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A História da Foto: perdidos nas trilhas (de novo!)

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É pra ir devagar! Ahãm! Dois loucos à solta nas trilhas. (reprodução Motoshow)

Como eram feitas as viagens-testes nos anos 80

Produzir revista nos anos 1980 era um sufoco danado. Era um negócio complexo e arriscado porque as revistas especializadas não se sustentavam com a venda em banca, mas com verba de publicidade por meio de anúncios.

No caso das revistas de motos ainda tinha mais um complicativo: a falta de modelos de motos para testar, por isso tínhamos de usar a criatividade para criar pautas que chamassem a atenção de quem passava pela banca de jornais.

As principais revistas do setor eram Duas Rodas e Motoshow. Trabalhei nas duas e conheci bem como funcionavam os “bastidores”. A Duas Rodas era feita por empresários com experiências no mundo corporativo. Eles pensavam como uma empresa, visando o máximo de lucro. A Motoshow era feita numa empresa ainda maior, mas a equipe tinha autonomia total. E a equipe era composta por jovens, vidrados em motos, super criativos, com salários fixos e estavam pouco preocupados com lucro.

Por isso as pautas da Duas Rodas eram muito mais comerciais, enquanto as pautas da Motoshow eram mais emocionais (que depois conduziu a linha editorial da revista MOTO!).

Comecei na Duas Rodas em 1981, ou 1982, não sou bom com datas, pegando pequenas reportagens, mas nada de testes, editoria filé mignon comandada por Josias Silveira e Gabriel Marazzi, dois monstros da área. Cheguei de mansinho e aos poucos fui aprendendo tudo e o resto é história que você já está conhecendo aos poucos.

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Viagem na terra com a Honda XLX 350R em abril de 1989. (reprodução Motoshow)

Aventura-teste

Quando a Duas Rodas surgiu as importações de motos ainda eram permitidas. Eu tenho até hoje a edição com o teste comparativo da Honda CB 400Four com a Suzuki GT 380 que fez meu pai decidir pela compra da Honda. Que ficou comigo por 10 anos e 160.000 km (a moto).

Pouco mais de um ano depois do nascimento da revista Duas Rodas o Brasil fechou os portos para veículos e proibiram a importação de motos e carros! Imagina o que representou para as revistas que viviam disso?

Mesmo em 1981, quando cheguei na revista, a indústria nacional ainda não tinha tanta moto pra testar e precisávamos produzir uma revista de 66 páginas todos os meses. Como a parte industrial da revista consumia muito tempo, na prática tínhamos duas semanas por mês para produzir todas as fotos e textos da revista. Uma semana para montar tudo e mais uma semana para rodar e distribuir.

Com poucas motos e muitas páginas para encher de fotos e letras tínhamos de ser criativos e com isso surgiram pautas menos tradicionais. Uma delas – que teve minha participação direta – foram as crônicas. Naquela época eu ainda não sabia que sofria de TDA (transtorno de déficit de atenção) e não conseguia parar quieto um segundo. Ficava na redação o dia inteiro falando mais que o homem da cobra, andando pra cima e pra baixo e contando casos. Um dia o Roberto Araújo, bem de saco cheio, me puxou pelo pescoço, me jogou na frente da máquina de escrever e berrou no meu ouvido:

– Já que você não para de falar, escreve essas histórias, quem sabe a gente publica!

Pronto, agora você já sabe como me tornei um cronista na base do pescotapa!

Também foi nessa fase que me tornei o responsável pelas as matérias de segurança de trânsito, que contribuíram para eu me tornar um especialista no assunto até hoje. O Roberto me enchia de pautas pra eu parar quieto por algumas horas. Algumas nem sequer foram publicadas, mas serviram pra me manter parado.

Mas e os testes? Eu queria testar moto! só pegava pautas de mercado, segurança, comportamento, competição, crônica, mas nada de testes. Fiquei nessas pautas um tempão até que finalmente comecei a testar, mas não lembro qual foi o primeiro. Só lembro que gostaram e não parei mais.

Tínhamos basicamente os seguintes testes:

– Avaliação: era tipo “impressões ao pilotar”, sem medições de desempenho, frenagem, nada. Só consumo (chutado) e velocidade máxima, quando dava.

