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A história da foto: perdidos em Minas

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Eu e Mário Bock, uma dupla com milhares de kms rodados e histórias!

Uma aventura-teste com a Agrale SXT 16.5 e Yamaha DT 180

Fotos: Mário Bock

Nos meus primeiros anos como jornalista especializado o mercado de motos ainda estava bem embrionário. Poucas marcas, poucos produtos, já dominado pela Honda, mas com boa participação da Yamaha. Até que uma empresa de Caxias do Sul, criada por filhos de imigrantes italianos apaixonados por motores, lançou-se nessa briga com uma marca já conhecida no universo agrícola: Agrale!

Foram buscar tecnologia na Itália e bateram na porta da Cagiva, nome adorado por todo mundo que tinha sangue de verdade nas veias. Dessa parceria nasceu a Agrale SXT 16.5, uma trail de 125cc, motor dois tempos, arrefecido a líquido que mexeu com a minha testosterona logo à primeira vista. Uma 125cc naquela época tinha 12,5 CV e esta chegou com 16,5 CV e o radiador.

Nunca escondi minha paixão pela marca, pela família Stedile* (donos da Agrale), especialmente a filha Dolaimes Stedile Angeli, linda, loira, olhos azuis, inteligente, elegantérrima, simpaticíssima e de uma gentileza rara. Não tinha homem na face da Terra que não se apaixonasse por este pacote completo. Mas ela mantinha o distanciamento digno de uma rainha diante do séquito. Inacessível aos mortais. Infelizmente nos deixou de forma precoce em 1995.

Daria para escrever um livro inteiro sobre a família Stedile – se não foi feito ainda – e essa admiração fazia de nós, jornalistas, fãs de carteirinha da marca Agrale. Era uma fábrica nacional, feita com a coragem dos imigrantes italianos, com a paixão de quem ama o que faz e a gentileza de verdadeiros lordes. Nunca, nos meus quase 40 anos de jornalismo, fui tão bem tratado e respeitado, quanto pela família Stedile, incluindo o patriarca, Francisco, os filhos Carlos e Franco (que apoiavam todas as minhas loucuras) e até os netos! Contrastava demais com a frieza dos executivos japoneses e alemães que convivíamos até então.

Agrale_DT180_capa.jpg

A foto da capa foi num raros momentos de sol já no final da viagem.

Logo nos primeiros testes com a Agrale SXT 16.5 percebi que era uma moto com grande potencial, mas tinha muito o que melhorar em vários pontos, principalmente o sistema elétrico que dava paus inexplicáveis. Mas era uma moto pra quem gostava de esportividade e batia de frente com a Yamaha DT 180, ícone off-road, dominadora das trilhas e responsável por romper o hímen de muita gente no fora-de-estrada. No meu caso era hímen complacente porque precisei de duas DT 180 até aprender!

Nada mais natural que fizéssemos um teste comparativo entre a recém chegada Agrale e a já dominatrix Yamaha. O ano era 1985 e o mês de dezembro, claro, com todos os implicativos das datas festivas. Mas não era um teste qualquer, feito no quarteirão, queríamos algo mais marcante. O editor na época era o Roberto Araújo que permitia todo tipo de insanidade, desde que voltássemos com uma história boa. Levávamos muito a sério o conceito de “Aventura-Teste” e tinha de reunir todos os ingredientes para uma narrativa que prendesse leitor logo no primeiro parágrafo. Tudo decorado com fotos de situações dramáticas, coisa que nem precisava esforço quando tinha a parceria do Mário Bock.

Eu tinha acabado de voltar do Enduro da Independência (em setembro) e, como sempre, preservei uma cópia da planilha (mapa roteirizado) dos quase 1.000 km de trilhas. E tive a ideia insana do mês, do ano, da década: repetir parte do roteiro do Enduro da Independência, começando por asfalto em São Paulo, entrando na trilha em Três Corações (MG), terminando o trecho de terra em Lavras, (MG) e retornando pela rodovia para São Paulo. Daria mais de 1.500 km por todo tipo de situação, em dois dias, com pernoite em Lavras.

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Choveu durante quase todo o teste.

Valeu, São Pedro!

