133 cavalos à disposição numa pista inteirinha só pra mim (Foto: Luca Bassani)
Como foi passar mais de três horas sozinho dentro de Interlagos
Nesta semana, dia 12 de maio, Interlagos comemorou 80 anos de vida. Desses 80 eu participei de 55. Minha primeira vez em Interlagos foi aos seis anos, levado pelo meu irmão mais velho e a molecada do bairro... de bicicleta! Pulamos o muro, cheguei perto da grade na reta dos boxes bem na hora que passou um carro de corrida muito barulhento. O som atravessou meu plexo braquial, atingiu o coração e assim fui inoculado pelo vírus da velocidade. Depois desse dia Interlagos passou a ser meu parque de diversões favorito. Até quando não tinha corrida eu entrava na pista e ficava andando a pé, recolhendo pedaços de carros de corrida para retirar os adesivos. Pense numa infância feliz!
Além de frequentar Interlagos nestes 55 anos, também corri de carro e moto nas duas versões da pista. Participei de centenas de eventos, fotografei F-1, Mundial de Motovelocidade, vários latino-americanos, sul-americanos, de todas as modalidades possíveis. Só não fui em show de música nem missa!
Mas teve uma vez que Interlagos, com seus um milhão de metros quadrados foi inteirinho meu por uma tarde inteira. E melhor: com uma Suzuki GSX-R 750 e o fotógrafo totalmente descompensado, louco, histérico e super criativo Luca Bassani. Antes de contar como isso aconteceu, deixa explicar como é o Luca.
Nos meus quase 40 anos de jornalismo tive a chance de trabalhar com dezenas de ótimos fotógrafos. O meu histórico de fotógrafo – com experiência em competições – ajudava bastante porque eu conseguia entender exatamente o que o fotógrafo queria e ainda dava vários pitacos. Com o Mário Bock rolava uma interação tão grande que a gente terminava tudo bem rápido para ficar mais tempo perambulando pelas ruas sem ter de voltar à redação. E sempre ficava ótimo!
Aprendi demais com artistas como Marco de Bari (in memoriam), Ricardo Bianco, Saulo Mazzoni, Roberto Agresti, Mario Villaescusa, Fábio Arantes (meu filho adotivo), Idário Café, Norberto Marques e muitos outros que peço desculpas se não lembrei. Mas foi com o Luca Bassani que fiz as loucuras mais ousadas.
Nossa parceria nasceu nos corredores da revista Auto Esporte, quando ainda era publicada pela editora Efecê. Os editores eram meus amigos Caio Moraes e Eduardo Dória que me davam total liberdade para criar e ainda imploravam para eu manter o Luca o máximo de tempo fora da redação, porque ele também sofria do mesmo mal que eu, o bichus cullus, que nossos avós chamavam de bicho carpinteiro* e os psicólogos chamam de TDA.
Já conhecia o Luca de outros carnavais, mas começamos a trabalhar juntos por volta de 1996. Ele adorava fotografar moto porque podia pirar à vontade. Ele me falava:
– Seguinte, a revista Auto Esporte é de carro. A moto é uma intrusa na pauta, então a gente tem de ser diferente das revistas de moto. Temos que fazer as fotos mais doidas para atrair o leitor que só gosta de carro.
Daí nasceram pautas e fotos memoráveis.
Comportadinho na BMW R 1100GS para bons moços (Foto: Luca Bassani)
Mein Gott
Uma dessas pautas foi da BMW R 1100 GS que chegou nas minhas mãos com pouco mais de 100 km rodados. Uma moto linda, icônica, um sonho de consumo de todo motociclista estradeiro. Eu principalmente. Mas era uma moto caretona, que não inspirava muitas ousadias. Quer dizer, até entrar o Luca em ação.
Fomos para a praça Charles Miller, no Pacaembu, bem perto da redação da Auto Esporte e o Luca falou:
– Temos de inventar algo diferente, vamos fotografar essa moto de tiozinho como se fosse uma esportiva radical?
Topei na hora e foi um festival de burn-out, empinadas, curvas raspando pedaleiras, tudo que um verdadeiro cavalheiro não deveria fazer com uma 1100 GS. Eu estava adorando porque era uma moto pesada, com um baita motorzão gigante, mas empinava como se fosse uma leve motocross dois tempos. Me diverti horrores, terminamos as fotos, cada um foi pra sua casa e continuei minha existência normal até a revista ser publicada e eu receber uma ligação do editor Caio Moraes.
Borrachão de BMW? Nein, isso não se faz, der prezidenten não gosta! (Foto: Luca Bassani)
Segundo ele, o presidente da BMW viu as fotos e rodou das baianen. O executivo subiu nas tamancas, ligou na Auto Esporte e pagou geral. Falou bem assim:
– Ezze Gerraldo Zimöes está fica broibido de teztar os nossos motorrad BMW, Mein Gott Immer Fix Halleluja Nochmal!
