O Médico e o Monstro, história antiga...
Um vídeo clássico dos anos 50, produzido pelo genial Walt Disney, na época pré-computação gráfica mostra o Pateta motorista e como ele se transforma de pacato cidadão para um monstro mesquinho e egoísta quando está ao volante. Célebre pela inteligência acima da média, Disney mostrou como uma pessoa pode mudar quando está ao volante e usou de trocadilhos para nomear as duas personalidades: Walker (pedestre) e Wheeler (algo como "rodorizado").
Essa analogia com as duas personalidades na mesma pessoa não é nova, nem saiu da cabeça dele, é uma teoria antiga da psicanálise (ego e alter ego), mas que foi brilhantemente revelada ao mundo na obra do escritor inglês Robert Louis Stevenson que escreveu Dr Jekill e Mr Hyde (traduzido como O Médico e o Monstro), justamente para mostrar como um indivíduo pode se transformar de uma hora para outra. Esta história se tornou em um dos romances mais vendidos, virou peça de teatro, filmes e recebeu inúmeras referências, incluindo o suspense Psicose de Alfred Hitchcock.
Portanto não é novidade que pessoas possam mudar completamente de comportamento quando estão diante de situações de estresse ou ameaçadas de alguma forma. Vários estudos sérios foram feitos para tentar entender o que se passa especificamente com motoristas e motociclistas, que passarei a nomear de "motorizados".
Lá na década de 60 já se desenvolveram várias teorias sobre o comportamento "motorizado". Como a maioria era formada por homens, houve até a teoria da "extensão do pênis", colocando o automóvel como sendo uma representação fálica de poder e potência. Quanto maior e mais potente era o carro, mais viril era o motorista.
Hoje em dia isso não mudou. Infelizmente, para quem gosta de privilegiar as dimensões, os motores foram diminuindo em capacidade volumétrica (cilindrada), mas graças aos veículos SUVs os carros aumentaram.
No mundo das motos não é diferente. Em quase 20 anos ministrando aulas de pilotagem para motociclistas notei que existe um perfil típico que nunca saiu de moda. O do homem com mais de 40 anos, divorciado, que teve moto quando era jovem e agora está retornando. Normalmente esse perfil quer o que existe de mais potente e pesado porque precisa provar que ainda está jovial e tem muito gás, sem se dar conta que no período que passou usando só carro as motos evoluíram em vários quesitos.
Além disso existe a necessidade masculina intrínseca de querer sempre mostrar que tem o brinquedo maior do que o do vizinho...
Se fosse só isso, estaria tudo bem, mas essa dupla personalidade vem à tona quando assume o comando da moto e se transforma em um ser irracional capaz apenas de pensar na "adrenalina". Pode ser um comportado e exemplar pai de família, executivo que comanda multinacionais, inteligente, socialmente respeitado. Mas ao assumir o guidão, vestir um capacete e casaco de couro se transforma em um psicopata incapaz de pensar socialmente. Parece que surge o monstro adormecido e pilota como se as pessoas estivessem ali só para atrapalhar seu caminho.
Conheço vários casos desse tipo de comportamento e o primeiro sintoma é recusar o rótulo de "motoqueiro". Está cheio de motociclista que usa motos com escapamento direto, que passam por cima da calçada, invadem faixa de pedestre, passam no farol vermelho como qualquer "cachorro louco", mas entre os amigos enche o peito pra dizer "eu sou motociclista, não motoqueiro".
É coisa nenhuma! Quando a personalidade doentia assume o comando soca 299 km/h na estrada, inclusive com alguém na garupa. E ainda filma para mostrar ao mundo o quão psicopata se tornou.
Confesso que não sei de onde vem essa necessidade de se expor dessa forma. Já li estudos de psicólogos e psiquiatras que defendem a tese da falta de desafios da vida moderna. Segundo alguns autores, o ser humano ainda traz em seu gene a informação dos antepassados primitivos. O "homem primitivo" está adormecido, mas carrega a vontade de caçar, arriscar a vida, brigar pela fêmea, se reproduzir etc. Nos dias de hoje, sem esses desafios necessários à sobrevivência, o "homem primitivo" que vive dentro de nós se manifesta nas atividades chamadas de "radicais" ou atrás de um guidão (ou volante).
(Todo mundo é bonzinho até estacionar na calçada)
Claro que isso não ocorre com 100% da amostragem, mas basta analisar os dados estatísticos que envolvem vítimas de acidente de trânsito para perceber que a faixa etária de maior incidência é entre 18 e 25 anos, período no qual a necessidade de desafios é muito maior pela natural prepotência.
Estranho quando vejo homens teoricamente maduros se comportando como jovens adolescentes (mal educados). Não é de forma alguma natural perceber essa sensação de invulnerabilidade em indivíduos acima de 35 anos. Não é o caso dos esportes de risco, porque apesar a aparente impressão de um suicídio, o praticante dessas modalidades são treinados e estudam cada passo antes de se jogar de cabeça.
No caso das motos e carros de alto desempenho, quando o indivíduo decide competir depois dos 35 anos, por exemplo, é justamente uma forma de mostrar ao mundo um resquício de equilíbrio, porque, ao contrário do que se pensa, correr em autódromos é infinitamente mais seguro do que na estrada.
Monstro das ruas
Diariamente somos expostos ao comportamento cada vez mais egoísta dos seres "motorizados". Carros estacionados em local indevido, todo tipo de grosseria e exemplos claros de uma agressividade gratuita. Não é possível que essas pessoas sejam assim no ambiente de trabalho, em casa ou com amigos.
A manifestação do "monstro" dentro de cada um aparece nestas atitudes. Certamente o sujeito que estaciona em cima da calçada não tem esse tipo de comportamento com seu chefe, nem com seus funcionários, mas tem no trânsito porque o veículo motorizado ainda é, quase 100 anos depois de sua popularização, um símbolo de poder e status.
O mais preocupante é que o livro "O Médico e o Monstro" narra a história de um médico que quer comprovar justamente que o ser humano é perfeitamente capaz de controlar o monstro dentro de si. Para isso inventa uma fórmula que faz a personalidade monstruosa predominar, na esperança de ser capaz de dominá-la. E aí que vem a surpresa, porque o monstro domina o médico e... bem, não vou contar o fim do filme, mas essa ideia de querer dominar o monstro dentro de si não funciona. Uma hora ele domina a personalidade pra sempre.
O que observo diariamente convivendo com diferentes tipos de seres motorizados é que cada vez mais o monstro sobressai ao "bonzinho". É como aquela brincadeira que diz: eu não bebo, mas quando bebo um pouquinho me transformo em outra pessoa e essa pessoa bebe pra caramba!