Lado a lado: não foi fácil fazer a curva ao lado de uma Ferrari 355. (Fotos: Ricardo Bianco)
Aproveitando a entressafra de lançamentos de motos – e seguindo o conselho de encher este blog de matérias – aqui está mais um teste que ficou para a história por gerar polêmicas numa época que nem sequer tinha Orkut.
Eu tinha acabado de chegar na Revista da Moto!, ou simplesmente MOTO!, ao lado do Roberto Agresti, com quem eu já tinha trabalhado muitos anos antes na revista MOTOSHOW. Cheguei na edição 25, em 1996 com a missão de aliviar um pouco o sufoco do Roberto que escrevia a revista praticamente sozinho, apenas com seu sócio, o diretor de arte Marcos Moretti, o fotógrafo Ricardo Bianco, o fiel escudeiro Felipe Passarela e o auxílio luxuoso do pianista Julio Carone.
Na revista Duas Rodas eu tinha um status de piloto de teste e editor super respeitado no mercado. A linha editorial da Duas Rodas sempre foi mais voltada para mercado e prestação de serviço, que, confesso, não me agradava muito. Já a MOTO! seguia para uma linha mais jovial com competições e pautas atrativas como o já relatado teste 24 Horas (saiba mais clicando AQUI).
Perante o mercado, a Duas Rodas gozava de uma espécie de proteção por parte dos fabricantes de motos, não só pelo pioneirismo, mas porque os editores sempre adotaram a política de boa vizinhança com os fabricantes. Já a redação jovem e casca-grossa da MOTO! peitava os fabricantes e investia na emoção a qualquer preço. Essa postura não agradava muito os fabricantes, mas era a alegria dos comerciantes e importadores, que entregavam as mais exclusivas motos em nossas suspeitas mãos.
Lembro de ter pego várias motos importadas com exclusividade com a missão de fotografar e devolver sem deixar qualquer vestígio de uso porque estas motos já estavam vendidas! O dono nem fazia ideia que eu já tinha rodado com elas. É como dar uma rapidinha com a noiva virgem um pouco antes de ir pro altar.
Eu não podia deitar demais a moto senão batia na Ferrari!
Numa dessas “rapidinhas” quase morri do coração quando peguei uma Honda VFR 800 absolutamente nova em uma loja chique na elegante avenida Europa. O dono da loja ativou a moto na minha frente e fez um milhão de recomendações pra não marcar o disco de freio, nem os pneus, não riscar o tanque com o zíper do macacão, não isso, não aquilo... a lista de “não-pode” era enorme.
Finalmente subi na moto, pedi pro fotógrafo Ricardo Bianco esperar no carro, já pronto porque teríamos pouco tempo. Saí da loja, entrei na avenida, acelerei e quase mandei a moto pro espaço! O pneu traseiro ainda com cera derrapou de uma vez, sem avisar, a moto ficou atravessada no meio da Av. Europa, indo em direção ao carro do fotógrafo. Meu coração quase saltou pela boca, meu cérebro apenas registrava “não encoste no freio”, minha alma já tinha fugido e quando percebi a moto estava perfeitamente alinhada, em pé e inteira. Pelo espelho eu vi o dono da loja com as duas mãos na cabeça e o enorme risco preto que o pneu deixou no asfalto. Até hoje ele pensa que foi de propósito. E até hoje eu tenho certeza que Deus olhou lá de cima, ficou com pena de mim e endireitou a moto.
Esta introdução é para entender o tamanho da pressão que foi testar uma Ferrai e uma Ducati, ambas emprestadas, com milhões de recomendações. Os donos só não sabiam que estávamos com a proa rumo ao sul de SP, mais precisamente para Interlagos. Sim, a pista!
Foram várias tentativas pra me tirar de dentro dessa Ferrari!
O dono da Ducati 916 envelopou quase toda a moto com Magipack pra não marcar o tanque, a rabeta, as laterais, tudo. Depois das fotos dinâmicas nós tiramos o plástico e fizemos as fotos de detalhe. Eu já tinha pilotado a Ducati 916 em Interlagos e conhecia bem a moto. Mas nunca tinha pilotado uma Ferrari. Quando já estávamos quase acabando o homem deixou eu dar uma voltinha. Foi a voltinha mais longa da minha vida, porque eu não queria que terminasse nunca. Não lembro mais dos detalhes, mas uma coisa ficou marcado: o câmbio duro pra caramba e pensei “é, tinha que ser Fiat”.
Curta este teste realizado em agosto de 1998, com produção de Andrea Gonzalez, fotos de Ricardo Bianco e redigido por mim.
Máquinas
Colocamos frente a frente a Ducati 916 e a Ferrari 355, duas feras italianas
Coloque 386 cv sobre 1.350 kg de um lado, 150 cv sobre 177 kg do outro. Misture tudo com um forte sotaque italiano e jogue na pista de Interlagos. Adrenalina em dose dupla! Essas duas máquinas são os mais expressivos objetos do desejo no consciente de qualquer ser humano com velocidade nas veias. A Ferrari, bela, amarela, italiana, como toda máquina feita para correr, tem perfil aerodinâmico e estilo assinado pelos estúdios Pinifarina. Olhe bem as fotos e pode suspirar à vontade. Mesmo nós, confessos amantes de motos, temos o direito e a liberdade de cometer o singelo pecado de apreciar os veículos de quatro rodas. No caso da Ferrari, é quase uma obrigação.
A dupla mostarda e catchup!
Para fazer frente a uma Ferrari, qual seria a moto que mais expressa a filosofia motociclística italiana? Uma Ducati 916, a mesma que foi abençoada com a marca Senna, rei inconteste da velocidade. E antes que você desdenhe a cor amarela da Ferrari, um esclarecimento importante: a cor oficial da Ferrari é amarelo; o vermelho veio depois, em função de um regulamento da Fórmula 1, nos anos 50, que obrigava os carros a usarem a cor oficial de seus países. Tem mais: ela já foi verde também. Mas observe bem o logotipo e verá um cavallino rampante sobre o fundo amarelo.