Pegamos as motos absolutamente zero km e teríamos de amaciar os motores na estrada até Três Corações, mantendo os limites de rotação e velocidade indicados pelos fabricantes. Teríamos 320 km para “soltar” os motores dois tempos. Nesse torturante trecho de asfalto com motos pequenas nossa média horária era ridícula e, claro, saímos bem atrasados, o que já projetava o primeiro problema de programação: chegar em Lavras durante o dia.

Se a média horária era baixa na rodovia tudo ficou pior quando chegamos em Três Corações para enfrentar cerca de 50 km de estradas de terra até São Tomé das Letras, cidade mística de duendes, fadas e outros seres esquisitos. A estrada estava “pesada” porque tinha chovido muito na véspera e o Mário não tinha muita experiência com fora-de-estrada, mesmo assim conseguimos chegar em São Tomé ainda no meio da tarde.

Fizemos a sessão de fotos em frente às tradicionais casas de pedra, lanchamos no único boteco aberto e quando olhei de relance pro céu vi que a coisa tinha ficado literalmente preta. Nuvens escuras, raios e um vento forte davam toda certeza do mundo que viria uma tempestade típica de verão.

Pior: era justamente em São Tomé que começaria o trecho de trilha de cerca de 90 km até Lavras. Eu tinha feito esse trecho no Enduro da Independência, mas a moto era uma Honda XL 250R, preparada, com pneus bem melhores e eu estava em uma competição, correndo contra o relógio. Na minha memória, a distância entre São Tomé e Lavras era um “tirico de espingarda”, coisa de poucas léguas, seja lá quanto tem uma légua.

No bar alguns poucos moradores e turista aconselharam a pernoitar e só continuar no dia seguinte. O que seria a decisão mais sensata. Só que justamente o que mais faltava a uma equipe de testes naquela época era um mínimo vestígio de sensatez. Entre os que tentavam nos demover da ideia de sair na iminência de uma tempestade estava uma mocinha muito simpática, de olhos verdes e trança no cabelo que ofereceu um quarto no casa dela.

– Vamos ficar – aconselhou o Mário Bock – a gente sai amanhã cedo e nem vai fazer tanta diferença no fim.

Só que tinha mais um componente complicativo: eu estava prestes a ser pai da minha primeira filha (que nasceria em janeiro). E isso deixava tudo mais tenso porque eu tinha de ficar colado a um telefone. E em São Tomé das Letras, no ano santo de 1984, só tinha UM telefone na praça principal. Além disso, de Lavras eu poderia pegar a rodovia e chegar em SP mais fácil e rápido do que saindo de São Tomé.

– Vamos pra Lavras, são só 80 km até lá, se a gente fizer média de 40 km/h chegamos em duas horas – insisti, numa inocência quase pueril.

Infelizmente o Mário concordou. Trocamos a companhia da mocinha dos olhos verdes, um quarto confortável, a segurança de uma noite tranquila por uma aventura que se tornaria uma grande, fedorenta, desesperadora, assustadora e interminável CAGADA!

Abduzido?

Já saímos do boteco vestindo as capas de chuva. Instalei uma prancheta na Agrale, coloquei a planilha – de papel!!! – com o nosso roteiro e assim que chegamos na primeira trilha o céu caiu sobre nossos capacetes!

Pensa numa chuva forte, fria e escura! Era perto de 17:00 horas, se fizéssemos esse trecho em duas horas, como eu havia previsto, chegaríamos em Lavras às 19:00 ainda com luz do dia porque era verão. Mas nos primeiros quilômetros percebi o tamanho da encrenca. Sem experiência em fora-de-estrada o Mário pilotava muito devagar.

Os pneus originais de motos de uso misto são feitos para rodar no piso asfalto/terra, mas sem lama. Em baixa velocidade a lama gruda no pneu, que fica totalmente liso, escorregadio e começam as quedas. Nada grave, só que a cada queda perdíamos muito tempo para levantar, montar na moto, esperar a gasolina da cuba do carburador “desafogar”, dar a partida no pedal várias vezes, até finalmente o motor pegar, engatar a primeira, rodar uns 500 metros e... cair de novo!

O único jeito de a lama não grudar nos pneus era correr. A centrifugação natural retira a lama e os pneus voltam a aderir. Mas o Mário não conseguia correr na lama e fiz uma continha básica para descobrir que nossa média horária era de mais ou menos 10 km/h! E ainda faltavam uns 60 km pra chegar em Lavras.

