Interlagos: uma rara imagem de Gilles Villeuve na Ferrari nº 1 do Jody Scheckter
Como era ser jornalista nos anos pré-internet
Nessa onda de reler alguns livros acabei encontrando meu passado. Dentro do delicioso livro Henfil na China (1981) achei um pedaço de fotolito com um trecho de poesia. Sim, poesia, aquela coisa gosmenta e pegajosa que, segundo ouvi de um senhor num hotel em Londrina, "é o jeito mais fácil de conquistar uma mulher de coração mole".
Pois é, todo jornalista que se preza já passou pela fase da poesia. No meu caso teve nada a ver com conquistar corações melequentos, mas por treino mesmo. A poesia está para o escritor assim como o futebol de salão para um jogador de campo. Escrever poesias é a forma de treinar aquilo que só a poesia sabe ensinar: como dizer muito escrevendo pouco. Como os textos jornalísticos na época da imprensa impressa tinham um rigor métrico - era preciso escrever a quantidade certa de caracteres - às vezes nos víamos diante de uma necessidade de explicar muito, porém com pouco espaço. Aí entra o poder de síntese que só a poesia consegue!
O mesmo Gilles, no Rio de Janeiro, já na era turbo.
Mas não é sobre poesia que queria escrever. Além de lembrar dessa minha época, digamos, romântica, ter um fotolito em mão me fez recordar do começo da minha carreira de jornalista. Que, na verdade, começou na publicidade e nem como redator, mas como retocador de fotolito. OK, vou ser mais honesto, começou como paste-up, mas eu era tão ruim em recortar e colar que o diretor de arte me "promoveu" ao fotolito.
Hoje em dia fico impressionado ao ver velocidade da informação e acho graça quando escuto novos jornalistas criticando o excesso de trabalho e as "dificuldades"... puxa, realmente é muito difícil tirar uma foto com o iPhone e enviar para o e-mail do editor com uma legenda de 140 caracteres. Trinta anos atrás era um pouco mais complexo.
Stock-Car dos Opalões e rally
Telefoto, um bicho de mandar imagem
Se tem uma coisa que não sinto a menor saudades é do começo da minha vida de jornalista, principalmente de fotógrafo. Só para ilustrar vou contar como era trabalhar no evento mais importante do ano, o GP Brasil de Fórmula 1.
Em 1977 eu aprendi a fotografar e justamente no GP Brasil de F-1 em Interlagos. Moleza... os caras com Canon, Nikon, lentes de 400mm, 500mm e eu de Pentax K1000 com uma lente de 200mm fixa. Sabe aquele provérbio "em briga de faca leva vantagem quem está de revólver"?, pois bem, eu estava de canivete! A credencial foi conseguida com um amigo de um capitão da PM, coisas da época de regime militar.
Jean Pierre Jabouille, mais conhecido por Jabulé, em Interlagos.
Cheguei em Interlagos sem ter a menor noção do que era abertura, velocidade, profundidade de campo, mas tinha uma máquina, lentes e tripé - que logo foi abandonado. Encostei num fotógrafo italiano e pedi um "aiuto", assim na cara mais dura do mundo. Em 10 minutos ele explicou simplesmente: deixe a velocidade aqui e acompanha os carros como se a máquina fosse um fuzil e o carro a caça! Deve ser por isso que em inglês o ato de disparar a foto tem o mesmo verbo de atirar: to shoot! Saí shootando os carro tudo!
Naquela época a gente usava máquinas com filme e não tinha monitor pra ver como ficou. Tinha de esperar voltar do laboratório ensacadinhas em pequenos álbuns. Assim que minhas fotos chegaram comecei a mostrar para os amigos (rede social era escola, turma de amigos ou clube) e um deles comentou: "estão muito boas, leve para uma revista". Levei mesmo, pro único jornal exclusivo de automobilismo que havia na época, o AutoMotor, dos irmãos Reginaldo e Ronaldo Leme. Virei fotógrafo! Grazzi, amico italiano!
A partir daí eu já conseguia credencial com status de jornalista mesmo. E a pressão aumentou mil por cento. O equipamento recebeu incrementos como motor-drive que fazia 2,5 fotos por segundo, um espanto! Mais lentes e um segundo corpo, porque eram tempos de fotos coloridas e preto & branco. Funcionava assim: cada corpo de máquina levava um filme diferente, aí quando eu achava que tinha feito a melhor foto do mundo, pra usar na capa do jornal descobria que tinha sido na máquina com filme P&B, grrrrrr...
Mas o divertido vinha depois! Precisava mandar as fotos para o jornal e não havia iPhone, internet, G4, coisa nenhuma. A gente usava um aparelho hediondo chamado TELEFONE! Esse mesmo, criado pelo Graham Bell alguns séculos seculorum antes. E enviar foto por telefone era um enorme pé no saco, porque exigia um aparelho chamado TELEFOTO.
Se hoje você reclama que seu celular não consegue conexão, naquela época nem o telefone de fio conectava direito. Na sala de imprensa era uma briga de tapa para conseguir uma linha. No meio da ligação caía a linha e a operadora da Embratel precisava terminar de lixar a unha pra ligar de novo. Imagina mandar uma imagem por sinal telefônico. Sim, isso existia...