– Teste completo: era a avaliação, mas com os dados de consumo, performance, frenagem que você já viu como era feito neste POST.

– Teste comparativo: a gente pegava duas ou mais motos no mesmo padrão de preço, posicionamento de mercado, desempenho etc e comparava entre elas. Era o teste que dava mais treta entre leitores e fabricantes.

– Teste dos 10.000 km: esse era nossa garantia de ter motos de graça por uns quatro meses! Depois dos 10.000 Km levávamos a moto para uma oficina e desmontava inteirinha de ponta a ponta para medir cada desgaste. Pensa num dia infernal. Eu tive de aprender a usar os ímetros, ômetros e ógrafos para conferir cada pecinha. Graças a Deus eu não montava! Tem uma história curiosa desses testes. Rodamos 10.000 km com a Honda XLX 350R. Na noite anterior à desmontagem a moto foi roubada! Tivemos de rodar mais 10.000 km com outra num ritmo muito mais frenético!

– Aventura-teste: ah, esse era o grande barato da edição. Todo mundo queria viajar com motos novinhas, despesas pagas e ainda licença para criar pautas criativas. Os roteiros incluíram Transamazônica, países da América do Sul, muito Rio de Janeiro e, meu prato favorito, milhares de quilômetros de estradas de terra. As mais famosas foram a inesquecível viagem de Manaus a São Paulo de Honda CG 125 feita pelo Josias Silveira; a Porto Alegre-Manaus de MZ 250 feita pelo Josias e Gabriel Marazzi e aquela da Honda CBX 750F e Yamaha RD 350LC comigo e o Gabriel. O Gabriel ainda fez uma viagem memorável de Vespa PX 200 de São Paulo ao Rio de Janeiro debaixo de chuva!

A aventura-teste era a melhor forma de traduzir o que era uma motocicleta. Nela a gente se tornava um usuário nas condições reais de uso. Bem diferente, por exemplo, dos testes 24 Horas que traduziam muito pouco da moto no dia a dia.

Aproveitávamos essas aventuras para escolher o roteiro do nosso agrado. Conheci boa parte do Brasil em cima de uma moto por conta dessas viagens. Com a vantagem de sempre estar pilotando motos novas e sem preocupação com o estado que elas terminariam a viagem. Na Duas Rodas fiz várias dessas viagens sozinho ou acompanhado e quando cheguei na Motoshow nós implantamos estes testes de longa duração para concorrer com a Duas Rodas mas, principalmente, pra gente se divertir!

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Perdidos na trilha, de novo!

Na equipe da Motoshow o clima era bem diferente. Moto era curtição, paixão e não um negócio. Toda a equipe era de motociclistas, desde o diretor de arte (um doido) até o comercial. A gente respirava moto 24 horas por dia, de segunda a sexta e ainda cobria as competições nos fins de semana.

O pessoal da redação tinha tesão especial por corrida, de qualquer tipo, em qualquer piso. E pelo menos dois participavam de competições fora-de-estrada: eu e o Quinho Caldas. Quando não tinha corrida a gente pegava as motos de trilha para curtir o fim de semana na terra.

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Duas motos concorrentes frente a frente em 600 km de terra. (Reprodução Motoshow)

Por isso nossas viagens-testes eram preferencialmente por estradas de terra e aqui começa a minha segunda perdida em estradas de terra. A primeira foi com Mário Bock em São Tomé das Letras.

Tínhamos de fazer um comparativo da Honda XLX 350R e Agrale Elefantré 30.0. Duas motos de uso misto, bem ao nosso estilo. Mais uma vez eu fui responsável pelo roteiro e dessa vez me inspirei numa viagem feita pelo colega jornalista Jorge de Souza, de picape 4x4 para a revista Quatro Rodas. Ele publicou o roteiro detalhado e era simplesmente um delírio: começava em Mairiporã (SP), passava por Campos do Jordão (SP), Visconde de Mauá (RJ) e terminava em Angra dos Reis (RJ). Quase 90% do percurso por estradas de terra, delícia! (Hoje está quase tudo asfaltado).