Ao que o Caio, na macheza característica da família Simões, respondeu que então não haveria mais matéria com BMW porque o Geraldo Simões é nosso piloto de teste, punto & basta! Peitou o alemão!!!
Para nossa sorte – minha, do Caio e do departamento comercial – este presidente foi enviado para a Argentina (bem feito) e o novo era bem mais legal, inclusive acho que está até hoje.
O que pouca gente sabe é que em um teste para outra revista esta mesma BMW 1100 teve um pequeno problema técnico: o cardã explodiu que nem uma bolacha cream-cracker. Dizem que encontraram um pedaço de alumínio na ponta do Obelisco, no Parque Ibirapuera. Fico só imaginando a cara do der Prezidenten recebendo a motorrad despedaçada com óleo até no documento!
Onde está o fotógrafo? (Foto: Luca Bassani, de dentro do bueiro)
No buraco
Nesta época já tínhamos as câmeras digitais (caríssimas), mas ainda pesadas e com lentes igualmente pesadas. O Luca não economizava em equipamento e socava tudo em uma VW Santa Quantum. O porta-malas enorme vivia carregado de máquinas, lentes, tripés, flashes, parecia um estúdio ambulante. Para evitar que ele ficasse zanzando pela cidade com dezenas de milhares de dólares eu pegava as motos e ia até a casa dele, num condomínio elegante de Jundiaí que já servia como locação para várias de nossas fotos.
Naquela euforia de fazer fotos diferentes o Luca desmontava os tripés e criava suportes para gripar a máquina fotográfica em alguma parte das motos, criando as tais fotos subjetivas. Hoje em dia isso é moleza, tem centenas de modelos de grip à venda no Aliexpress. Ou os recursos do Photoshop que faz qualquer moto fotografada em estúdio aparecer voando no meio de uma praia havaiana. Mas em 1996 era tudo feito na base do improviso e alguns quilômetros de silver tape.
Uma vez, fotografando uma moto custom no condomínio dele, o Luca viu um bueiro sem tampa. Na hora teve a ideia de se enfiar no buraco para eu passar bem perto. O resultado foi uma foto de um ângulo totalmente diferente, que desafia qualquer pessoa a descobrir onde raios está o fotógrafo ou a máquina fixada.
Interlagos ao contrário vira Sogalretni. (Foto: Acul Inassab))
O nosso Interlagos
Mas a grande obra-prima da dupla Luca-Tite aconteceu em Interlagos, com data e hora. Foi no dia 7 de julho de 1998, plena Copa do Mundo de Futebol, jogo na fase de mata-morre (não se deve usar mata-mata porque se os dois morrem ninguém passa de fase, alguém tem de viver!), jogo decisivo da semi-final entre Brasil e Holanda.
Como a moto era uma Suzuki GSX-R 750 achei que seria perfeito fotografar em Interlagos. Quando liguei pro Luca comentei que durante a semana eu costumava fazer fotos nos trechos velhos de Interlagos, especialmente na curva do Sargento, ainda preservada, e que os administradores liberavam na boa. Já tínhamos feito fotos da Honda CBR 1000XX nesse local e deu super certo.
Uma das mais lindas fotos que participei, onde está a máquina? (Obra de arte: Luca Bassani)
Como nenhum de nós curte futebol nem nos demos conta que era justamente esse dia de jogo da Seleção Brasileira e chegamos no portão do autódromo logo depois do almoço, faltando uns 15 minutos pro juiz apitar o começo da partida.
O vigia olhou pras nossas caras e perguntou:
– O que vocês estão fazendo aqui a essa hora?
Expliquei a situação, falei as palavras mágicas que abriam as portas de Interlagos (jornalista, amigo do administrador da pista, bla bla bla e mais bla bla). O vigia estava numa sinuca, porque se ele proibisse a nossa entrada poderia levar uma comida, mas se liberasse ele teria de nos acompanhar até acabar as fotos.
"Vai lá a voa na zebra!" OK, pediu, nóis faiz. (Foto: Luca Bassani)
O tempo foi passando, o jogo já pra começar e ele tomou a decisão mais inesperada. Foi até o portão, abriu o cadeado, fechou o portão mas não fechou o cadeado, virou pra gente e disse:
– Olha aqui, vocês vão entrar, fotografar, fazer o que bem entender, não tem ninguém na administração, nem médico, ambulância, nada. Só vou te pedir UMA coisa: não morra nessa merda!
Que chato essa coisa de toda hora pedirem pra eu não morrer!
Passamos pelo portão, chegamos na reta dos boxes, olhamos um pra cara do outro e tivemos uma crise de riso quando gritei:
– PORRAAAA, INTERLAGOS É TODINHO NOSSO!!!
Dois loucos à solta dentro de Interlagos! Ligamos o rádio pra controlar o tempo de jogo e foi uma maravilha: o jogo empatou nos 90 minutos, foi pra prorrogação, disputa de pênalti, par ou ímpar, cara ou coroa, a porra do jogo não acabava mais! Tivemos Interlagos a tarde inteira só pra nós!