Primeiro era preciso ter a foto em papel, ampliada no formato 18x24 cm. O pixel da época era no sistema métrico mesmo. Mas como transformar um tubinho de filme em uma foto pronta? Precisava passar pelo processo de revelação e ampliação. A revelação do filme era simples, mas tinha de ser feita na completa escuridão. Na minha casa eu inutilizei o banheiro do meu irmão e transformei em laboratório fotográfico. Mas num hotel no Rio de Janeiro, como seria possível?
Com o meu kit de transformação de qualquer banheiro em laboratório. Consistia de muitos metros de pano preto e quilômetros de fita crepe. Além de canos de PVC, fracos graduados, tubos como os de mostarda e alguns pós brancos que hoje poderiam me mandar pra cadeia. Precisava primeiro preparar as químicas necessárias: o revelador e o fixador vinham em pó e a gente misturava na água a 22ºC, temperatura que no verão carioca qualquer água torneira tem. Precisava também do interruptor, que por ser apenas um ácido acético glacial a gente passava no restaurante do hotel e surrupiava o vinagre. Tudo pra não carregar peso nem volume.
O filme era revelado em um tanque de aço inox, depois lavado e secado. Eu olhava pelo negativo qual a foto tinha melhor enquadramento, foco, contraste etc e fazia uma prova. Para ver isso pelo negativo exige muito treino e uma lente de aumento chamada conta-fio.
Uma vez escolhida a foto, pegava o ampliador portátil que de portátil só tinha o nome e colocava lá o negativo para sensibilizar o papel fotográfico. O bom dessa fase é que o papel era orto-cromático, ou seja, algumas cores não o sensibilizava, então no kit tinha uma luz vermelha que dava aquele ar de bandidagem no nosso mini-lab.
Essa folha de papel passava pelos banhos químicos (há quem diga que já usou xixi como interruptor, mas não no meu laboratório!!!). Depois era secada e estava pronta para o inferno chamado aparelho de telefoto.
Tudo começava que nem filme de espionagem. Pegávamos o aparelho de telefone do quarto, desmontávamos os fios e por meio de garras tipo jacaré ligávamos no aparelho de telefoto. Nele era preciso colar a foto 18x24 em um cilindro de aço, instalava o cilindro e esperava dar linha para a telefonista do jornal receber e já entrar no ramal do aparelho receptor.
Cada foto demorava em média de 20 a 30 minutos e fazia um barulho infernizante. Aí, quando faltava uns 2 cm de foto pra acabar caía a linha e tinha de começar tudo de novo. Pensa que acabou?
Dura lex só no telex
A partir de 1981 eu passei a ser redator, além de fotógrafo. Mas naquela época não havia essa coisa de direitos trabalhistas e ganhava a mesma coisa para fazer a função de duas pessoas, com o dobro do trabalho. Eu reclamava? Nem a pau, porque meu trabalho era conviver com o período de ouro da Fórmula 1, entrevistando caras como Gilles Villeneuve, Riccardo Patrese, Alain Prost, Nelson Piquet e até com meus colegas de pista como Chico Serra, Ayrton Senna ou Alex Dias Ribeiro.
Isso é uma máquina de telex moderna.
Era uma delícia, que minava minhas energias. Enquanto deixava algum pobre amigo auxiliar passando as telefotos eu tinha de correr para a sala de imprensa para mandar os textos. Sem tempo de fazer um rascunho na máquina de escrever, eu digitava direto na máquina de telex. Uma trapizonga de uns 400 kgs, barulhenta e sacolejante como uma máquina de lavar roupa dos anos 50. Era como uma máquina de escrever, mas sem acento, cedilha e tudo em maiúsculo. Mais ou menos como as pessoas escrevem hoje em dia. Conforme a gente digitava uma fita de papel de uns 2 cm de largura era perfurada. Era essa fita que passava pela máquina e o texto era reproduzido na máquina de telex do jornal. Sem chance de corrigir, quando a gente erava, escrevia (digo, errava), assim entre parênteses.
Mesmo com toda essa trabalheira era bom e divertido. Hoje o fotógrafo vê a foto no monitor da máquina, escolhe, manda dúzias por fibra ótica em apenas um click. O redator escreve, pensa, apaga, volta, edita, acrescenta, corta e manda via e-mail em minutos. Por isso a mídia mudou radicalmente. Hoje a briga é para quem publica primeiro e nem sempre a qualidade prevalece. Uma imagem feita por celular, tremida e fora de foco sai na frente porque o que conta é ser visto primeiro!
Já meus colegas que cobrem automobilismo e outros esportes, agora tem tempo de sobra. Editam as imagens e mandam em questão de minutos. Por isso sobra mais tempo para postar comentários no Facebook, fotos no Instagram, Twiter, Whatsapp etc. Bando de folgados...
* se quiser saber como era, veja esse filme.
Ah, não adianta, não vou publicar as poesias.