Nestas viagens fora-de-estrada sempre fazíamos as fotos primeiro perto de SP enquanto as motos estavam ainda inteiras. Depois partíamos para a viagem com todo material fotográfico, equipamentos, roupas, capa de chuva etc. Instalei uma prancheta no guidão da XLX 350 para colocar o mapa e poder pilotar sem parar o tempo todo e começamos a viagem.

Ao contrário do Mário Bock, que não tinha experiência em pilotagem na terra, o Quinho era mega experiente, por isso fizemos um trato de cavalheiro de “não provocação”. Ou seja, eu ia na frente com o mapa e ele comportadinho atrás sem forçar meu ritmo, nem ultrapassar. Afinal tínhamos uma previsão de rodar mais de 1.000 km por estradas de terra.

Deu super certo... nos primeiros 20 km de estradas. Bastou uma reta de uns 800 metros, com um salto bem no meio, para nosso acordo de cavalheiro ir pro vinagre e estabelecermos um novo roteiro “Paris-Dakar” das Mantiqueiras. Sem o menor vestígio de juízo aceleramos como dois retardados que éramos e milagrosamente chegamos vivos, inteiros e sem nenhuma queda em Campos do Jordão para o primeiro pernoite.

Pilotar por estradas de terra é um desafio tremendo porque nunca se sabe o coeficiente de atrito na curva seguinte. Mesmo assim eu não queria tirar a mão de jeito nenhum pra não ser ultrapassado. Fizemos curvas em parede, saltos, mergulhamos em poças d’água, voamos por mata-burros e não tiramos a mão por nada. Difícil acreditar que não caímos!

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Tudo estava dando certo até começar a dar errado. (Foto: Tite)

No segundo dia fizemos novamente o mesmo trato: nada de acelerar, vamos respeitar os limites do bom senso etc e tal, bull shit! Bastou chegar numa serra cheia de curvas para os dois novamente esquecer todas as regras e começar outro pega no meio do nada. Um acidente naquelas condições, sem telefone celular, entre nada e coisa alguma, teria consequências bem graves. Mas isso só passava pela minha cabeça quando via o abismo a poucos centímetros da minha pedaleira.

Comecei a sentir a XLX 350R meio estranha, a traseira afundava demais na recepção dos saltos e já não obedecia meus comandos. Mesmo assim não desacelerei até que fui conferir o mapa e... ele tinha sumido! Parei a moto e fiquei pensando num jeito amigável de dizer que tinha perdido o mapa. O Quinho era conhecido por ser tão amável quanto um pitbull esfomeado, por isso falei quase em tom angelical:
– Você viu algum papel voando? Tipo assim, colorido, parecido com um mapa?

Ele olhou bem na minha cara e respondeu com a habitual calma e tranquilidade:

– VOCÊ PERDEU O MAPA???

Sem aquele mapa a gente estaria literalmente perdidos, porque tinha um zilhão de entroncamentos, bifurcações, estradinhas e trilhas. Começamos a voltar para tentar achar o mapa. Voltamos quilômetros e nada. Eu já estava preparado para um esporro quando vi ao longe uma picape Rural F-75 cheia de gente na caçamba. Ela não tinha a grade frontal e quando olhei pro radiador lá estava ele:

– O MAPA! Gritei pro Quinho – faz essa Rural parar, o mapa está preso no radiador!

O motorista da Rural achou que era assalto e não queria parar de jeito nenhum. Eu gritava, me esgoelava pra ele parar porque meu mapa estava preso no radiador, mas ele continuava acelerando. Na caçamba os “passageiros” não entendiam nada, mas mostravam as enxadas e foices.

Fui ficando mais desesperado até que vi um mata-burro adiante, acelerei a moto, parei, desci e fiquei na frente da Rural tipo um extraterrestre apontando uma pistola de raio laser. O motorista freou, meti a mão no radiador, puxei o mapa, montei na moto e saí correndo antes das enxadas e foices descerem da caçamba!