Com todo tempo do mundo o Luca decidiu inventar. Ele gripou a máquina na lateral da Suzuki com pedaços de tripé e quilos de silver tape e enquanto eu pilotava ele acompanhava de carro, disparando a máquina por controle remoto. O dia estava lindo, aquele sol tímido de inverno, a luz perfeita, céu azul, tudinho estava perfeito demais. Nada pode ser assim tão perfeito, alguma coisa iria dar errado a qualquer momento. E deu!
Revista Auto Esporte na época que publicava testes de motos.
Empolgado com a pista inteira só pra mim comecei a pirar, deitar loucamente nas curvas e esqueci da máquina gripada na lateral. De repente, no Pinheirinho, inclinei demais, a câmera raspou no asfalto e saiu voando! Quando vi pelo retrovisor a máquina rolando pensei:
– MeeeeooooDeooossss, o Luca vai me matar, esquartejar, jogar o corpo no Lago e criar um álibi!
Fiquei um tempo parado, olhando aquela cena. O Luca estático. Eu branco. O Brasil empatado com a Holanda. O ar parado. Nenhuma folha se mexia. Tudo ficou silencioso, só o rádio do carro anunciando que haveria prorrogação. Deixei a moto ligada e engatada para o caso de uma fuga.
O Luca foi caminhando calmamente até a máquina, pegou, olhou, olhou, eu com a moto ligada, primeira engatada, pronto pra correr, até que ele virou e falou:
– Ah, relaxa, tenho outra na mala!
Foi até a Quantum, abriu o porta-mala, pegou outra câmera e fez sinal para eu continuar andando. Finalmente pude relaxar o esfíncter, mas não por muito tempo.
O mago, paciente e louco Luca Bassani.
Estávamos tão à vontade que eu ficava pilotando nos dois sentidos pro Luca fotografar sem ter de esperar dar a volta inteira na pista. Até que ele fez o sinal positivo indicando que tinha acabado.
Bom, eu estava numa Suzuki GSX-R 750 SRAD, 133 cavalos, sozinho em Interlagos. Tinha passado horas controlando a velocidade para as fotos, quando ele me liberou pensei no silêncio do meu capacete:
– É hoje! Hora de se divertir!
Comecei a dar voltas mais feliz que criança em loja de doce. Cada vez que passava no Retão olhava pro velocímetro a estava lá 250, 260, 270 km/h. Na Subida do Café eu via as marcas deixadas pelo pneu traseiro e pensava “nossa, sou eu mesmo que estou fazendo isso!” Dei um zilhão de voltas, aumentando o ritmo, tentando manter um resquício de juízo, afinal estávamos sozinhos sem ninguém pra socorrer em caso de acidente. E eu tinha prometido não morrer.
Foram tantas voltas que uma hora começou a ficar chato e então tive a ideia cretina do dia: rodar no sentido contrário!
Se você nunca pilotou em Interlagos no sentido contrário não sabe o que está perdendo. É outra pista! Demorou um tempão pra decorar as frenagens, as curvas, o que era subida vira descida e vice-versa. O S do Senna fica perigoso porque a moto saía já a uns 180 km/h passando pertinho do guard-rail. Deu um nó na minha cabeça e precisava esquecer que aquela pista era Interlagos.
A Subida do Café vira Descida do Café e foi bem lá que eu quase quebrei a promessa de ficar vivo. Com a calibragem original a moto escorregava de traseira, de frente, nas duas rodas, parecia que a pista estava úmida só onde eu passava. Fazer a curva do Café ao contrário é uma sensação muito louca porque se torna uma curva cega, em descida e com uma baita frenagem para a Junção, na descida, com inclinação negativa.
Claro que me empolguei e quando encostei o dedo na manete do freio dianteiro, para fazer a Junção (ou a Oãçnuj) a frente criou vida própria e foi embora! O pneu dianteiro não aguentou tanto desaforo e decidiu me largar na mão. Senti a frente derrapar, derrapar e derrapar mais um pouco, e eu só pensando na manchete dos jornais no dia seguinte: “jornalista invade Interlagos em dia de jogo e se espatifa no guard-rail”. Rezei pra Nossa Senhora da Aderência, virei os semi-guidões pro lado a favor da derrapagem, a moto levantou, o pneu ganhou tração, a moto foi direto pro enorme gramado e fiz um grass-track a uns 140 km/h. Se tivesse um guard-rail naquele ponto ei teria quebrado a promessa que fiz pro vigia.
Quando vi que estava inteiro aliviei (de novo) o esfíncter e fui encontrar o Luca Bassani, pianinho. Falei pra ele:
– Acho melhor a gente ir embora. Enquanto ainda estou vivo!
* Só por curiosidade a expressão “tá com bicho carpinteiro” na verdade é “está com bicho no corpo inteiro”, para representar a criança que não parava quieta, como se tivesse o corpo cheio de bichos. Mas algum mineiro ouviu e traduziu pro idioma exclusivo deles.