Fui olhar no mapa para ver se tinha uma forma de cortar caminho e pegar a rodovia. Mas depois de toda aquela chuva e lama o mapa tinha virado uma bola marrom de papier maché.  

Escureceu e chovia muito. A chuva só não era maior do que meu arrependimento. Sem mapa, naquelas motos com faróis tão miseravelmente fracos que pareciam lampiões de carbureto me dei conta do tamanho da burrada, mas não podia fraquejar. Expliquei pro Mário que numa situação dessas tínhamos de fazer que nem os mineiros: seguir o caminho mais batido que termina num bairro, vilarejo, cidade, alguma civilização.

Só que nós somos paulistanos. E foi assim que nos perdemos!

Já passava das 19:00 horas, não tínhamos rodado nem 30 km, sem a menor ideia de onde estávamos, cheios de lama, as motos derrapando tanto que num dado momento minha moto deu um giro de 1800 e fiquei de frente pro Mário! Minha vontade era sentar na beira da estrada e esperar, catatônico, até nascer o sol. Só queria chegar a algum lugar e quando achei que nada podia piorar queimou o farol da Agrale! Lembra lá no começo que comentei que o sistema elétrico das Agrale era um lixo? Pois foi minha primeira experiência com esse problema congênito da marca.

Sem o meu farol tínhamos de andar um do lado do outro pra eu aproveitar o fraco farol da Yamaha. Isso fez a média horária cair ainda mais. A maior preocupação era não cair num dos terríveis mata-burros pela estrada. Para evitar que o gado e os cavalos fujam das propriedades, as estradas eram cortadas por porteiras com diferentes tipos de mata-burro. Normalmente eles são projetados para passar carros e caminhões, não previram que um dia passariam motos a 90 km/h. Os pneus das motos encaixavam no vão do mata-burro e o piloto era arremessado longe, não sem antes quebrar braços e pernas. No Enduro da Independência eu vi muito piloto literalmente quebrado pelo caminho por conta dessas armadilhas.

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ISTO é um mata-burro, se vacilar o piloto se quebra todo. Vi muita gente se arrebentar nessas armadilhas.

No meio de toda essa tensão eu implorava o tempo todo, gritando pro Mário nunca andar no meio da estrada e tomar maior cuidado pra não cair num mata-burro até que tudo ficou escuro e silencioso. O Mário sumiu!

Olhei em volta e... nada! Tirei os óculos e... nada! Ele simplesmente tinha sumido bem do meu lado. E estávamos em São Tomé das Letras, terra de discos voadores, duendes, portais que levam a Macchu Picchu, civilizações escondidas em cavernas e o Mário tinha sumido. Pensei “pronto, o Mário foi abduzido, como vou explicar isso pro Roberto Araújo?”. Desliguei a barulhenta Agrale na esperança de que ele tivesse caído num mata-burro e ouvi um grito:

– Titeeeeeeee volta aqui!!!

O Mário tinha entrado com moto e tudo numa vala cheia de água e adivinhe: o farol da Yamaha pifou!!!

Preto velho existe

Estávamos, literalmente, numa encruzilhada. Bem num entroncamento de duas estradinhas, em qualquer ponto dos 586.528 km2 do Estado de Minas Gerais, sem luz nem a menor ideia de qual estrada pegar. Foi quando bem longe eu vi uma luz bruxuleante, fraca, típica de lampião e o cheiro típico de lenha queimando. Era uma casinha de taipa, bem simples, no sopé de um morro.

Já com a vista acostumada com a escuridão empurramos as motos até a cerca da casinha e comecei a bater palma. Nada. Mas eu sabia que tinha gente lá dentro porque estava ouvindo vozes. Bom, mas como expliquei, estávamos perto de São Tomé das Letras e ouvir vozes era algo até contumaz naquelas paragens. Bati palma de novo e o Mário sugeriu:

– Tira o capacete!

Ah, mesmo se tratando de São Tomé não deve ser normal alguém bater na sua porta, numa noite de chuva, usando uma bola branca na cabeça, todo coberto de lama e folhas.

Tirei o capacete, bati palmas e a porta se abriu bem devagar. Vimos só a silhueta de um homem. Gritei que estávamos indo pra Lavras e nos perdemos. A porta se abriu mais e o homem veio em nossa direção segurando algo que eu imaginei um rifle, mas era uma bengala. Ele chegou perto e vi que era um senhor bem preto, com cabelos bem brancos, como aqueles quadros de preto velho das casas do interior.

