Vista da janela de um hotel em Amsterdã: viajar é bom, com alguém junto é ótimo. (Foto: Tite)
A difícil decisão sobre qual procedimento para o câncer de próstata
A vida é feita de escolhas. Dã, pensa numa frase mais clichê! Só que traduz exatamente o que é viver. Sempre tive muita dificuldade para decisões e isso me causou tanto problema que uma das vantagens de envelhecer é que na maioria das vezes é a vida que decide por você.
O que gosto no horóscopo é que posso colocar toda a culpa dos meus erros no signo. Escolhi errado, ah é porque sou ariano. Gastei dinheiro com bobagem? Ah, quem mandou ser ariano. Meteu o louco e brigou na rua? Típica coisa de ariano. Tratou mal a mulher (ou qualquer pessoa)? Logo se vê que é ariano. Obrigado astros!
Mas a verdade é que algumas pessoas são mais assertivas do que outras, punto e basta. Os signos só servem para justificar quando deu errado, porque não se escuta alguém elogiando tipo “ah ele é super carinhoso e altruísta porque é ariano”. Não, os astros só atuam nas cagadas.
Uma vez na região da Toscana, na Itália, tive uma crise decisiva. Estava já havia uma semana viajando a passeio depois de uns dias de trabalho. Viajei muito na minha vida de jornalista, mas 90% das vezes a trabalho. Só fui começar a viajar a passeio depois de 10 anos de relacionamento com a Maria*, que me convenceu a gastar dinheiro em viagens. Eu mesmo já tinha rodado por muitas cidades, na maioria das vezes totalmente sozinho.
Pôr do sol na Mantiqueira: gaste seu dinheiro com viagens, porque é para sempre! (Foto: Tite)
Viajar sozinho é um saco! Fazer qualquer coisa sozinho é um saco. Nas primeiras viagens eu até curtia, porque sou ariano, mas depois começou a ficar meio triste não ter com quem dividir. No filme “Na Natureza Selvagem”, o personagem à beira da morte, depois de enfrentar uma aventura sozinho, chega a conclusão que “a felicidade só é completa quando compartilhada”. Um dos grandes ensinamentos da vida.
Nunca contabilizei quantos países já visitei, porque na maioria das vezes era chegar na quinta, trabalhar sexta, sábado e domingo e voltar na segunda. Posso dizer que não conheci mais de 30 e menos de 40 países. Mas desta vez na Toscana eu estava novamente sozinho, com um mapa na mão (época pré-smartphone). A cidade era San Gimignano, conhecida por ter os melhores sorvetes do mundo, pena que eu não gosto tanto assim de sorvete.
Estava tão angustiado para decidir pra onde ir que surtei. Fiquei prostrado no quarto do hotel, vendo televisão, sem qualquer movimento, enquanto começava uma garoa que deixava tudo ainda mais melancólico. Até decidir sair pela porta sem destino. Fui até os muros de uma fortaleza medieval, de guarda-chuva cobrindo parte da visão, quando percebi algo diferente na paisagem. Era um motociclista todo ensopado, sem capa de chuva, empurrando uma moto antiga.
– Pronto, achei algo pra fazer, pensei já me dirigindo ao motociclista.
Fui ajudar a empurrar a moto e recebi um enorme sorriso de volta, com agradecimento em alemão! O cara era alemão oriental, viajando com uma moto russa Ural 500cc, imitação de BMW. Com o pouco de alemão que aprendi consegui entender que ele não era um colecionador, mas era a moto normal de uso dele, viajando pela Itália em férias. Ele não falava nenhuma outra língua além do alemão que, como até as pedras sabem, é um idioma que se fala exclusivamente na Alemanha e Áustria. E que estava numa baita roubada.
Esta é uma Ural 500cc feita a Rússia, cópia da BMW. Ainda existem muitas rodando até hoje.
Empurramos até um posto de gasolina e ajudei a explicar aos frentistas que ele só precisava de um lugar coberto porque já tinha as ferramentas e conhecimento para resolver qualquer problema da moto. Traduzi tudo que deu pra entender e fui tomar um sorvete com a sensação de que o meu dia já estava recompensado para quem nem sequer queria sair do quarto.
Mas o vazio de viajar sozinho permanecia.
Na manhã seguinte remarquei minha volta pro Brasil e encerrei minhas férias com uma semana de antecedência. Foi neste momento que decidi parar de viajar sozinho. Quando se viaja sozinho é preciso estar disposto a falar com todo mundo, principalmente com o “baixo clero”, pessoas que estão nos servindo: camareiras, balconistas, motoristas, comerciantes, caixas de supermercado, cobradores de ônibus etc porque eu tenho uma timidez seletiva e não consigo falar com pessoas desconhecidas de "alta patente".