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Um problema no espaçador superaqueceu e fundiu o espelho do freio traseiro (reprodução Motoshow)

Assim, depois deste pequeno incidente diplomático entre motoqueiros e trabalhadores rurais, chegamos a Visconde de Mauá (RJ) mais uma vez inteiros, com as cabeças sobre os pescoços, sem quedas, mas as motos já davam sinais de fadiga de material. A suspensão traseira da XLX tinha arriado de vez. Ficou tão comprometida que nos saltos o pneu estava pegando por dentro do para-lama. A Agrale 30.0 não aguentou o peso da bolsa do Quinho, quebrou o bagageiro e arrancou a lanterna traseira. E ainda estávamos na metade da viagem.

O que pode piorar?

O terceiro dia de viagem amanheceu frio e cinzento, típico das montanhas, o que nos obrigou a ficar mais tempo debaixo das cobertas. Além disso queríamos chegar na divisa com Minas Gerais só pra poder escrever que “cruzamos três Estados”, mesmo que um desses Estados estivesse a menos de 10 km de distância. Fizemos as fotos em Mirantão (MG) e começamos o trecho até Angra dos Reis.

Claro que perdemos tempo demais com essa besteira de “entrar em Minas” e quando escureceu ainda estávamos numa estrada de terra, em qualquer lugar do Estado do Rio de Janeiro e eu comecei a sentir a XLX meio “presa”. Além disso o freio traseiro estava estranho, duro e sem ação.

Mais alguns quilômetros e senti um cheiro de queimado. Mais um pouco e comecei a escutar os gritos do Quinho:

– Paaaraaaa, sua roda está pegando fogo!

Soltei a mão do acelerador e a moto parou na descida sem usar o freio, que nem um carro com o freio de mão puxado. Desliguei a moto e subiu uma fumaça com cheiro de alumínio queimado. Desci e vi que o cubo da roda (que chama cubo mas é um cilindro, vai entender) estava incandescente e a roda não girava mais. Estávamos quebrados no meio do nada, à noite, sem telefone, sem ninguém por perto e eu tive a sensação de já ter visto aquela cena antes!

Mecânico experiente o Quinho matou a charada: um dos espaçadores da roda traseira tinha se desgastado, o cubo da roda desalinhou e a lona de freio ficou encostando até superaquecer. Esquentou tanto que fundiu o espaçador no espelho do freio e seria preciso uma verdadeira operação para consertar: tínhamos de esperar esfriar, tirar a roda, arrancar aquele espaçador fundido, achar uma arruela que pudesse servir naquele lugar, soltar a lona de freio, montar tudo, alinhar e continuar a viagem. Fácil! Tínhamos apenas as ferramentas originais das motos, sem lanterna e estava escuro. Felizmente as ferramentas da Agrale eram ótimas, mas mesmo assim foi um sufoco para conseguir soltar a porca da roda depois de dilatar tudo com o superaquecimento.

No meio daquela situação, olhei pro céu e despejei minha fúria:

– Oooh meu Deus, o que mais falta acontecer?

Imediatamente Deus me respondeu na forma de uma tempestade!

O Quinho olhou na minha cara, com uma chave 22 mm apontada pro meu nariz e só falou num tom tradicionalmente calmo:

– Dá pra você não falar mais nada até o fim da viagem?

E foi chuva de gente grande. Com direito a trovões e vento. Claro que não tínhamos capa de chuva e a temperatura caiu em segundos. Olhei aquela XLX com a roda desmontada, o Quinho ensopado, os dois tremendo de frio e do nada lembrei que tinha um ilhós da mochila que poderia ter o mesmo diâmetro daquela arruela fundida. Experimentamos e... bingo! Deu certo!
Montamos tudo e seguimos para Angra dos Reis, chegando na luxuosa recepção do hotel Angra Inn, ensopados, sujos de lama, que nem dois bonecos de voodoo.

No dia seguinte o plano era voltar pra São Paulo passando por Cunha, Natividade da Serra e Paraibuna para completar os 1.000 km de estradas de terra. Mas o asfalto liso, seco e macio da Via Dutra foi mais convincente e voltamos pelo asfalto, sãos, salvos e limpinhos.

*Para os manicacas de plantão, seguem abaixo os dados das duas motos.

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