– Boa noite – comecei o discurso – somos de São Paulo, estamos indo pra Lavras, mas escureceu e nos perdemos.

Ele olhou daquele jeito desconfiado que todo mineiro tem desde que nasce.

– Mas vocês estão longe demais – respondeu o velho, já com um ar mais amigável. Entrem, vamos tomar um café que e eu explico – completou.

Entramos. A casa era bem simples, mas toda arrumadinha. Na cozinha, com piso de cimento queimado, estava a mulher dele, idosa também, branca velha, sentada ao lado do fogão a lenha, de onde saía a fumaça que eu farejei como um perdigueiro cego e faminto.

Olhei aquilo tudo, me vi pisando com as botas cheias de lama naquele piso, morri de vergonha, mas aceitamos o café. O rastro de lama atrás da gente. E o preto velho explicou:

– Vocês vão seguir essa estrada pra lá (n.d.r.: mineiro não se entende bem com esse negócio complicado de “esquerda e direita”). Lá no alto você vai ver uma mangueira bem no meio de um capão de mato. Nessa mangueira o senhor vira pra cá.

Enquanto ele explicava eu olhava para as mãos para saber se o “cá” e o “lá” era esquerda ou direita.

Quando terminou a explicação ele perguntou:

– Por que vocês não dormem aqui e vão amanhã? Nessa escuridão, com chuva, vocês vão se perder de novo,

Confesso que fiquei tentado. Olhei pro Mário e ele também parecia gostar da ideia. Mas tinha aquele problema de ficar longe de um telefone, a minha mulher grávida em São Paulo, podendo dar a luz a qualquer momento e no exato instante que pensei em dar a luz o velho disse:

– Se vocês acertarem o caminho vão chegar em Luminárias!

Luz, Luminárias, aquilo só podia ser um sinal.

E era mesmo, porque decidimos seguir em frente e, misteriosamente, o farol da Agrale voltou a funcionar! Perguntei pro Mário:

– E aí, entendeu o caminho?

– Só não entendi a parte da mangueira, é arvore ou daquela de regar jardim?

Agradeci muito ao velho, montamos nas motos, demos a partida e quando me virei pra me despedir, o susto: não tinha ninguém! Olhei de novo e nada. Nem sinal. Ele tinha sumido do nada! A casa estava escura. Me arrepiei todo, engatei a primeira marcha e gritei pro Mário:

– PUTAQUIPARIU, coooooorre daqui!!!

Naquele pavor eu não conseguia identificar mangueira, jaqueira, goiabeira, nem um pé de pau sequer. Seguimos pela estrada mais batida como bons mineiros e depois de algum tempo começamos a avistar luzes de uma cidade. Era Luminárias, a apenas 50 km de São Tomé. Chegamos às 22 horas, totalmente ensopados, enlameados e fomos direto pra primeira placa escrito HOTEL. De lá até Lavras era mais 45 km, mas eu simplesmente cancelei o resto da viagem em troca de um banho quente, jantar, telefone e cama!

Liguei para São Paulo e estava tudo dentro do previsto para o nascimento da minha filha um mês depois. Nunca fui muito bom em contas...

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A chamada de capa já trazia o aviso: teste-emoção!

Na manhã seguinte, mais calmo, encontramos com os enduristas da região que nos levaram para uma sessão de fotos no meio de um lamaçal, de novo!!! Olhei pro Mário, visivelmente de saco na lua e propus:

– Vamos voltar?

– Agora!

Pegamos a Fernão Dias para mais de 350 km de asfalto limpo, delicioso, macio e seco. Quase chegando em Mairiporã fomos premiados com uma luz perfeita, num belíssimo pôr do sol que rendeu a foto da capa.

Até hoje não sei se o preto velho foi uma alucinação depressiva depois de tanto estresse naquelas estradas de terra, se aconteceu mesmo ou se eu simplesmente inventei tudo isso. Só o Mário pode confirmar, ou não. Acho que na hora que me virei não vi nada porque o senhor era mesmo muito preto e nossas motos estavam sem as lanternas traseiras. Quando eu olhava pelo espelho só via escuridão. Mas, sabe-se lá, era São Tomé das Letras, terra de histórias extraordinárias.

Para saber mais sobre a família Stedile clique AQUI.

 

 


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