Na verdade eu preciso de alguém não só pra conversar e dividir a felicidade, mas para decidir por mim. Tomar decisões me deixava doente.
O xixi tá fraquinho? corre pro urologista!
Qual vai ser?
Muitos anos depois estava sentado diante do chefe da cadeira de Urologia da Universidade do Grande ABC para decidir qual procedimento adotar diante do diagnóstico de câncer de próstata. Ele me recebeu com toda atenção e gentileza que faltaram aos médicos do SUS.
Com papel e caneta este médico desenhou a anatomia da próstata, explicou pra que servia e deu uma aula que nunca mais vou esquecer. Olhou meus exames, trocou informações com outros dois médicos residentes e pediu para fazer o exame de toque. Sem problema fazer este exame. Ninguém fica mais ou menos homem se passar por isso, mas pode salvar a vida, como salvou a minha.
O residente confirmou a hiperplasia e então o chefe me apresentou as três opções:
1) Como ainda estava muito embrionário eu poderia deixar assim mesmo, fazer exames de PSA a cada seis meses e, se constatar um aumento considerável nos números, decidir pelos próximos dois procedimentos. Porém, a preocupação era o câncer entrar pela corrente sanguínea e se espalhar, causando a metástase, palavra que me arrepiou os pelos do toba.
2) Tratamento com bombardeio de radiação. A radioterapia atinge a próstata e a resseca como uma uva passa ou um maracujá de gaveta. Não é invasivo, não demanda pós operatório, porém (sempre tem um porém) as sequelas são as mesmas da cirurgia aberta, com a possibilidade de o câncer voltar porque a próstata ainda ficaria ali, encolhidinha no meu corpo.
Radioterapia: deita aí, não se mexe que vamos te bombardear!
3) Cirurgia aberta. O médico me abre, fuça lá dentro, retira a próstata e o tumor, me costura, me enche de drenos e sondas e eu fico no hospital por uma semana até receber alta. As sequelas são as já conhecidas incontinência urinária e disfunção erétil. Porém (e este porém é bom) eu ficaria livre de qualquer probabilidade de reincidência do câncer. Por garantia ainda ficaria cinco anos fazendo PSA para só então receber alta.
O clima na sala estava absolutamente calmo. Nada se mexia. Eram três médicos esperando qual decisão eu tomaria. E nem fazia ideia por onde começar até que o chefe percebeu minha cara de desespero e explicou:
– Não precisa decidir nada agora. Vai pra casa, conversa com sua esposa. Saiba que você não poderá mais ter filhos.
– Mas eu já não podia, doutor, fiz vasectomia há mais de 25 anos!
– Mas ainda poderia ter filho por inseminação, se quisesse...
– Pelo amor de Deus, não diga isso para a minha mulher! Que fique só entre nós, ela pensava que eu não podia mais ter filhos...
Foi o único momento menos sisudo da conversa, até que eu perguntei:
– Doutor, se você estivesse sentado aqui no meu lugar, qual procedimento escolheria?
Sem a menor hesitação, ele respondeu:
– A cirurgia!
– Então é esta que vai ser. Não preciso conversar com mais ninguém, o senhor é o terceiro médico que me indica a cirurgia, que assim seja então.
Pela primeira vez tomei uma decisão que se mostraria acertada, sozinho e sem a menor dúvida. A vida decidiu por mim. Já saí da consulta convencido a operar, mas as palavras incontinência urinária e impotência ainda reverberavam forte na minha mente. Até que confessei pro médico:
– Sabe, doutor, a minha maior preocupação não é a impotência sexual, mas a incontinência urinária. O sexo a partir dos 55 anos nem é tão frequente assim, mas fazer xixi na cama é um pesadelo que não gostaria de viver.
Ele até esboçou um sorriso, mas me acalmou:
– Olha, você é jovem. Hoje em dia temos remédios para a disfunção erétil que devolvem a atividade sexual. E a incontinência urinária pode ser controlada com fisioterapia.
Em resumo: Viagra ou Cialis + exercícios físicos. Hum, nada mal, pena que não foi tão simples assim...
Saí do hospital sozinho, abatido, desesperançoso, apavorado, com minha cabeça a 1.000 por hora e começou um processo de desconstrução do Tite que levaria muito anos para passar.
*Os nomes foram alterados para proteger a identidade das pessoas envolvidas.
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(continua)