Para uma “quadrúpede", até que a Ferrari, com motor V-8 de 3.496 cm faz bonito: com quase 400 cavalos a Ferrari leva apenas 4,5 segundos para chegar a 100 km/h e alguns outros poucos para alcançar a velocidade máxima de 295 km/h. O modelo que levamos para este encontro de potências é a Spider, conversível, o que a faz ficar ainda mais parecida com uma moto.
Dentro desse cofre tem uma jóia V-8 de quase 400 CV!
A Ducati, com motor de dois cilindros em V a 90°, ou em L, de 916 cm faz de 0 a 100 km/h em 2,9 segundos e chega à velocidade máxima de 270 km/h. É o que poderíamos chamar de a Ferrari das motos, não apenas pela ascendência italiana, mas pelo estilo esportivo. Ela também é fornecida apenas em duas versões de cores: vermelho e amarelo.
Pena que nosso blog não tem som, porque esse V-8 é uma sinfonia!
Pilotando um mito
Ter à frente duas máquinas como a Ferrari e a Ducati é um daqueles raros momentos que tentamos prolongar por uma breve eternidade. Ao assumir o posto de comando da Ferrari 355 vem a primeira surpresa. Como acontece com a maioria dos esportivos, as pernas ficam deslocadas para a direita, e os pés comandam pedais de alumínio; o freio de mão fica do lado esquerdo e não no centro, como nos carros “normais” e a alavanca de câmbio trabalha dentro de uma guia para não se correr o risco de errar uma marcha. São seis marchas à frente, mais a ré.
Não existe luxo no interior. Os bancos são revestidos de couro e o ar-condicionado garante tempo bom, quando a capota está levantada, claro. Lugar só para duas pessoas e um pequeno espaço atrás dos bancos pode abrigar duas pequenas malas.
Nenhum nome traduz melhor o espaço onde o motor vai colocado: ele é conhecido como cofre. Dá para entender porque a configuração V-8 é considerada a mais equilibrada para carros esportivos, incluindo a Fórmula 1. É o formato que melhor consegue reunir alto desempenho com espaço contido e elimina boa parte das vibrações.
Neste dia realizei um sonho de infância, mas foi bem rapidinho!
Motor acionado e revela um som grosso. O fanatismo de um ferrarista chega a ponto de muitos gravarem o som de uma Ferrari só para curtir esse prazer sonoro, como se fosse uma sinfonia clássica.
Ao analisar a estrutura, salta à vista as rodas de liga leve, aro 18. Isso mesmo, as rodas da Ferrari têm diâmetro maior do que as rodas da Ducati, com aro 17 polegadas. Enquanto a Ducati calça pneus radiais 120/70-ZR17 na dianteira e 190/50-ZR17 na traseira, a Ferrari veste sapatões 225/40-ZR18 na dianteira e 265/40-ZR18 na traseira. Estes pneus são um dos principais responsáveis pela excelente estabilidade da F 355 e que garantem maior velocidade nas curvas, em comparação com a Ducati.
A exemplo do comparativo anterior, da Honda CBR 600F3 contra o BMW M3 (MOTO! 29), a moto levou vantagem nas situações onde o menor peso e reduzida área frontal são fundamentais. Ou seja, na aceleração, retomada de velocidade e frenagem. Por outro lado, o carro foi melhor na velocidade final e na velocidade em curva, em função dos quatro pontos de contato com o solo, que são os largos pneus.
Ah, aí sim eu me sinto em casa. Já tinha pilotado a 916 em Interlagos.
Pilotando outro mito
A Ducati 916 é a própria síntese da Itália motociclistica. O motor, considerado antiquado, se revelou tão eficiente nas provas do Mundial de Superbike que duas marcas japonesas trataram de copiar o mesmo estilo. Primeiro foi a Suzuki, que “clonou" a Ducati ao criar a TL 1000S (MOTO! 29) com motor de dois cilindros em V. Depois foi a vez da Honda criar a VTR 1000 (MOTO! nº 32), também com motor V-2.
A vantagem do motor V-2 para essas esportivas é torná-las muito finas, com reduzida área frontal, o que melhora não apenas o coeficiente de penetração aerodinâmica, como também deixa a moto mais fácil de inclinar nas curvas. Além disso, a configuração V para o motor é a melhor receita para transferir potência à roda. Quando falam da tecnologia antiga da Ducati, é uma referência ao comando de válvulas desmodrômico, uma solução que dispensa as molas e confere mais precisão na abertura e fechamento das válvulas. De fato, é antiga, mas funciona muito bem até hoje. Seus efeitos colaterais são o aumento na vibração e no nível de ruído mecânico.
O quadro da Ducati 916 também adota uma solução diferente das modernas esportivas, com treliça tubular de cromo molibdênio e o motor “pendurado”. É outro sucesso que provocou alguns clones como a Yamaha TRX 850. A estabilidade proporcionada por esta solução é assombrosa, elevando os limites para parâmetros inimagináveis.
Obra de arte sobe duas rodas.
Assombrosos também são os preços envolvidos. Para comprar essa Ferrari 355, aqui no Brasil, será preciso R$ 350 mil. No caso da Ducati, o valor é mais modesto, quer dizer, comparando com o carro. Ela custa "apenas" R$ 36 mil, quase 10% da concorrente de quatro rodas,
M!
* Tem uma informação errada na ficha da Ducati. Onde está o item "Válvulas por cilindro" o correto é QUATRO e não oito como foi publicado. O revisor cochilou.