roupas típicas, mas não pudemos porque nosso dinheiro dava só para a gasolina, talvez uns 500 dólares. Passamos três dias em Kabul e saímos rumo a Kandahar, no Sul, onde chegamos em um dia. De Lahore, fronteira da Índia com o Paquistão, até a fronteira da Turquia, as estradas são boas, a maioria pavimentada, e podíamos andar em qualquer velocidade.
Perto de Kandahar passamos o Deserto da Morte onde, devido ao calor intenso e ao clima seco, colocamos casacos, capacetes, óculos e um pano amarrado no rosto para poder atravessá-lo, porque quando se anda a mais do 80 km/h o vento e o calor provocam rachaduras na pele. Parecia-nos ridículos andar com toda aquela roupa num deserto, mas essa é a melhor maneira para enfrentá-lo. De Kandahar pretendíamos chegar a Herat, 500 km adiante. Saímos bem cedo e, às 11 horas da manhã, estávamos numa pequena vila no meio do deserto, Farah, onde paramos, pois seguir viagem depois desse horário é morte certa. É impossível descrever o calor que fazia. De nada adiantava pararmos em oásis no meio do caminho e bebermos dois litros de água porque, depois de meia hora embaixo daquele sol, estávamos sedentos novamente. Paramos num hotel em Farah para almoçar e aproveitamos para beber chá quente, que nos fazia suar muito mas depois nos dava uma boa sensação de frio. No meio dessa vila havia um edifício de quatro andares, um hotel com piscina pagamos quatro cruzeiros e ficamos até as cinco da tarde dentro d'água.
Saímos às cinco, rumo a Herat, pois queríamos chegar no mesmo dia, uma vez que é muito perigoso acampar no meio do caminho, por causa dos bandidos. As nove estávamos em Herat, acampados perto de um motel. No dia seguinte estávamos em Mashad, no Irã. Entre Herat e a fronteira iraniana são 150 km de muito calor, o que nos fez levar três horas para percorrê-lo, pois o pneu da moto de John furou duas vezes. Demorou mais uma hora para atravessar a fronteira e eu comecei a me sentir mal. Paramos num restaurante para bebermos uma Coca-Cola e notamos que o termômetro marcava 35 graus, o que nos fez supor que do lado de fora estivesse além dos 40. Em Mashad, encontramos um grupo de trinta pessoas, viajando em dois caminhões do exército inglês, que tinham vindo do Canadá. Fizemos amizade e nos encontramos mais umas quatro vezes pelo caminho. De Mashad, onde ficamos três dias, seguimos para Teerã, a capital, depois de dois dias de viagem e de muito calor.
Teerã é uma cidade muito interessante e com muito dinheiro, por causa do petróleo e da sua cultura, muito diferente dos demais países pelos quais havíamos passado. Comecei a ter problemas com a corrente de comando de minha moto, com o esticador funcionando muito mal; e, não poderia substituí-lo, pois só na Grécia existem peças para Honda. Viajando rapidamente, pois o dinheiro estava acabando e estávamos quase no fim de agosto, chegamos a Tabriz. Passamos a fronteira com a Turquia e subimos até a cidade de Trabzon, porto no mar Negro, para pegarmos um barco até Istambul, pois fiquei com medo que a corrente de comando não aguentasse atravessar as montanhas da Turquia e a viagem por barco sairia bem mais barata. Colocamos todas as nossas roupas para enfrentar o frio da serra antes de Trabzon, onde chegamos às 10 horas da noite, cansados e molhados. Nessa noite, o fiscal do camping nos convidou para dormir num barracão no meio dos sacos de coco, cereais, talvez com pena da gente por causa do frio que fazia
A capa da revista Duas Rodas de outubro de 1976
Esperamos o barco por três dias. A viagem demorou mais cinco, pois o barco fazia escalas com uma hora de parada, em vários portos do Mar Negro. Enquanto ele estava parado, descíamos e aproveitávamos para visitar as cidades, sempre muito pitorescas. No quinto dia atravessamos o Estreito de Bósforo, onde, de um lado avistávamos a Ásia e do outro, a Europa. Descemos do barco e acampamos no velho continente por cinco dias, num camping perto de Istambul. Enquanto isso John procurava um pneu novo, e eu tentava conseguir uma peça para a corrente de comando, que nesta altura, estava bem ruim. Mas não consegui.
Saímos de Istambul por uma pequena cidade na costa turca, Izmir, para tomarmos um ferry boat até Atenas. Ficamos lá uma semana acampados, pude desmontar o motor de minha moto, tentando consertar o esticador da corrente. Tive que fabricar a peça, que não existia em Atenas, assim partimos para Viena, sendo que, depois de uns 50 km o esticador quebrou de vez. Com uma corda, John me rebocou até uma pequena vila, na fronteira com a Iugoslávia onde embarquei a moto num trem para Belgrado. John seguiu com a Triumph pela costa do país até Viena, demorando quatro dias para chegar. Em Belgrado, embarquei com a moto para Viena, pois tive muita dificuldade com a língua e, além do mais, estava sem dinheiro. Encontrei John em Viena, também sem dinheiro, e ficamos esperando que o banco de John mandasse mais algum. Em Viena consegui a peça que faltava e consertei o esticador de corrente.
Depois de duas semanas estávamos em Munique e depois Frankfurt, onde passamos mais uma semana em casa de um amigo que havíamos encontrado no barco entre a África e a Índia. Quando não podíamos mais comer e beber, saímos de Frankfurt e em um dia estávamos na Bélgica. Fazia muito frio no final de setembro o tempo andava bem úmido. Ficamos 5 horas numa cidade chamada Ostende, esperando um ferry boat que nos levaria à Inglaterra. Chegamos a Dover às seis horas da manhã embaixo de chuva, porque afinal de contas, aquela era a Inglaterra. De Dover seguimos para Coventry onde moram os pais de John e onde terminou nossa viagem depois de sete meses
A primeira coisa que fiz, antes de ir para o Canadá, foi dar a Honda de presente para um amigo. Um dia, dois anos depois, em minha casa no Canadá, John liga da Inglaterra me convida para uma viagem pela América do Sul. Tínhamos terminado nossos trabalhos e respondi: "tudo bem". No começo de dezembro de 1975, eu e John, com duas Norton 850, novinhas, partimos pela América do Sul afora. No começo de junho de 76 estávamos entrando em São Paulo.